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A Modernidade como primeiro contexto do discurso jornalístico

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CAPÍTULO 1 – O JORNALISMO ENQUANTO PRÁTICA DISCURSIVA

1.2 A Modernidade como primeiro contexto do discurso jornalístico

Busquemos entender por que, em nossa concepção, o discurso jornalístico por mais que modifique superficialmente sua práxis acaba por não se desvincular da perspectiva positivista e objetivista fundadora da prática jornalística.

A Europa no fim do século XVIII, começo do XIX, passou por grandes transformações, duas delas fizeram com que os indivíduos enxergassem suas

realidades de outras maneiras: a Revolução Industrial, que teve seu principal cerne a Inglaterra e a Revolução Francesa. A primeira desenvolveu e acelerou as relações em um novo espaço físico, que até então não era hegemônico: a cidade moderna; já a segunda agiu ideologicamente, reforçando a imagem do indivíduo frente a sociedade.

Segundo Eric Hobsbawm (1981, p. 71), foi na França que nasceram os princípios do liberalismo, do radicalismo-democrático, do nacionalismo, dos códigos legais e os modelos de organização técnica e científica. Processos que influenciaram boa parte do mundo. É justamente essa influência que fez da Revolução Francesa a mais importante da época, frente à Revolução Russa e a Americana, que exerceram grandes influências, porém com mais ênfase em seus territórios do que em todo globo. Essa difusão ocorreu por conta das disputas que estavam sendo colocadas naquele período na França: “[...] o conflito entre estrutura oficial e interesses estabelecidos do velho regime e as novas forças sociais ascendentes era mais agudo na França do que em outras partes” (HOBSBAWM,1981, p.73).

Jürgen Habermas (2003) aponta que a intensidade e a forma como a revolução se deu, contribuíram para a difusão dos princípios burgueses. As mudanças na estrutura da sociedade francesa foram tão abruptas e profundas, que fizeram com que o ideal pregado se espalhasse por toda Europa:

Ainda que de modo menos estável, a Revolução estabelece na França, da noite para o dia, o que na Inglaterra havia necessitado de uma evolução permanente por mais de um século: as instituições que até então faltavam para o público politizado. Surgem os clubes partidários, nos quais são recrutadas as fracções do Parlamento, constitui-se uma imprensa política diária. E os estados gerais já adotam o princípio da publicidade de seus atos. [...] o processo revolucionário é interpretado e definido em termos constitucionais; isso talvez explique que, no continente europeu, as funções políticas, reais ou imaginárias, da esfera pública burguesa se tornam conscientes de modo tão aguçado. Aí surge uma consciência própria, terminologicamente delineada de modo mais nítido do que na Inglaterra da mesma época. Logo as funções políticas da esfera pública passam, de codificações da constituição francesa da Revolução, a palavras-de-ordem que se espalham pela Europa (HABERMAS, 2003, p.89)

E que ideário foi este espalhado pela Europa do século XIX? A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) nos dá essa resposta. Uma das principais mudanças de perspectivas da relação indivíduo/sociedade está no primeiro artigo da declaração que estabelece: “Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum”, este

pensamento fez com que todos os sujeitos passassem a figurar em um mesmo patamar, cada indivíduo passou a ter o mesmo valor frente a sociedade, diferente do que até então era pregado.

Essa mudança de paradigma coloca o homem no centro das diversas organizações e permite uma reorganização do espaço e das relações sociais. É justamente por conta deste contexto que Auguste Comte consegue desenvolver o ideário positivista, que tem como argumento organizador de seu paradigma a capacidade de compreender a realidade por meio de eventos empíricos observáveis pelo homem, que obedeciam a regras gerais e poderiam ser consideradas leis sociais.

O pensamento de Comte influencia a vida e a ciência da humanidade até hoje, mesmo com muitos questionamentos e ressalvas, os ideais positivistas permeiam nosso cotidiano, inclusive nessa visão epistêmica do jornalismo moderno, que se vê capaz de captar a realidade empírica por meio de sua observação.

Maingueneau (2008), em seu livro Gênese dos discursos, busca traçar uma lógica da formação dos discursos, diferente desta até então apresentada. Segundo o autor, falar em discursos é compreender que as produções de sentido, apresentados nas mais variadas formas, possuem características e uma lógica interna que as configuram como tais e pertencentes a esse ou aquele campo discursivo. Compreende por discurso “uma dispersão de textos, cujo modo de inscrição histórica permite definir como um espaço de regularidades enunciativas” (MAINGUENEAU, 2008, p.15), ou seja, diversas falas realizadas por diversos enunciadores que, de certa forma, fazem parte de um todo heterogêneo.

Esse pensamento está ligado ao que entendemos como matriz discursiva, noção que compreende “que cada texto singular pode sempre ser apreendido e

descrito como único, como irredutível a outros, mas que certos textos apresentam afinidades de natureza diversa, entre eles.” (CHARAUDEAU, 2016, p.322).

Ao abordar a questão do interdiscurso – a formação e interação dos discursos tendo como base outros discursos existentes – o autor nos apresenta duas instâncias: a heterogeneidade mostrada e a heterogeneidade constitutiva.

Na heterogeneidade mostrada, captável pelo aparelho linguístico, é possível encontrar as marcas da alteridade com os outros discursos. São destacados no próprio discurso falado os momentos em que esse se constitui frente aos demais. Já

na heterogeneidade constitutiva essas relações não são claramente definidas, estão emaranhadas na sua forma de dizer:

Quando precisam encarar a heterogeneidade enunciativa, os linguistas são levados a distinguir duas formas de presença do “Outro” em um discurso: a heterogeneidade “mostrada” e a heterogeneidade “constitutiva”. Só a primeira é acessível aos aparelhos linguísticos, na medida em que permite apreender sequências delimitadas que mostram claramente sua alteridade (discurso citado, autocorreções, palavras entre aspas etc...). A segunda, ao contrário, não deixa marcas visíveis: as palavras, os enunciados de outrem estão tão intimamente ligados ao texto que elas não podem ser apreendidas por uma abordagem linguística stricto sensu. (MAINGUENEAU, 2008, p. 31).

É nesta segunda instância que se encontra o pensamento desenvolvido pelo autor. O interdiscurso, portanto, é essa construção imbricada entre os discursos que se dá em três espaços: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. (MAINGUENEAU, 2008, p. 33).

O universo discursivo consiste em um dado momento da história no qual “o

conjunto de formações discursivas de todos os tipos (...) interage” (MAINGUENEAU,

2008, p. 33); já os campos discursivos são as formações discursivas que se encontram em concorrência, é neste espaço que os discursos são constituídos; e por fim os espaços discursivos, que são as escolhas que o analista de discurso faz, a fim de identificar uma ou outra característica dos discursos analisados (MAINGUENEAU, 2008, p. 35).

Ao buscar firmar-se enquanto discurso, o jornalismo precisou se identificar com alguns enunciados e se distanciar de outros. Tomou para si a ideia do liberalismo burguês e do positivismo que dali surgiu e o fez sendo representante nato de um período histórico: a Modernidade.

É interessante lembrarmos que os jornais já existiam antes deste período, porém, o começo do século XVII é tido como ponto inicial do jornalismo moderno, pois, é nesse período que as publicações se tornam realmente periódicas e constantes.

O início da Modernidade foi um período no qual as antigas tradições deram espaço ao conhecimento fragmentado, a religião deixou de ser o centro lógico do mundo e o homem se viu como protagonista de sua história. David Harvey (2014), mostra como a antiga Paris teve que ser destruída para dar espaço a Paris moderna,

enfatizando que o discurso modernista surgiu por meio dessa ruptura, em que ilusoriamente o novo nasce sem o velho:

Antes havia indústrias manufatureiras dispersas, organizadas de forma artesanal; grande parte delas, então, abriu caminho para o maquinário e a indústria modernos. Antes havia pequenas lojas ao longo de ruas estreitas e tortuosas ou em galerias; depois vieram as imensas lojas de departamento que tomaram conta dos bulevares. Antes havia o utopismo e o romantismo, depois veio o gerencialismo prático e o socialismo científico. Antes ser carregador de água era uma ocupação importante; mas, em 1870 já havia praticamente desaparecido, com a disponibilidade da água encanada. Em todos esses aspectos – e em outros mais – 1848 parecia ser um momento decisivo em que grande parte disso era o novo consolidado sem o velho. (HARVEY, 2014, p. 13).

É importante entendermos Modernidade como um período contínuo que abarca o mundo desde o início do modo de produção capitalista e que provocou grandes transformações na organização social. Foi durante a Modernidade que a ideia dos estados-nacionais ganhou força, também foi durante esse período que a estagnação dos sistemas feudais deu espaço ao dinamismo de sistemas políticos diferentes que interferiam menos nas questões particulares dos indivíduos.

Utilizando termos e a lógica de Maingueneau, acreditamos ser a Modernidade o universo discursivo, no qual o discurso jornalístico como conhecemos hoje se desenvolveu.

A ideia de campo de Maingueneau (2008) estabelece ligações com a teoria dos campos do sociólogo Pierre Bourdieu, sendo que o linguista francês a aplicou no plano discursivo para sua análise (CHARAUDEAU, 2016, p. 191). Com isso, definimos que o campo do jornalismo é o próprio jornalismo enquanto prática social. Nesse campo possuímos várias práticas que disputam a hegemonia do discurso jornalístico, como, por exemplo, o jornalismo alternativo, jornalismo independente, jornalismo cidadão, jornalismo comunitário, jornalismo popular, apenas para citar alguns exemplos.

Tendo compreendido e delimitado os elementos que compõem nosso universo, campo e espaços discursivos, passemos a outro conceito essencial de nossa pesquisa: o ethos discursivo.

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