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A concepção retórica de ethos

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CAPÍTULO 2 – CAMINHOS TEÓRICOS DO ETHOS: DA RETÓRICA

2.2 A concepção retórica de ethos

A ideia de ethos remonta à Grécia Antiga, cerca de 350 a.C., com o pensamento aristotélico. É a partir desse referencial que o conceito foi apropriado de diversas maneiras, por diversos pensadores.

Existe no pensamento de Aristóteles a criação de dois conceitos anteriores ao ethos, mas que são essenciais para compreendê-lo. Um desses conceitos é a própria

Retórica, ligada à arte da comunicação; e a outra a Poética, ligada aos discursos

poéticos e literários (ALEXANDRE JR., 2005, p.33). A retórica consiste no discurso prático, que tem como objetivo a persuasão dos demais. Aristóteles divide a retórica em três tipos: Judicial ou Forense que “são acusações ou defesas sobre coisas feitas no passado e visam mostrar a justiça ou injustiça do que foi feito” (ALEXANDRE JR., 2005, p. 38); Deliberativo ou Político que “são exortações ou dissuasões e visam mostrar a vantagem ou desvantagem de uma determinada ação” (ALEXANDRE JR., 2005, p. 38); e Demonstrativo ou Epidíctico que “louvam ou censuram algo, visando mostrar a virtude ou defeito de uma pessoa ou coisa.” (ALEXANDRE JR., 2005, p. 38).

Para o filósofo grego, nesses três tipos retóricos existem três meios de persuasão: ethos, ligado às características pessoais do orador1; pathos, referente a

disposição de espírito de quem recebe a mensagem; e logos, que possui relação com o que é propriamente dito. São esses elementos que na retórica aristotélica servem de prova para que a ação persuasiva seja executada:

Há três tipos de meios de persuasão supridos pela palavra falada. O primeiro dependente do cárter pessoal do orador [ethos]; o segundo, de levar o auditório a uma certa disposição de espírito [pathos]; e o terceiro, do próprio discurso no que diz respeito ao que demonstra ou parece demonstrar [logos]. A persuasão é obtida graças ao caráter pessoal do orador, quando o discurso é proferido de tal maneira que nos faz pensar que o orador é digno de crédito (ARISTÓTELES, 2013, p. 45)

1 Conforme a linha de pensamento a que se filia, cada autor denomina o ser que profere a fala de uma ou outra maneira. Enquanto na retórica de Aristóteles, esse ser recebe nome de orador; no pensamento de Maingueneau, chama-se enunciador; Ducrot e Amossy denominam essa figura como locutor. Optamos por seguir as formas que cada autor utiliza, acreditando que de maneira geral essas figuras representam o ator social que de uma forma ou outra (fala, discurso, texto, etc.) deseja repassar uma mensagem a certo público.

Há, portanto, uma representação do autor dada ao público, conforme o interesse persuasivo. De acordo com o verbete escrito por Ruth Amossy, no Dicionário de Análise do Discurso (2016), a ideia de ethos, possui duplo sentido na obra de Aristóteles, um primeiro ligado às virtudes morais do orador, e o segundo à dimensão social do discurso.

[O ethos] Adquire em Aristóteles um duplo sentido: por um lado, designa as virtudes morais que garantem credibilidade ao orador, tais quais a prudência, a virtude e a benevolência (Retórica II, 1378a); por outro lado, comporta uma dimensão social, na medida em que o orador convence ao se exprimir de modo apropriado a seu caráter e a seu tipo social (Eggs, 199:32). Nos dois casos, trata-se da imagem de si que o orador produz em seu discurso, e não de sua pessoa real (CHARAUDEAU, 2016, p.220).

A visão de Aristóteles difere da visão baseada em Isócrates, que vê “o ethos como um dado preexistente fundado na autoridade individual e institucional do orador” (CHARAUDEAU, 2016, p.220). Essa discussão, portanto, oferece dois possíveis entendimentos: àquele ligado às características prévias do sujeito, baseado em suas concepções morais; ou a representação que esse sujeito faz de si em um ato de fala, não estando assim estritamente ligada a seu caráter ético. Como bem demonstra Amossy (2008), essa discussão tem relação na oposição entre o pensamento aristotélico, e alguns pensadores romanos:

Trata-se, de fato, de saber se o ethos é, como pretendia Aristóteles, a imagem de si construída no discurso, ou como entendiam os romanos, um dado preexistente que se apoia na autoridade individual e institucional do orador (a reputação de sua família, seu estatuto social, o que se sabe sobre seu modo de vida, etc.). Na arte oratória romana, inspirada mais em Isócrates (436-338 a.C.) que em Aristóteles, o ethos pertence à esfera do caráter. Segundo Quintiliano, o argumento exposto pela vida de um homem tem mais peso que suas palavras. E Cícero define o bom orador como o vir boni dicendi peritus, um homem que une ao caráter moral a capacidade de bem manejar o verbo (AMOSSY, 2008, p.17-18).

A discussão se mostra longa e intensa, com cada campo e autor ligando ethos a primeira ou a segunda visão, conforme lhe convém. Ekkehard Eggs (2008), ao fazer uma análise das discussões sobre os textos de Aristóteles chega à seguinte conclusão:

Embora o ethos tenha aqui um sentido moral ou ideal, é preciso ver que essa moralidade não nasce de uma atitude interior ou de um sistema de valores abstratos; ao contrário, ela se produz pelas escolhas competentes, deliberadas e apropriadas. Essa moralidade, enfim, o ethos como prova retórica, é, portanto, procedural (EGGS, 2008, p. 37).

Com isso, cabe ao orador projetar uma imagem de si que lhe repasse credibilidade para proferir tal discurso. Eggs continua, ao afirmar que não se trata de “‘se dar a aparência’ de ser honesto e sincero (...), mas apresentar-se honesto e sincero para que o verdadeiro e o justo se imponham” (EGGS, 2008, p. 38).

Para compreendermos como a representação de si se faz central no pensamento aristotélico, é interessante notarmos que a concepção de ethos, na verdade é um composto mais amplo que acaba por abarcar os três pilares das provas de Aristóteles, conforme a interpretação:

Ora, toda pessoa, o homem, é para Aristóteles um animal (pathos) político (ethos) que tem a capacidade de falar de pensar (logos) (...). Sua héxis, sua maneira de experimentar e de manifestar essas três dimensões de seu ser, constitui, portanto, seu ETHOS. Poderíamos assim dizer que todo ethos constitui uma condensação específica dessas três dimensões. Desse ponto de vista, compreendemos o alcance extraordinário da passagem 1378 a6 [em Retórica I]: só o orador que consegue mostrar em seu discurso os mais elevados graus dessas três dimensões do ethos - phrónesis, areté, eúnoia - convencerá realmente. Nesse sentido, “O ethos constitui praticamente a mais importante das provas” (EGGS, 2008, p.42).

O que significa que ao expressar suas ideias o homem expressa como que a sua humanidade, seu ETHOS, destacado em letras garrafais por Eggs, existe não como um código moral externo ao indivíduo, mas sim, uma expressão de sua inerente condição humana. No ato de enunciação, o orador ao expor seu ethos, de uma forma ou de outra expõe a si. Acreditamos ser essa exposição, que depois se materializará na ideia de Maingueneau de que o ethos, mesmo que não dito, é mostrado.

Ao reportar essa discussão ao campo do jornalismo contemporâneo, podemos compreendê-la como uma espécie de confronto entre a perspectiva que trata de um

“ethos jornalístico”, particular e possível de ser compreendido dentro do contexto de

cada ato enunciativo, frente uma visão de “ethos do jornalismo” enquanto instituição que serve de parâmetros deontológicos para o exercício da profissão, um ethos, pois, que estabelece normas e condutas para a prática jornalística, externa aos indivíduos. Nosso arcabouço teórico se utiliza das concepções aristotélicas de ethos de base para suas formulações teóricas, entendendo-o como a representação de si no ato enunciativo e não um conjunto de elementos que compõem uma imagem ética prévia de como deve se portar o enunciador. Logo, nosso pensamento caminha mais para a representação de um “ethos jornalístico” do que de um “ethos do jornalismo”.

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