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Os diversos enunciadores e o ethos discursivo composto

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CAPÍTULO 2 – CAMINHOS TEÓRICOS DO ETHOS: DA RETÓRICA

2.5 Os diversos enunciadores e o ethos discursivo composto

Para aprofundarmos a noção de ethos discursivo no campo do jornalismo precisamos nos atentar a outros dois aspectos fundamentais e constitutivos do processo que dizem respeito exatamente ao enunciador.

As concepções expostas, até agora, levam em consideração um enunciador como o ser responsável pelo ato de enunciação, sem necessariamente problematizar que em alguns casos esse enunciador pode ser composto por mais de um indivíduo. Na retórica de Aristóteles o responsável pela enunciação é alguém que deseja em um discurso convencer um outro; no caso do ethos discursivo de Maingueneau e

de Amossy essa lógica se mantém, com a autora da Universidade de Tel-Aviv nos apontando a necessidade de olharmos a posição que esse enunciador tem no campo ao qual está disposto e as referências culturais que possui para realizar sua enunciação.

Ao transpor a perspectiva da Análise do Discurso Francesa ao jornalismo, precisamos antes de tudo compreender melhor a própria concepção de enunciador, pois não é verdade que o jornalista ao produzir seu conteúdo está desprendido e possui total autonomia dos meios materiais garantidos pela empresa jornalística, assim como a empresa jornalística não detém todas as formas de coibir as expressões dos jornalistas que fazem parte de seu corpo editorial, mesmo aquelas que estão em desacordo de sua visão empresarial.

Com isso, o enunciador no jornalismo não é um indivíduo, ou sujeito, como poderíamos considerar caso estivéssemos falando de um autor romancista, mas sim de um composto, uma sociedade formada entre o produtor de conteúdo e a empresa que mantém o negócio jornalístico.

É necessário refletir a complexidade do ethos levando em conta as relações sociais que os agentes enunciadores possuem no ato de enunciação, para isso recorremos, além do referencial teórico já apresentado, a sociologia pura (ou sociologia formal) oferecida por Georg Simmel, sociólogo alemão, que desenvolveu seus pensamentos entre o final do século XIX e começo do século XX. Em nossa análise não basta verificarmos a posição institucional do enunciador, pois trata-se de uma enunciação que não é feita de maneira individual, mas sim em uma relação entre diferentes: a empresa jornalística e o jornalista, por isso, compreender essa relação também consiste em compreender o ethos jornalístico.

A sociologia pensada por Simmel parte do princípio que a interação social é o elemento essencial para a compreensão da sociedade, o autor nos oferece a possibilidade da chamada “microssociologia”. Mostrando que que não só nas chamadas grandes instituições socialmente estabelecidas está presente “a sociedade”, mas sim em cada contato entre dois ou mais indivíduos, é nessa interação que a sociedade é formada e reformulada:

Os homens se olham uns aos outros, têm ciúmes mútuos, escrevem-se cartas, comem juntos, são simpáticos ou antipáticos, independente de qualquer interesse apreciável; o agradecimento produzido pela prestação altruísta possui o poder de um vínculo irrompível; um homem pergunta o

caminho ao outro, os homens se vestem e se enfeitam uns para os outros e todas estas e mil outras relações momentâneas ou duradouras, conscientes ou inconscientes, inconsequentes ou fecundas, que se dão entre pessoa e pessoa, e das quais se destacam arbitrariamente estes exemplos, nos vinculam incessantemente uns aos outros. Em cada momento fiam-se fios deste gênero, se abandonam, se tornam a recolher, se substituem por outros, se tecem com outros. Aqui se encontram as interações que se produzem entre os átomos da sociedade, e que somente são acessíveis ao microscópio psicológico; mas produzem toda a resistência e elasticidade, a variedade e a unidade desta vida da sociedade, tão clara e tão misteriosa. (SIMMEL, 1983, p. 72)

Portanto, o autor alemão nos oferece a oportunidade de enxergar sociedade em qualquer uma das pequenas ações do cotidiano, por conta das relações que os indivíduos necessitam estabelecer para constituir uma vivência social. É nesse sentido que Simmel, ao buscar definir quais questões devem ser abarcadas pela sociologia - o que seria, portanto, especificamente social, frente aos assuntos individuais - utiliza a ação social como argumento para suas afirmações:

A sociedade existe onde quer que vários indivíduos entram em interação. Esta ação recíproca se produz sempre por determinados instintos (Trieben) ou para determinados fins. Instintos eróticos, religiosos ou simplesmente sociais; fins de defesa ou ataque, de jogo ou ganho, de ajuda ou instrução, estes e infinitos outros fazem com que o homem se encontre num estado de convivência com outros homens, com ações a favor deles, em conjunto com eles, contra eles, em correlação de circunstâncias com eles. Numa palavra que exerça influência sobre eles e por sua vez que as receba deles. Essas interações significam que os indivíduos, nos quais se encontram aqueles instintos e fins, foram por eles levados a unir-se, convertendo-se numa unidade, numa “sociedade”. Pois unidade em sentido empírico nada mais é do que interação de elementos (SIMMEL, 1983, p.59-60)

Para essa relação, Simmel oferece um nome: sociação2 (em alemão:

Vergesellschaftung). Para que haja sociedade, é necessário, apenas, que hajam

dois ou mais indivíduos interagindo, formando uma sociação. Essa sociação é consciente e imbuída de sentido e intuito: quando falo com alguém sobre a situação política de meu país, desejo estabelecer uma espécie de relação; quando se forma uma família por meio de um casamento, também se deseja estabelecer relação. Em ambas as suposições, sociações foram criadas, portanto, fez-se e transformou- se a sociedade:

2 Em algumas traduções o termo sociação é traduzido como associação, ou sociedade. optamos pela

primeira opção, por compreender que em suas relações os indivíduos estão sociados. Essa tradução é utilizada por Evaristo de Moraes Filho, no livro Georg Simmel: Sociologia (1983).

Por “associação”, Simmel entende os processos de interação (Wechselwirkung) microssociológicos que são o cadinho da sociedade. Para constituir uma associação, não basta interagir, é preciso ainda que os indivíduos em interação “uns com, para e contra os outros” [SE, p. 121, GSG 11, p.18] formem, de alguma maneira, uma “unidade”, uma “sociedade” e estejam conscientes disso. É preciso que o indivíduo saiba que, agindo com os outros, ele determina tanto suas ações quanto é determinado por elas e que esteja consciente de que forma com eles, uma unidade de ordem social. “A consciência de formar com os outros uma unidade”, diz Simmel “é aqui a única unidade em questão” [GSG 1, p. 369] (VANDENBERGHE, 2005, p.87). A ideia de sociação se conecta intrinsecamente com a maneira como Simmel compreende a sociedade, separando-a em conteúdos e formas, por isso de sua sociologia ser denominada de formal, pois o autor busca compreender a forma que as diversas sociações possuem e não se deter a seus conteúdos particulares. Por conteúdos sociais entendem-se todas as expressões de interesse dos indivíduos que o movem para uma determinada ação, já as formas sociais são as interações realizadas por dois ou mais indivíduos que fazem com que a ação de fato se realize. Por exemplo, o conteúdo de uma disputa entre duas ou mais pessoas pode ser o ódio, o amor, a concorrência por maior prestígio, etc. Nesse caso a disputa seria nossa forma social, a maneira com a qual indivíduos escolheram criar uma sociedade (sociar-se) para resolver suas questões, enquanto os conteúdos seriam os temas da disputa:

(...) designo como conteúdo ou matéria da sociação tudo quanto exista nos indivíduos (portadores concretos e imediatos de toda a realidade histórica) - como instinto, interesse, fim, inclinação, estado ou movimento psíquico - , tudo enfim capaz de originar ação sobre outros ou a recepção de suas influências. Em si mesmas, estas matérias com que se enche a vida, essas motivações, ainda não chegam a ser social. Nem a fome nem o amor, nem o trabalho nem a religiosidade, nem a técnica nem as funções e obras da inteligência constituem ainda sociação quando se dão imediatamente e em seu sentido puro. A sociação só começa a existir quando a coexistência isolada dos indivíduos adota formas determinadas de cooperação e de colaboração, que caem sob o conceito geral da interação. A sociação é, assim, a forma, realizada de diversas maneiras, na qual os indivíduos constituem uma unidade dentro da qual se realizam seus interesses. E é na base desses interesses - tangíveis ou ideais, momentâneos ou duradouros, conscientes ou inconscientes, impulsionados casualmente ou induzidos teleologicamente - que os indivíduos constituem tais unidades (SIMMEL, 1983, p. 60)

O conflito, a subordinação e a cooperação são as formas de sociação que nos interessam ao propor uma relação entre a sociologia formal de Simmel e o ethos jornalístico. É sabido, com a contribuição dos estudos voltados ao fazer jornalístico

(Newsmaking) que jornalistas apesar de terem certa autonomia na produção diária de seus conteúdos, estão subordinados à uma lógica de produção. Tratam-se de regras e contratos, tanto com a empresa que financia a estrutura produtiva do veículo de comunicação, quanto do público a quem se destinam. Ser um mediador dos interesses particulares do veículo, assim como os interesses gerais do público para o qual se imagina escrever, é a função desempenhada por esses agentes, que para atingir esse objetivo por vezes acabam por entrar em confronto com a própria estrutura capitalista que mantém seus contratos trabalhistas. Outras vezes pode subordinar-se a essa mesma estrutura para a manutenção de sua ocupação profissional. Pode ainda cooperar nos momentos em que acredita ser interesse de ambos a construção de um conteúdo jornalístico que atenda às necessidades de seu público.

Por mais que existam essas nuances, o estado de conflito parece sobressair- se quando são colocadas em oposição a estrutura administrativa da empresa jornalística e seu corpo editorial. Para Simmel, essa situação é explicada, pois, os agentes que mantém uma sociação que tem por base o conflito, estão envoltos por certas regras pré-estabelecidas, que acabam por manter a sociação como tal. A guerra quase que mitológica da cultura jornalística, entre a redação e a direção do jornal, na verdade servem de ponto para que ambos se mantenham enquanto tais e funcionando como sociedade.

(...) as partes misturadas que “se unem para lutar” [p.304] aceitam e reconhecem (ou pelo menos, presume-se que o façam...) de modo recíproco a existência de normas e regras moderando o combate, tais como aquelas codificadas no Tratado de Genebra, de 1949. Passando da guerra às desavenças conjugais, pode-se, de resto, observar com Simmel que, em certos casos, a discórdia pode ser um índice indireto da estabilidade do casal. Como “se sabe que uma crise não pode afetar os fundamentos da relação” [p.315], não é necessário manter a paz a todo custo. Levando-se em conta isso, os conflitos podem se exprimir mais livremente (VANDENBERGHE, 2005, p.120)

Compreendemos, portanto, que o ethos jornalístico representa a sociação entre a instituição responsável pela publicação dos veículos (em nosso caso a empresa jornalística) com a pessoa que produz esse conteúdo (jornalista), levando em consideração uma projeção para quem essa mensagem se destina (o público), projeção essa que pode inclusive ser distinta entre instituição e produtor de conteúdo.

Nessa sociação podem existir diversas formas de interação que representam forças mais ou menos influentes no ato de enunciação, porém a forma que dá o tom da sociação é o conflito entre as partes envolvidas. Além do conflito, vale ressaltarmos a existência das outras formas já citadas que fazem parte dessa relação entre jornalistas e empresa jornalística: a cooperação e a subordinação. Essas formas terão ligações mais ou menos intensas conforme os agentes que dela fazem parte, de acordo com seu posicionamento institucional. Como exemplo didático: para um estagiário que entra em uma redação a subordinação a seus superiores é a forma que pode acabar dando forma a relação, sendo mais evidente no discurso jornalístico o tom da própria empresa do que do jornalista em questão. Essa situação pode ganhar outros contornos para um jornalista reconhecido e renomado na área da comunicação, fazendo com que a cooperação ou o conflito sejam a forma mais frequente nessa sociação, moldando o tom discursivo do texto, deixando a persona do jornalista mais evidente, para esse caso temos diversos exemplos José Hamilton Ribeiro, Eliane Brum, Caco Barcelos, são alguns que podem ser citados. Caberá ao analista de comunicação, ao compreender o ethos, verificar a complexidade das relações no ato de enunciação, buscando entender como esse ethos discursivo

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