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As diferentes realidades suas relações com o discurso jornalístico

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CAPÍTULO 1 – O JORNALISMO ENQUANTO PRÁTICA DISCURSIVA

1.1 As diferentes realidades suas relações com o discurso jornalístico

A realidade pode ser entendida de diversas maneiras, a mais tradicional é aquela que a enxerga como algo externo aos indivíduos, nesse modelo, que podemos ter como uma boa representante a ciência positivista, a verdade e a integridade das coisas pertencem a um mundo externo, quase que puro em sua essência, que

acontece independente da vontade dos indivíduos. Porém, podemos entender a

realidade como algo que para além de estar estruturada, pode ser estruturável, ou seja, construída conforme é vivenciada. Nesse caso, uma construção dos indivíduos em estado de interação, uma trama de significações é o que acaba por ser o real. Jorge A. Gonzalez (2007), ao estudar a epistemologia do conhecimento, nos apresenta uma ideia que gira em torno deste tipo de realidade:

Do ponto de vista epistemológico, podemos afirmar com toda clareza que a realidade não está estruturada, é estruturável; não está ordenada, é ordenável, mas não de qualquer forma, pois, não se deixa estruturar de qualquer modo. A “realidade” é teimosa, insistente, tem suas próprias determinações. Devido a elas, a “realidade” não é somente estruturável, também é estruturante. Nos faz coisas, nos marca, nos coloniza, nos delimita e, a sua maneira, nos força a interagir com e dentro de suas condições (GONZALEZ, 2007, p.15) (Tradução nossa).

No pensamento de González é possível ver traços de uma realidade exterior ao ser, porém, o autor nos mostra que dentro de cada conhecimento gerado, cada área científica criada, existe uma realidade, uma visão sobre um fato, por isso, a realidade pode ser uma estruturação por parte de quem a faz. Por exemplo, um biólogo ao olhar um ser humano vê nele toda uma realidade construída, uma

percepção, na qual o funcionamento dos órgãos deve fazer sentido, ele buscará

esse sentido; diferente da visão de um psicólogo, que analisa a relação que esse indivíduo tem com seu subconsciente e o meio social que o rodeia; que também será diferente de um sociólogo, que buscará interpretar a sociedade que esse indivíduo vive por meio das organizações e articulações que ela se propõe. Para além das ciências, podemos perceber essa visão de realidade em situações cotidianas: alguns professores, alunos e funcionários veem e vivem um prédio como sendo uma escola; para um encanador, esse mesmo lugar, pode ser apenas mais um prédio com problemas em sua tubulação hidráulica; enquanto para alguns governantes essa mesma escola pode ser mais um número com o qual não gostariam de lidar. Sobre

um mesmo fato estarão presentes diferentes formas de enxergá-lo e diversas formas de vivê-lo. Diversas realidades são construídas conforme as significações e conhecimento que dela fazem parte.

Frederico Tavares (2012), utilizando como base os pensamentos de Berger e Luckmann, nos apresenta justamente essas duas possíveis interpretações do que podemos chamar de realidade. Em um primeiro momento, podemos entendê-la como um universo anterior ao indivíduo. Essa realidade precederia os indivíduos como algo que possui uma essência em si, um lugar material, bruto, quase como tangível; já em uma segunda abordagem seria possível ater-se às representações realizadas pelos indivíduos, entendendo que a realidade é interpretada e passa a existir ao ser significada, em dado contexto, pelos agentes que nela se inserem. É a partir desta segunda visão que buscamos analisar a construção discursiva do jornalismo, na realidade que é significada cotidianamente.

A antropologia foi uma ciência que bastante contribuiu com essa discussão, ao estabelecer uma ligação mais direta com seu objeto de estudo, a alteridade. A disciplina precisou rever com mais ênfase às relações que estabelecia com essas diferentes formas de ver o mundo. Marshall Sahlins (1997), antropólogo e professor emérito da Universidade de Chicago, foi um dos principais nomes que transformaram o conceito de cultura. Com sua contribuição, a cultura deixou de ser estática e adquiriu a noção de estar em constante transformação e ressignificação por meio da ação cotidiana dos indivíduos que dela fazem parte.

Sahlins, ao analisar a morte, no Havaí, do capitão James Cook, famoso navegador britânico, mostrou como o povo havaiano adaptou à sua cultura e seu próprio sistema de significações, a chegada da tripulação inglesa em suas terras. O autor avaliou como os sentidos eram interpretados de maneira bastante diferente por cada um dos envolvidos no evento. Na abertura do livro Ilhas de História, nos faz compreender de maneira clara a dinâmica que adota em sua análise:

A história é ordenada culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os esquemas de significação das coisas. O contrário também é verdadeiro: esquemas culturais são ordenados historicamente porque, em maior ou menor grau, os significados são reavaliados quando realizados na prática. A síntese desses contrários desdobra-se nas ações criativas dos sujeitos históricos, ou seja, as pessoas envolvidas. Porque, por um lado, as pessoas organizam seus projetos e dão sentido aos objetos partindo das compreensões preexistentes da ordem cultural. Nesses termos, a cultura é historicamente reproduzida na ação. (SAHLINS, 1997, p. 7)

Para esse processo de significações o antropólogo americano dá o nome de reavaliação funcional das categorias. “(...) os nomes antigos, que estão na boca de todos, adquirem novas conotações, muito distantes de seus sentidos originais. Esse é um dos processos históricos que chamarei de ‘a reavaliação funcional de categorias’". (SAHLINS, 1997, p.10). É, portanto, por meio da vivência que as estruturas sociais são construídas, consecutivamente, a realidade particular de cada cultura também passa a existir por meio desse movimento.

A também antropóloga, Lilia Schwarcz (2001), nos traduz o pensamento de Sahlins, deixando claro que por mais que novos significados sejam acrescentados a uma cultura, esses sempre levarão em conta os valores anteriores como ponto de referência para essa inclusão:

As categorias alteram-se na ação, mas guardam um diálogo com estruturas culturais anteriores. Isto é, trata-se de selecionar um conjunto de relações históricas que, ao mesmo tempo, reproduzem velhas categorias culturais e lhes dão novos valores retirados de um contexto pragmático. (SCHWARCZ, 2001, p. 130)

Essa noção não se expressa apenas quando colocamos em confronto culturas completamente diferentes umas das outras, mas também em nosso cotidiano. Agnes Heller (1970) nos oferece uma boa noção de como o dia a dia, vivido e (re)significado constantemente, cria a história. Essa visão faz com que indiretamente possamos compreender a realidade como sendo intrínseca às ações dos indivíduos, para a autora húngara, a história não se dá em um ambiente externo a nós, mas sim em nosso fazer cotidiano:

A vida cotidiana não está “fora” da história, mas sim no “centro” do acontecer histórico: é a verdadeira “essência” da substância social. (...) As grandes ações não cotidianas que são contadas nos livros de história partem da vida cotidiana e a ela retornam. Toda grande façanha histórica concreta torna-se particular e histórica precisamente graças a seu posterior efeito na cotidianidade. O que assimila a cotidianidade de sua época assimila também, com isso, o passado da humanidade, embora tal assimilação possa não ser consciente, mas apenas “em-si”. (HELLER, 1970, p. 20)

Podemos afirmar que é no viver do dia a dia que as estruturas sociais são refutadas ou reafirmadas. Os indivíduos possuem a capacidade de ressignificar o que lhe é oferecido, a ponto de transformá-lo, mesmo que minimamente, em outro novo, ao mesmo tempo em que retomam o passado por meio de suas ações.

criam a história, como aponta Heller, mas também o que conhecemos com

identidade; organizam seu próprio viver, ao mesmo tempo em que dão significado

ao que lhes rodeia, atribuindo certo valor a um elemento e não atribuindo a outro.

Seguindo essa linha de pensamento, Patrick Charaudeau (2006) afirma que toda significação de uma realidade é dada por meio de seus integrantes se configurando em um fragmento do real, e não de sua totalidade, sendo um erro buscar uma essência no que entendemos como realidade:

Não há captura da realidade empírica que não passe pelo filtro de um ponto de vista particular, o qual constrói um objeto particular que é dado como um fragmento do real. Sempre que tentamos dar conta da realidade empírica, estamos às voltas de um real construído, e não com a própria realidade. Defender a ideia de que existe uma realidade ontológica oculta e que, para desvelá-la, é necessário fazer explodir falsas aparências, seria reviver um positivismo de má qualidade (CHARAUDEAU, 2006, p.131)

O autor continua mostrando que “o espaço social é uma realidade empírica compósita, não homogênea, que depende, para sua significação, do olhar lançado sobre ele pelos diferentes atores sociais, através dos discursos que produzem para tentar torná-lo inteligível” (CHARAUDEAU, 2006, p. 131).

A objetividade jornalística depõe contra essas visões. Ao buscar e basear seu discurso legitimador em fontes de informação plurais, que presenciaram esse ou aquele acontecimento, o jornalismo busca recriar uma realidade existente. O jornalismo deseja reproduzir o fugaz momento do acontecimento, se propõe tirar uma fotografia, mas desconsidera que há uma câmera operando e direcionando seu olhar, tenta juntar os pedaços de um espelho esfacelado sem ver que nele existem fissuras e partes que não se encaixam mais.

A práxis e os manuais editoriais, atualmente reconhecem essa falta de capacidade em reproduzir fielmente a realidade, porém, nosso argumento se ancora em um espaço mais profundo e subjetivo do discurso jornalístico, algo que o caracteriza como tal e que formata a visão epistemológica que a atividade lança ao mundo, já que segundo as bases desse discurso o mundo acontece, ao invés de ser construído cotidianamente pelos indivíduos que dele fazem parte.

Buscando estabelecer uma lógica dentro das características contraditórias do jornalismo Muniz Sodré (2012) mostra que há na construção do discurso jornalístico

opacidades de seu próprio mito” (SODRÉ, 2012, p, 13). Quando falamos que se trata

de um valor epistemológico do discurso jornalístico queremos dizer que:

A informação jornalística parte de objetos primariamente tidos como factuais, para obter, por intermédio do acontecimento, alguma clareza sobre o fato sócio-histórico. Só que a positivação do fato é aí associada a um funcionalismo de natureza industrial que define a atividade informativa como mera produção e distribuição de relatos referentes a uma realidade já dada como pronta e acabada (SODRÉ, 2012, p.32).

O pacto do leitor com o jornal se dá no âmbito da credibilidade, mesmo que o primeiro tenha plena noção de que jornal não é detentor da “verdade absoluta”, a técnica objetivista acaba por preencher essa falta, fazendo com que o conteúdo noticiado ganhe status de verdade, movendo e moldando nosso cotidiano. Pelo fato de cada vez mais ser questionado sobre o monopólio do relato cotidiano e sua falta de conexão com as mais variadas realidades, essa posição precisa justificar-se a ponto da objetividade jornalística ser levada ao âmbito do direito humano e não um artifício que norteia sua base discursiva:

A credibilidade - pedra de toque das relações de confiança entre o público e o jornal e, portanto, o principal capital simbólico do jornalismo - decorre de um pacto implícito entre o profissional da informação e o leitor. É um pacto induzido pela bandeira da objetividade, fincada no solo da cultura jornalística desde meados do século XIX, quando se começa a fazer uma distinção entre texto opinativo e notícia, certamente como rescaldo da fé iluminista no conhecimento objetivo garantido pela razão. Mas evidentemente ninguém de bom-senso atribui, hoje, motivações gnoseológicas ao jornalismo, que tem sido sem dúvida até agora uma prática industrial com implicações ético- políticas. Estas foram debatidas por jornalistas em organismos internacionais, em várias ocasiões, ao longo de todo o século XX, o que contribuiu para o direcionamento da ideia de objetividade no sentido de um direito humano, ou seja, direito que teriam os indivíduos de “receber uma imagem objetiva da realidade” (SODRÉ, 2012, p. 42-43)

Duas autoras, Silvia Lisboa e Marcia Benetti (2015, p. 11), abordam essa desfaçatez do discurso jornalístico, afirmando que ele se apresenta como uma crença verdadeira justificável. Necessita fazer-se crer como verdadeiro dentro da construção

cotidiana por meio de uma negociação que estabelece com seu público, já que a

credibilidade se constrói principalmente sob o olhar e julgamento do outro e não de quem a busca.

As autoras também afirmam que a atividade jornalística se baseia na questão da verdade como correspondência frente ao real. Esse tipo de verdade, que usa a

semelhança dos acontecimentos como justificativa para legitimar-se, é a base crível do jornalismo, portanto, o discurso jornalístico possui credibilidade conforme maior correspondência que estabelece com esse “real”:

A primeira, a verdade como correspondência ao real, é particularmente útil na compreensão do que torna o jornalismo conhecimento. Sustentamos aqui a ideia de que a verdade no jornalismo se ampara na ligação que seu discurso (e seus enunciados) mantém com a realidade, considerando a existência ontológica dos fatos (AUSTIN, 1961). Há um pressuposto nessa teoria de que há uma realidade externa (extramental) que independe do observador para existir (LISBOA, 2012). A verdade proposicional implicada na crença no jornalismo está amparada, portanto, na sua relação de correspondência com o real. (LISBOA; BENETTI, 2015, p. 13)

Essas leituras fazem com que encontremos um choque de visões entre a práxis jornalística atual e o discurso na qual está fundada e foi influenciada. Para se fazer crer, o jornalismo justifica a procedência de um real externo a nós, não entende em sua formação discursiva as subjetividades dos sujeitos que compõem a sociedade.

A distinção entre um jornalismo verdadeiro e um jornalismo verossímil, nos abre diversos questionamentos, pois, os conceitos que baseiam a concepção da prática jornalística atualmente estão postos frente essa ideia da realidade externa ao indivíduo. Seguindo nossa visão, o discurso jornalístico constrói, hoje, sua objetividade em uma materialidade inexistente, retrata como verdadeiro, uma construção de caráter polissêmico, que não possui verdade em si, mas ganha sentido na significação atribuída a ela.

O fazer jornalístico não se trata, portanto, de produzir verdades correspondentes a um mundo real essencial existente fora dos indivíduos, mas sim, em estabelecer uma relação verossímil com o mundo de significações vivido por esses indivíduos. É por meio da simulação que o jornalismo se faz verdadeiro e possuidor de credibilidade. Essa situação não seria um problema caso o jornalismo não atribuísse a si o caráter de verdadeiro, atividades outras também possuem essa relação com a verossimilhança, mas acabam por não serem questionadas, justamente por não buscarem transformá-la em verdade universal ligada ao cotidiano dos indivíduos, é o caso, por exemplo, da literatura.

Sabemos que um acontecimento não repete na história, ele existe naquele instante, daquela forma, por mais que diversas situações possam se assemelhar, não serão as mesmas do passado, pois, o tempo não se repetirá.

Partindo dessa premissa, entendemos que a prática jornalística é uma reconstrução de um fato social, que além de não poder ser totalmente reconstituído levando em consideração todas as variáveis que o envolve, passará pela subjetividade de quem produz o conteúdo jornalístico, se tornando assim, mais um discurso em meio de tantos outros, dotado de objetivos e ideologias.

Voltemos a Charaudeau (2006) para entender como um acontecimento é construído. Para ele, o “mundo a comentar” nunca é transmitido tal como ele é, sempre é necessária uma interferência do sujeito que irá enunciar, é preciso que ele crie um sentido, ordene o acontecimento dentro de uma lógica, ao ponto dele se tornar inteligível ao outro:

(...) o acontecimento nunca é transmitido à instância de recepção em seu estado bruto; para sua significação, depende do olhar que se estende sobre ele, olhar de um sujeito que o integra num sistema de pensamento, e assim fazendo, o torna inteligível. (CHARAUDEAU, 2006, p. 95)

O autor segue em seu pensamento mostrando que os fatos jornalísticos são selecionados por sua “atualidade”, “socialidade” e “imprevisibilidade” e por estarem ligados à esfera pública. Enumera que os jornalistas e as empresas jornalísticas criam critérios para cada uma dessas categorias, garantindo assim a construção do acontecimento e seu relato (CHARAUDEAU, 2006, p. 101).

Acreditamos justamente ser neste processo de categorização que a verossimilhança se manifesta, esses elementos quanto mais ou menos trabalhados, garantem o entendimento do fato como sendo mais ou menos crível. Quanto mais atualidade, socialidade e imprevisibilidade um fato jornalístico possuir, mais próximo de se fazer verossímil ele será e maior suas possibilidades de encontrar aceitação diante de um grande público.

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