• Nenhum resultado encontrado

6. DA IMPLICATURA À MODULAÇÃO

6.4 A MODULAÇÃO DA CONJUNÇÃO

Para Recanati, um processo como a modulação é essencial para a comunicação humana porque “nós usamos um estoque (mais ou menos) fixo de lexemas para falar sobre uma variedade indefinida de coisas, situações e experiências.” (RECANATI, 2004, p. 131). Essa é uma das intuições fundamentais que motiva o contextualismo, desde, pelo menos, os trabalhos de Austin:

O mundo real, para as intenções e propósitos dos seres humanos, é indefinidamente variado e nós não temos a capacidade de lidar com um vocabulário indefinidamente vasto. Além disso, em geral, também não fazemos questão de insistir nas mais mínimas diferenças detectáveis entre as coisas, mas sim nas suas similaridades relativas. É por isso que, em nossa experiência (tanto como indivíduos quanto como uma espécie) não podemos antecipar no nosso vocabulário os caprichos ainda inauditos da natureza. (AUSTIN, 1970, p. 146-147)

Retomando a discussão da conjunção, imagine quantos lexemas teríamos que possuir para expressar todo o repertório possível de variações de interpretações causais, temporais e espaciais da conjunção

que vemos em (50), (2)-(6), (8) e (9). Daí vem a implausibilidade das teorias que postulam ambiguidades para o item lexical “e”. O mais econômico, como venho defendendo, é sustentar, a despeito das várias interpretações possíveis, uma entrada lexical única e unívoca para o “e”, que codificaria semanticamente apenas a função FUNDIR.

O que ocorre com FUNDIR em casos como (50), (2)-(6), (8) e (9) é, então, precisamente, a aplicação da função modulação, da qual resulta, pragmaticamente, uma representação que estabelece uma relação mais rica entre os elementos integrados (relações temporais, causais, espaciais, etc.). Como a representação resultante acrescenta informações conceituais ao input linguisticamente codificado (FUNDIR), assumirei que a modulação da conjunção se dá sob a forma de um enriquecimento. FUNDIR é, portanto, conceitualmente enriquecida em uma estrutura conceitual mais complexa. Retomemos os exemplos (50) e (50a) citados acima:

(50) O policial atirou no bandido e o bandido morreu.

(50a) O policial atirou no bandido e, por isso, logo em seguida, o bandido morreu.

Simplificando um pouco a metalinguagem adotada por Jackendoff (1982, 1992), as representações semânticas da sentença (50) e de seu provável enriquecimento (50a) seriam49:

49 A principal simplificação empregada aqui – que também é recorrentemente

adotada por Jackendoff, para fins de concisão – é a ausência da decomposição dos conceitos lexicais. Uma decomposição relevante aqui seria a do conceito de CAUSAR, que não expressa aqui meramente uma ideia de causalidade genérica, mas sim a ideia de uma causa suficiente e dolosa. Essas informações teriam que entrar, na forma de modificadores restritivos, nesta representação conceitual de CAUSAR. Além disso, internamente a essa instanciação particular da função CAUSAR, temos também uma instância específica da função DEPOIS – pois nesse caso a ideia de causalidade contém também uma ideia de sucessão temporal rápida (ao contrário do exemplo (6)).

(50’)

[Evento FUNDIR([Evento ATIRAR([Objeto POLICIAL], [Objeto BANDIDO])], [Evento MORRER ([Objeto BANDIDO])])]

 enriquecimento

 (50a’)

FUNDIR([Evento ATIRAR([Objeto POLICIAL],[Objeto BANDIDO])],

[Evento MORRER ([Objeto BANDIDO])])]

[Evento CAUSAR([Evento ATIRAR([Objeto POLICIAL], [Objeto BANDIDO])],

[Evento MORRER ([Objeto BANDIDO])])]

Evento

Como podemos observar, todos os conceitos presentes em (50’) estão também presentes em (50a’): [Evento ATIRAR], [Objeto POLICIAL], [Objeto BANDIDO], [Evento MORRER], e, obviamente, o próprio conceito de [Evento FUNDIR], que continua encabeçando a representação enriquecida. A única diferença entre as duas representações é a porção acrescentada pelo contexto, que, corresponde à variável Y na fórmula E2 dada acima. O enriquecimento em questão é a função conceitual bivalente [Evento CAUSAR]que figura, em (50a’), como um modificador do Evento de FUNDIR, de uma maneira semelhante ao modo como [Propriedade VERMELHO] figuraria como um modificador do conceito [Objeto CHAPÉU] em “chapéu vermelho”:

CHAPÉU

[Propriedade VERMELHO]

Objeto

Não é, contudo, exatamente a mesma maneira. O que se verifica em (50a’) é um arranjo peculiar no qual uma estrutura conceitual sentencial – um Evento – atua como modificador interno de outro Evento. Essa estruturação tem o sabor familiar de uma estrutura de ligação de variáveis, ou de abstração- (cf. JACKENDOFF (2002)). Simplifiquei a representação em (50a’) omitindo quaisquer variáveis, mas essa omissão me obrigou a duplicar os Eventos de ATIRAR e de

MORRER (e toda a sua estrutura interna) como se eles fossem livres e pudessem variar independemente dos Eventos que saturam na função FUNDIR acima. Eles não são independentes, justamente porque, na verdade, eles teriam que ser representados como variáveis ligadas por um operador . Trata-se necessariamente dos mesmos eventos que são integrados por FUNDIR. Algo semelhante ocorre com as representações semânticas das sentenças relativas como

O musical que Bernstein compôs ficou famoso.

Aí também temos um Evento – [Evento COMPOR([Objeto BERNSTEIN], [Objeto X])] – atuando como

modificador (desta vez do Objeto MUSICAL). Esse Evento também apresenta, em sua estrutura interna, uma variável ligada (o segundo argumento de COMPOR) que precisa variar de acordo com os valores introduzidos por MUISCAL. O musical que Bernstein compôs tem que ser obrigatoriamente o mesmo musical que ficou famoso. Embora altamente desenvolvido em outras tradições, o formalismo exato para essas estruturas não foi inteiramente assimilado pela semântica conceitual. Não tenho condições de aperfeiçoar essa assimilação aqui; no entanto, a ideia de ligação entre constituintes conceituais é importante para formalizarmos um padrão geral para os casos de enriquecimento da conjunção. Vou representá-la, simplesmente, anotando os constituintes que estão ligados entre si com a mesma variável e com os mesmos subscritos. Tendo isso em vista, podemos formalizar todos os processos de enriquecimento da conjunção da seguinte maneira, como uma especificação do esquema de enriquecimento E2:

(ModConj):

[Situação FUNDIR([Situação X1], [Situação X2])]

 enriquecimento

FUNDIR ([Situação X1], [Situação X2]) [Situação Y ([Situação X1], [Situação X2]) Situação

Todos os casos examinados até aqui em que as informações pragmaticamente interpretadas a partir da conjunção integram a estrutura proposicional dos enunciados se enquadram nesse esquema geral ModConj.50 Em (3), por exemplo, a função conceitual que preenche a variável Y é uma instância da função [Evento DEPOIS] que não contém, em sua decomposição, um conceito que implique imediaticidade de sucessão. Já em (6) teremos uma instância da função CAUSAR, marcada com a categoria ontológica de Estado Estático – que ela herda da eventualidade [Estado Estático SER ([Objeto CARVALHINHO], [Propriedade FÃ])]. Nesse caso (ao contrário de (50a’)) a função CAUSAR não inclui em sua estrutura interna nenhuma instância de DEPOIS, pois isso resultaria em uma estrutura conceitualmente malformada (dado que, como vimos, Estados estáticos jamais figuram como argumentos de DEPOIS). Em (9), teríamos, possivelmente, preenchendo Y, uma instância da função espacial CONTER, que não atuaria – como geralmente ocorre – situando Objetos em Lugares (ou Contêineres), mas sim situando um Evento em um Estado (omito aqui a contraparte semântica do adjunto “3 anos atrás” e a estrutura interna dos conceitos sentenciais):

FUNDIR ([Estado EU ESTAR EM PARIS], [EventoEU VISITAR A TORRE EIFFEL])

[EventoCONTER([EstadoEU ESTAR EM PARIS],[EventoEU VISITAR A TORRE EIFFEL])

Situação