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6. DA IMPLICATURA À MODULAÇÃO

6.6 COMO DOMAR A MODULAÇÃO?

Mesmo levando em conta essa (e outras) restrições conceituais, o repertório de relações que podem ser contextualmente comunicadas a partir da conjunção é vastíssimo. Isso é assim porque a nossa teoria, no presente estágio de sua exposição, é ainda bastante “tolerante” em relação aos tipos de interpretações que ela aceita para a conjunção. Ela permite que a variável Y em ModConj assuma uma variedade desconcertantemente vasta de valores, a depender da excentricidade dos contextos em que a conjunção é produzida. Mesmo nos limitando às relações temporais e causais entre Eventos – observando, portanto, às restrições conceituais que enunciei – a diversidade de leituras é incalculável. Há relações temporais mais e menos distantes, relações causais voluntárias, imediatas, suficientes, necessárias, deliberadas, diretas, indiretas e todo um espectro de casos híbridos e indefinidos. Parece que, mesmo respeitando todas as restrições indicadas, o número de leituras disponíveis para a conjunção em qualquer enunciado em particular é potencialmente infinito. Retomemos o seguinte exemplo:

(4) Guilherme foi atingido no pescoço e morreu sentado no banco de seu carro.

Como nós selecionamos, de maneira uniforme e quase sempre exata, uma interpretação temporal imediata e de causalidade suficiente para esse uso da conjunção? O que nos impede de a interpretarmos como (4a) ou (4b) abaixo?

(4a) Guilherme foi atingido no pescoço e (doze anos mais tarde, devido a um câncer,) morreu sentado no banco de seu carro.

(4b) Guilherme foi atingido no pescoço e (dezessete milissegundos depois) morreu sentado no banco de seu carro.

Não é cognitivamente realista supor que o falante tenha que avaliar essas e as inumeráveis outras hipóteses interpretativas, uma a

uma, para chegar à compreensão adequada da conjunção. Dada a regularidade tremenda que observamos, é preciso postular que o falante dispõe de algum mecanismo que o guie, quase que imediatamente (e inequivocamente), em direção à intepretação correta da conjunção. Mas o simples raciocínio pragmático parece ser demasiado variável, caótico e falho para cumprir essa tarefa. Prestar-lhe a isso seria, na visão de Stanley (2002), equivalente a alegar que interpretamos a conjunção com os mesmos mecanismos que utilizamos para interpretar “chutes debaixo da mesa e cutucadas no ombro” (p. 35).

Essas preocupações fazem eco a uma objeção que é comumente levantada contra aqueles que admitem outros tipos de intrusão de processo pragmáticos opcionais na proposição (cf. STANLEY 2002, 2014; CAPPELEN; LEPORE, 2005): objeção segundo a qual inserir elementos contextuais no reduto secular da semântica (i.e., na proposição) tornaria a comunicação impossível.

Quando o contextualista afirma que o que é dito está sujeito a profundas influências contextuais opcionais – isto é, à modulação –, ele não pretende transformar as condições de verdade em um tipo de conteúdo caótico, que pode variar indefinidamente, à maneira de Humpty Dumpty. Qualquer teoria que acatasse pacificamente essa conclusão estaria, ato contínuo, reduzindo-se ao absurdo. Toda análise contextualista está, portanto, posta diante de um desafio: determinar como falantes, partindo de um mesmo significado literal esquemático (no caso da conjunção, FUNDIR), convergem em um mesmo conteúdo, ou, de algum outro modo, obtêm um razoável sucesso na comunicação, dado que, para além de restrições conceituais altamente tolerantes, não existe qualquer medida pré-estabelecida para o “espaço” de modulação pragmática permitida. Quais seriam então os limites da modulação? Como nós poderíamos deter a aparente supergeração de interpretações que decorre da sua natureza contextual?

A resposta de Recanati (2010) a esse desafio é dupla. Primeiramente, ele defende que esse problema – que Cappelen e Lepore (2005) apelidam de “o argumento do milagre da comunicação” – não surge apenas para o contextualista, mas para qualquer um que admita a influência de fatores contextuais amplos (ou intencionais) na comunicação, isto é, basicamente, para todo mundo. Quase todos os semanticistas e filósofos da linguagem de hoje admitem a necessidade de recorrer a hipóteses sobre as intenções do falante para determinar a referência dos pronomes demonstrativos, e até mesmo dos dêiticos puros como “agora” e “aqui” (pois “agora” pode se reportar tanto à hora,

quanto ao dia, quanto ao ano; bem como “aqui” pode se referir a uma casa, a um bairro, a um país ou mesmo à via láctea). Isto é, mesmo os minimalistas, que admitem que o único processo pragmático primário é a saturação, são obrigados a confessar que o apelo ao contexto amplo ou intencional é necessário para a determinação das proposições, visto que isso é exigido por casos simples e óbvios de saturação, como os demonstrativos. Esse recurso, porém, sempre deixará aberta a possibilidade de incompreensões radicais. Nesse sentido, “mesmo que deixemos os processos pragmáticos opcionais de lado”, a comunicação linguística, tal qual ela é concebida por virtualmente todos, acaba realmente resultando, em alguma medida, “semelhante àquela que envolve chutes debaixo da mesa” (RECANATI, 2010, p. 7).

Em seguida, Recanati observa que a constatação de que a comunicação não é – nem para o contextualista, nem para o minimalista – um milagre deve nos instigar a buscar outra explicação (i.e., uma explicação não-semântica) para o fato de que convergimos em conteúdos proposicionais suficientemente semelhantes e estáveis. A orientação que ele sugere como resposta a esse desafio é a seguinte: “essa estabilidade pode ser explicada por razões psicológicas, e não linguísticas” (RECANATI, 2004, p. 152). Falantes e ouvintes compartilham, em linhas gerais, um mesmo aparato cognitivo (cf. RECANATI, 2010, p. 7), e seria esse aparato cognitivo que garantiria o sucesso da comunicação. A hiperprodutividade da modulação seria, assim, contida por fatores cognitivos.

Poderíamos, para concluir essa discussão, nos perguntar exatamente o que no aparato cognitivo humano possibilita o sucesso da comunicação entre os falantes. O que faz com que eles confluam em direção a um mesmo conteúdo proposicional? Que aspecto da cognição seria responsável por “domar” a modulação? Nem Recanati e nem eu, até o momento, oferecemos uma resposta satisfatória a essas e outras questões semelhantes. Alguns exemplos de “modulações impossíveis” foram explicados com a maquinaria da semântica conceitual neste e no último capítulo, mas os princípios e mecanismos pragmáticos que de fato guiam a modulação foram, via de regra, apenas insinuados informalmente, sem qualquer justificação ou exposição explícita. No capítulo 3 argumentamos contra duas propostas específicas: a máxima griceana do Modo e o Princípio da Informatividade, tal qual desenvolvido por Levinson (1983, 2000). No próximo capítulo atacarei esta que, a meu ver, é a questão mais espinhosa em torno do vasto e heterogêneo fenômeno da conjunção nas línguas naturais. Tratarei de

desenvolver, com mais vagar, a hipótese cognitiva pleiteada por Recanati em resposta ao argumento do milagre da comunicação. Para fazê-lo, recorrerei aos princípios da teoria da relevância, proposta inicialmente por Sperber e Wilson (1995).