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6. DA IMPLICATURA À MODULAÇÃO

6.2 A MODULAÇÃO

A informação, em (50a), de que foi logo depois e por causa de ter levado o tiro do policial que o bandido morreu é, portanto, segundo a minha análise, incorporada à proposição no processo de composição semântica, embora não seja codificada por nenhum item lexical pronunciado na sentença. O “e” codifica semanticamente apenas a função que apelidei de FUNDIR. Como tanto a noção genérica de sequência temporal (DEPOIS) quanto a de causalidade (CAUSAR) não são vetadas pelas categorias ontológicas das eventualidades unidas (a saber, Eventos), a pragmática fica livre para desenvolver inferencialmente FUNDIR em qualquer função conceitual que instancie essas noções.

Concluí que essas e outras informações semelhantes eram casos de influência do contexto na proposição, e não meros casos de implicatura ou, como vimos no capítulo 3, de saturação de lacunas indexicais na sentença. Como se dá, então, essa influência do contexto? Quais são suas características formais?

Se esses traços que chamei, com certa vagueza até aqui, de “enriquecimentos”, “aspectos não-articulados”, “acréscimos”, “elaborações”, “desenvolvimentos” e de “ajustes de sentido” não podem ser nem implicaturas nem saturações (já que não são necessários para que as sentenças expressem proposições completas), o que eles são? Parece que estamos diante de um fenômeno completamente novo, que não se enquadra em nenhuma das classificações anteriores dos processos de influência do contexto na significação. Antes de dar nome a esse novo membro do rebanho, talvez seja proveitoso elencar algumas de

suas características distintivas, com base no que pudemos deduzir a partir das nossas discussões sobre (50) e também do capítulo 3:

(i) O contexto (linguístico ou extralinguístico) contribui com algum elemento à interpretação do enunciado. Trata-se, portanto de um processo pragmático.

(ii) Essa contribuição do contexto é proposicionalmente relevante, isto é, ela afeta o que é dito, a explicatura do enunciado. Trata-se, portanto, de um processo pragmático primário, que atua antes da derivação das implicaturas.

(iii) No entanto, tal contribuição do contexto não é necessária para que o enunciado expresse uma proposição. Ou seja, se o elemento contribuído pelo contexto fosse deixado de lado, o enunciado continuaria a expressar uma proposição completa. Trata-se, portanto, de um processo pragmático primário opcional e livre, ao contrário da saturação, que é um processo pragmático primário mandatório (porque atua somente quando há uma espécie de lacuna na sentença).

(iv) A proposição que resulta desse processo é um desenvolvimento da estrutura conceitual que lhe serve de input (a forma lógica), e não uma outra proposição totalmente independente. Boa parte das representações semânticas que integram a forma lógica estarão também na proposição enriquecida. Isso faz com que, em geral, a proposição enriquecida acarrete a forma lógica.

(v) O processo pragmático primário opcional atua localmente modificando o sentido lexical de alguma expressão ou constituinte da sentença. Ou seja, esse processo não pressupõe a identificação prévia de uma proposição completa para depois suplementá-la com os ajustes adequados (cf. Recanati (2004, p. 27-29; 2010, p. 43-47) e Carston (2002b, p. 70-74)). É essa característica que torna o contextualismo compatível com o princípio da composicionalidade linguística (ainda que em sua versão enriquecida). Nas palavras de Bezuidenhout:

[Essa] construção pragmática do conteúdo atua localmente, no nível das palavras e sintagmas, e não globalmente, no nível das sentenças. No momento em que os mecanismos composicionais estão prontos para amalgamar os elementos para formar um conteúdo proposicional completo, os significados das palavras já estão pragmaticamente modulados, e, portanto, o nível

de significado da sentença é evitado (BEZUIDENHOUT, 2009, p. 63)

São essas cinco qualidades que caracterizam o processo que Recanati (2004; 2010; 2014) chama de modulação. A modulação é uma descrição precisa do tipo de ligação forma/sentido com que ficamos depois de abandonar o princípio da uniformidade da interface entre sintaxe e semântica. Recanati (2010) define-a como como uma função pragmaticamente selecionada que toma os sentidos lexicais das expressões e constituintes como argumentos e entrega, como valor, um sentido contextualmente ajustado.

Há, segundo ele, dois modos amplos de conceber a operação da modulação. Podemos concebê-la como uma função semântica, no sentido referencial: ela operaria sobre a função-interpretação de uma expressão, mudando a sua referência esperada – sem qualquer mediação de um nível conceitual ou representacional. É nesse paradigma que Recanati (2010, p. 45) define formalmente a função mod, que toma como argumento uma expressão e e um contexto c no qual e ocorre. O valor de mod é uma função de modulação g qualquer que seja a mais saliente no contexto c. É g que se aplica à função-interpretação I de e, prevista no léxico. O resultado da aplicação da função pragmaticamente selecionada g à interpretação da expressão e será a referência modulada M de e em c:

mod(e,c)(I(e)) = g(I(e)) = M

Nos casos em que nenhuma modulação se faz necessária e a expressão e recebe sua interpretação lexicalizada – I(e) – “o valor de mod será a função identidade: a literalidade é tratada, portanto, como um caso especial de modulação (nula)” (RECANATI, 2010, p. 45).

A outra maneira de conceber a modulação – que vem sendo favorecida neste trabalho - é como um processo sintático (no sentido amplo de sintaxe), que se aplica a representações conceituais e devolve, como resultado, uma representação conceitual diferente (mais enriquecida, por exemplo). Essa concepção de modulação foi pressuposta quando dissemos que a modulação envolve um desenvolvimento da forma lógica codificada pela sentença. É esse modo de compreender a modulação que se afigura como mais imediatamente compatível com o quadro da semântica conceitual de Jackendoff e com a teoria pragmática que adoto neste trabalho – a teoria da relevância.

Nesse caso, convém adaptar e desenvolver definição de mod de Recanati (2010) acima elucidada para aplicá-la a constituintes conceituais. Sendo g, agora, uma operação inferencial que gera estruturas conceituais a partir de estruturas conceituais prévias, w uma variável para categorias ontológicas, X uma função conceitual qualquer (com ou sem argumentos) lexicalmente codificada por alguma expressão linguística, e Z, uma versão modificada de X (que compartilha boa parte da estrutura interna de X).

mod([w X], c)([w X]) = g([w X]) = [w Z]

6.3 UMA TIPOLOGIA CONCEITUALISTA DA MODULAÇÃO