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6. DA IMPLICATURA À MODULAÇÃO

6.3 UMA TIPOLOGIA CONCEITUALISTA DA

modulação, o que, para mim, equivale a dizer que há três tipos básicos de função que podem preencher a variável g acima: o enriquecimento (enriq), o afrouxamento (afr) e a transferência semântica (trans). Elaborarei, em sequência, uma formalização para cada uma delas segundo o paradigma da semântica conceitual.

No enriquecimento o sentido que resulta da modulação é mais específico do que o sentido lexical inicial. É esse o processo que ocorre quando se dá a formação dos chamados conceitos ad hoc (cf. BARSALOU, 1983) – como quando interpretamos, em alguns contextos, o predicado “fumar” em “João fuma” como veiculando o conceito elaborado [Ação FUMAR ([Objeto MACONHA])] (cf. RECANATI, 2014, p. 5), ou quando interpretamos o conceito [Propriedade CANSADO], em uma sentença como “Não quero ir ao cinema, estou cansado” como

CANSADO

[Propriedade PARA ([Evento SAIR ([Objeto EU])])]

Propriedade

Nos termos da semântica conceitual, o que ocorre nesses dois casos é que um outro constituinte conceitual é combinado ao constituinte que passa pela modulação, limitando a sua extensão e, consequentemente, tornando-o mais informativo. São nesses casos que

observamos os acarretamentos entre os sentidos elaborados e os sentidos inicias. Essa combinação contextual de constituintes pode se dar em qualquer uma das duas maneiras de composição semântica enunciadas desde a teoria de Katz e Fodor (1963): ou por modificação restritiva – na qual o marcador semântico é acrescentado como um traço interno, uma espécie de adjunto da representação original47 – ou, de um modo mais complexo, por uma composição funcional peculiar, na qual a representação agregada concomitantemente cria uma variável no predicado ao qual ela se combina e satura essa variável – como ocorre, plausivelmente, com o predicado “fumar” acima.48

Mais genericamente, temos algo como a função contextual enriq, que pode atuar em uma dessas duas maneiras, sendo Y doravante a porção conceitual provida pelo contexto (que pode pertencer a qualquer categoria ontológica):

47 Há uma tendência persistente – tanto na tradição logicista quanto em teorias

linguísticas como a semântica gerativa – em tentar reduzir a modificação restritiva à composição funcional (cf. JACKENDOFF, 1976, 2002). O modo como isso é feito, em geral, envolve a aplicação da função de verdade . Um “chapéu vermelho” seria algo que é um chapéu e é vermelho. Embora essa abordagem seja, a meu ver, desaconselhável, podemos dar conta dela também com nossa função FUNDIR. Um chapéu vermelho seria, nessa análise, representado semanticamente como: [Objeto FUNDIR([Objeto CHAPÉU],

[Propriedade VERMELHO])]. Uma análise idêntica se aplica aos casos em que a

modificação restritiva é operada via modulação por enriquecimento, como o caso de CANSADO acima: [Propriedade FUNDIR([Propriedade CANSADO],

[Propriedade PARA ([Evento SAIR([Objeto EU])])]. Se todo caso de modificação for, em

última instância, redutível à composição funcional (via conjunção), pode ser o caso que FUNDIR tenha um papel importante na decomposição lexical de várias expressões (por exemplo, verbos que codificam informações sobre modo e movimento).

48 Não estou considerando esse caso como uma simples instância de elipse de

argumento interno, a qual demandaria um processo simples de saturação de uma variável pré-existente. Estou assumindo que existe um conceito de FUMAR, enquadrado na categoria ontológica de Ação, que não exibe uma variável para argumento – isto é, que não necessita de um Objeto para ser fumado. O que o enriquecimento faz nesses casos é justamente prover essa variável e saturá-la. Um caso semelhante é discutido por Recanati (2004, p. 107-109) na sua definição das funções variádicas.

E1: enriq([w X]) = [w X([Y])] ou E2:enriq([w X]) = X [Y] w

E1 é o que ocorre acima com “fumar” e E2 é o que ocorre com “cansado”.

No afrouxamento o que acontece é precisamente o inverso. A extensão do sentido lexical da expressão modulada é, aí, expandida ao invés de restringida. A expressão perde alguns traços semânticos que tinha anteriormente. Esse processo foi percebido por Austin (1970, p. 130) na sua discussão sobre a verdade:

É verdadeiro ou falso que Belfast fica ao norte de Londres? Que nossa galáxia tem o formato de um ovo frito? Que Beethoven era um bêbado? Que Wellington venceu a batalha de Waterloo? Há vários graus e dimensões de sucesso quando fazemos afirmações: as afirmações se adequam aos fatos de uma maneira mais ou menos frouxa – de diferentes maneiras, dependendo da ocasião e dos propósitos.

De acordo com outro exemplo célebre do filósofo inglês, o predicado geométrico “ser hexagonal” pode ter suas condições de aplicabilidade afrouxadas, em um contexto suficientemente informal, para que uma sentença como

A França é hexagonal.

seja tida como verdadeira. A mesma sentença poderia ser julgada falsa em uma aula de geometria, por exemplo – onde todas as características semânticas de “hexágono” seriam levadas a sério. Um outro bom exemplo é o que ocorre com o predicado “estar nu” aplicado a pessoas que estão vestidas com poucas roupas ou mostrando muito a pele. Em todos esses casos, não é o sentido modulado que acarreta a forma lógica mínima, mas o contrário: é a forma lógica mínima (p.ex. “estar sem nenhuma peça de roupa”) que acarreta a proposição contextual (p.ex.

“estar mostrando muito a pele”). Isso ocorre porque o que está envolvido no processo do afrouxamento (afr) é a remoção de um modificador presente na estrutura conceitual que lhe serviu de input:

A: afr X = [w X]

[Y]

w

Por fim, na transferência semântica, fenômeno descrito em detalhes por Nunberg (1995), “o produto não é uma versão nem enriquecida nem empobrecida do conceito literalmente codificado pela expressão inicial: é um conceito diferente, que guarda alguma relação sistemática com o original” (RECANATI, 2004, p. 26). É isso que ocorre com o célebre exemplo:

O sanduíche de presunto acabou de pedir a conta.

No contexto de uma conversa entre os atendentes de um restaurante, o sujeito da sentença será interpretado não como o sanduíche – que, por ser inanimado, não é capaz de realizar ações como pedir a conta –, mas como o cliente que pediu o sanduíche, o COMPRADOR. É importante ver que não é necessário (nem tampouco recomendável) listar [Objeto COMPRADOR([Objeto SANDUICHE])] no léxico, em uma regra de correspondência envolvendo a forma sintática [NP sanduíche]. Algo semelhante sucede também no seguinte exemplo citado por Recanati (2010, p. 5):

Tem um leão no meio da praça.

O conceito [Objeto LEÃO] seria, pelo processo da transferência

semântica, modulado em algo como o conceito [Objeto REPRESENTAÇÃO([Objeto LEÃO])], dado um contexto adequado.

Note-se que o conceito inicial figura como argumento do conceito que resulta da modulação. Essa é uma característica comum entre os processos de transferência semântica observada por autores como Nunberg (1995) e Jackendoff (1997, 2002). O que entra em jogo, em todos esses casos, ao que parece, é um repertório relativamente limitado e regular de funções conceituais de transferência de referência, que permitem aos falantes se referirem a alguns objetos por meio da menção

a outros objetos, que guardam alguma relação específica com o objeto original. Podemos representar o esquema geral de modulação pressuposto em todos esses casos como T abaixo:

T: trans([Objeto X]) = [Objeto Y([Objeto X])]

A variável Y, nesse caso, só poderia ser preenchida por um membro do conjunto restrito de funções conceituais de transferência de

referência. Citamos, acima, dois candidatos possíveis: as funções [ObjetoREPRESENTAÇÃO([Objeto X])] e [ObjetoCOMPRADOR([Objeto X])].

Outra peculiaridade da transferência semântica é que ela só parece se aplicar a (e só resultar em) constituintes conceituais ontologicamente identificados como Objetos.