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3. A INFLUÊNCIA DO CONTEXTO NA PROPOSIÇÃO:

3.4 UM ÚLTIMO RECURSO PARA SALVAR O

abordagem vagamente compatível com as motivações de Grice) frente a tais embaraços é dizer que os enriquecimentos contextuais da conjunção são instâncias de saturação. Se mostramos, de um lado, que tais enriquecimentos afetam a proposição, e, de outro, que eles são influências genuinamente pragmáticas (como já argumentara Grice (1981)), a única saída para o minimalista é alegar que sua provisão é de algum modo necessária para tornar as sentenças com a conjunção semanticamente completas. A atribuição de uma relação temporal entre as cenas descritas por um exemplo como (2) teria de ser compreendida de acordo com o modelo dado pelos dêiticos, isto é, deveria ser considerada, de algum modo, como a atribuição de um valor a uma variável oculta presente na estrutura profunda da sentença. Poder-se-ia, assim, postular que a conjunção projeta, além de um conteúdo verofuncional mínimo, uma variável que deve ser contextualmente saturada por algum tipo de relação factual (sucessão temporal, causalidade, inserção espacial, etc.) saliente.

Entretanto, como argumenta Stanley (2007, p. 39), um dos mais afamados defensores de abordagens desse tipo, “alegações de dependências contextuais não-óbvias devem [...] ser acompanhadas de argumentos para a existência de um constituinte correspondente na forma lógica das construções relevantes”. Essa atitude recomenda prudência na atribuição de variáveis sintáticas ocultas: essas atribuições precisam ser empiricamente motivadas por argumentos sintáticos, e não simplesmente pelo pressuposto de manter uma uniformidade perfeita entre o que está na sintaxe e a proposição que interpretamos. Quando um teórico diz haver uma variável na estrutura profunda de alguma sentença, ele deve mostrar os vestígios visíveis que essa variável deixa, e não simplesmente supor que ela está ali para acomodar os caprichos da sua teoria semântica. Nas suas palavras: “na interpretação semântica, não devemos jamais postular uma estrutura oculta que seja inconsistente com a teoria sintática correta.” (STANLEY, 2007, p. 35)

Não existe praticamente nenhuma proposta na literatura que sugira a existência de qualquer tipo de lacuna conceitual introduzida pela conjunção nas línguas naturais. E há boas razões para essa exiguidade nas propostas. Além da implausibilidade da provável consequência sintática de uma abordagem desse tipo (a presunção de que o item lexical “e” introduz, em algum nível sintático oculto, uma

espécie de pronome não-pronunciado que deve ser contextualmente preenchido com relações factuais), parece que os enriquecimentos extralógicos da conjunção são genuinamente opcionais, de um ponto de vista conceitual. Parece, de fato, haver usos meramente lógicos da conjunção, como (1), nos quais nenhuma relação factual é suposta. Outros exemplos, menos naturais, mas que ilustram mais claramente esse ponto, aparecem em enunciados como (22):

(22) Dois fatos aconteceram ontem: Celina cortou o cabelo de Júlio e Júlio foi fazer compras.

Se nenhuma relação factual é interpretada nessas sentenças e se, ao mesmo tempo, intuímos que elas expressam proposições completas, podemos concluir que a provisão de uma relação factual não é necessária para que a sentença expresse uma proposição completa. Ao mesmo tempo, entretanto, já vimos que, quando tais relações aparecem, elas integram a proposição. Isso significa que temos elementos pragmáticos opcionais incidindo sobre a proposição, que é justamente o que o minimalismo nega.

A única abordagem que parece tratar algumas interpretações extralógicas da conjunção como instâncias de saturação é a de Carston (1991). Segundo a autora, a interpretação de sucessão temporal dada a um exemplo como (2) seria “um subproduto do processo de atribuição de referência envolvido na determinação da proposição” (p. 37). Isso porque, para chegarmos a uma intepretação proposicional de (2), precisamos atribuir referentes temporais aos morfemas flexionais de passado anexados aos verbos:

(2) A água foi colocada no jarro e o jarro foi levado à geladeira. A leitura de que o primeiro fato é anterior ao segundo seria simplesmente uma consequência de atribuirmos ao primeiro verbo auxiliar um referente temporal anterior ao do segundo. Essa atribuição de referentes seria um processo pragmático, mas seria um processo pragmático guiado por uma lacuna conceitual e sintática na sentença (o morfema flexional de passado).

A atribuição de referentes aos morfemas flexionais figuraria assim, realmente, como um processo pragmático obrigatório (i.e., um tipo de saturação). Essa análise, no entanto, pressupõe a teoria de Partee (1973), segundo a qual as flexões temporais funcionam semanticamente

como pronomes (elas denotariam referentes temporais pontuais em uma linha do tempo). Conquanto, como observa Recanati (1991, p. 117), essa abordagem tem dificuldade para lidar com casos em que o verbo expressa um aspecto mais durativo, como em (23), denotando intervalos de tempo em vez de “pontos” específicos:

(23) Douglas corria e caía.

A própria autora, em Carston (2002b, p. 260), declara o abandono dessa sua tentativa prévia de conciliar a intrusão de aspectos pragmáticos na proposição com o minimalismo, dizendo “não ver mais razão para assumir [que tais casos são explicados por] um processo de fixação de referentes; juntamente com os vários tipos de relação de causa e consequência, podemos considerar esses casos como instâncias de um processo de enriquecimento livre”. Esse renúncia revela-se ainda mais compreensível se percebermos que, bem como as teorias que dispõem de máximas icônicas de sequenciação, a proposta que trata os enriquecimentos do “e” como uma saturação decorrente da atribuição de referência aos morfemas flexionais só explica os usos temporais da conjunção, e não diz nada sobre a variedade de outras relações factuais que ela é capaz de expressar.

Mesmo assim, todos esses autores contextualistas persistem na presunção de que o sentido mínimo da conjunção (aquele que está codificado no léxico), a partir do qual os enriquecimentos livres que afetam a proposição se dão, é o sentido verofuncional importado da semântica da lógica proposicional clássica: “a alternativa pragmática [contextualista] toma a semântica linguística da conjunção como idêntica à do operador verofuncional da conjunção” (CARSTON, 2002b, p. 224). O mesmo é defendido, mais recentemente, por Blakemore e Carston: “segundo a nossa proposta, o ‘e’ tem uma semântica mínima verofuncional e as várias maneiras pelas quais as sentenças unidas podem ser entendidas como relacionadas são explicadas por meio da pragmática da coordenação explícita” (2005, p. 588, grifo meu). Essa é uma suposição que permaneceu virtualmente inquestionada na literatura. Vou defender, no próximo capítulo, que abandoná-la pode possibilitar ganhos descritivos e explicativos para uma teoria que pretenda lidar com a conjunção nas línguas naturais.

4. A NECESSIDADE DE UM TRATAMENTO NÃO-