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5. DA FUNÇÃO DE VERDADE À FUNÇÃO

5.4 A RESTRIÇÕES ASPECTUAIS À INTERPRETAÇÃO

Todo esse longo excurso em torno da discussão sobre os tipos de eventualidades – que, na teoria que adoto, se resume a uma reflexão sobre os possíveis valores no traço de categoria ontológica para conceitos sentenciais – é necessário pelo seguinte motivo: conforme mencionei no capítulo anterior, parece haver um grupo peculiar de predicados estativos perante os quais uma ordenação temporal (e, portanto, uma interpretação sequencial da conjunção) não é apenas rara ou incomum mas semanticamente impossível. Esse grupo parece guardar uma relação estreita com a categoria supracitada dos Estados Estáticos.44 Repito aqui os três exemplos mencionados anteriormente e acrescento mais alguns.

? (1) O painel de plástico é simples e (depois) os bancos são forrados em tecido.

? (6) Carvalinho é fã declarado e (depois) recorta tudo que a imprensa publica sobre a atriz.

44 Embora as interpretações temporais não sejam impossíveis com os Estados

Dinâmicos, elas parecem não ser muito comuns. Dificilmente interpretaríamos uma sentença do tipo “Roberta morou em Maputo e Sérgio morou em Dallas” como “Roberta morou em Maputo e depois Sérgio morou em Dallas”. Embora não haja nenhuma contradição semântica nessa leitura, como há nos casos de Estativos Estáticos, por alguma razão, ela parece não surgir naturalmente nos contextos de fala.

? (26) Balneário Camboriú fica entre Florianópolis e Joinville e (depois) eu fui para lá.

? (45) Salsicha é um ser humano e (depois) Scooby Doo é um cachorro.

? (46) Quine morou no Brasil e (depois) falava português.

? (47) A Terra é um planeta e (depois) a Lua é o seu satélite natural.

A função que batizei de FUNDIR, em todos esses exemplos, toma como argumento pelo menos um constituinte conceitual sentencial marcado com a categoria ontológica de Estado Estático. Ser simples, ser forrado em tecido, ser fã declarado, ser alto, ter três filhos, ser humano, ser cachorro, falar português (no sentido disposicional, de ter a capacidade de falar), ser um planeta e ser um satélite natural são, conforme poderíamos verificar através da aplicação de alguns dos testes que propus acima, todos exemplos de Estados que não envolvem qualquer traço de dinamicidade.

A impossibilidade de desenvolver inferencialmente, com base algum princípio pragmático, essas instâncias de FUNDIR em uma relação de sequenciação – que resumirei doravante como DEPOIS – é facilmente explicável com o aparato da semântica conceitual de Jackendoff (1983). A semântica, para ele, é um nível de representação autônomo, que gera estruturas de acordo com suas próprias regras de formação. Bem como há regras de formação de constituintes sintáticos, há também regras de formação de constituintes semânticos. Podemos, assim, sem precisar sobrecarregar o léxico (que estabelece as regras de interface entre formas sintáticas e seus correlatos semânticos default), simplesmente estipular que as seguintes configurações são sequências semanticamente malformadas (em desacordo com as regras que geram estruturas nesse nível):

*[Evento DEPOIS ([Estado Estático x1], [x2])] *[Evento DEPOIS ([x1], [Estado Estático x2])]

*[Evento DEPOIS ([Estado Estático x1], [Estado Estático x2])]

Ou seja: a estrutura conceitual humana não admite relacionar, através da função eventiva DEPOIS(a,b), um Estado Estático e um Evento ou Processo, ou então dois Estados estáticos. Essa função simplesmente não admite Estados estáticos como argumentos. Isso significa que o desenvolvimento inferencial de qualquer instância de FUNDIR que

envolva Estados estáticos em uma função conceitual que incorpore a ideia de sucessão temporal está proibida, não por regras lexicais inerentes ao “e” ou restrições do contexto amplo (como nos leva a crer virtualmente toda a literatura sobre a conjunção), mas por restrições da estrutura conceitual. Reitero que tal restrição é inerente à função semântica DEPOIS e não à FUNDIR. O que torna essa restrição relevante à análise da conjunção é justamente o fato de que, em vários contextos, princípios pragmáticos levam os interlocutores a disparar uma inferência que os leva do conteúdo lexicalmente codificado do “e” (i.e., FUNDIR) até um conteúdo que inclui função enriquecida DEPOIS. O que eu afirmo é que se uma das sentenças unidas pela conjunção codificar um Estado Estático, essa inferência não será acionada, não por limitações do contexto pragmático, mas simplesmente porque uma instanciação de DEPOIS, nesse caso, seria conceitualmente malformada. Uma generalização inicial que podemos fazer com base nesse tipo de análise é, portanto, que certas configurações particulares de categorias ontológicas dos constituintes conceituais sentenciais (ou seja, dos tipos de eventualidades em que se enquadram os predicados verbais unidos pela conjunção) parecem facultar alguns tipos de interpretações. Uma interpretação temporal só pode se dar entre constituintes que se enquadrarem na categoria de Evento, Processo, ou Estados Dinâmicos (ou seja, se não houver o envolvimento de um constituinte marcado com a categoria ontológica de Estado Estático). Esse é, indiscutivelmente, o caso de (2)-(5), repetidos abaixo – nos quais, além de os verbos denotarem Eventos, os Eventos são conceitualizados de acordo com o aspecto perfectivo45:

(2) A água foi colocada no jarro e o jarro foi levado à geladeira. (3) Paranaense, filha de um médico da Aeronáutica, começou a estudar arquitetura na Bahia e se formou no Rio.

(4) Guilherme foi atingido no pescoço e morreu sentado no banco de seu carro.

(5) Ele me ofendeu e eu acabei dando o troco.

A interpretação temporal só é aí possível, no nível da própria proposição, porque não há qualquer regra de boa-formação conceitual

45 A conceitualização dos Eventos no perfectivo, embora favoreça

interpretações assimétricas, não parece ser absolutamente necessária. Em uma sentença no aspecto habitual, isto é, imperfectivo, podemos ter a mesma ideia de sequência temporal e relação causal, como em “João corre e cai”.

que barre um desenvolvimento inferencial de FUNDIR em uma estrutura conceitual que incluía DEPOIS dados os constituintes conceituais dos tipos adequados.

Quanto à função causal (tradicionalmente representada como CAUSAR), contrariamente, nós a concebemos como possível de se dar entre um Estado Estático e um Evento – como ocorre em (6), onde temos, primeiro, a especificação de um Estado representado como “atemporal”, e, em seguida, um padrão de ação motivado por esse Estado – ou mesmo entre dois Estados, como em (48):

(48) João é rico e consegue comprar várias coisas.

Isso significa que FUNDIR(a,b) pode, frente a um contexto favorável e a princípios pragmáticos que o recomendem, ser inferencialmente desenvolvida em uma função como CAUSAR(a,b) independentemente da natureza categorial de “a” e “b”.

A compatibilidade das outras relações factuais possíveis com as disposições particulares de eventualidades amalgamadas pela conjunção não foi tão desenvolvida na minha pesquisa. Existem, no entanto, algumas observações na literatura que podem ser melhor exploradas e, de algum modo, agregadas à semântica que estou propondo.

A interpretação condicional que ocorre em (10), por exemplo, pode ser analisada também como um tipo específico de relação entre Eventos, como sugere Bjorkman (2013):

(10) Sorria e o mundo sorri com você.

A leitura condicional pode vir justamente desse caráter esquemático: da ideia de que, se um Evento sempre está relacionado a outro, se um ocorrer, o outro naturalmente ocorrerá também.

Conforme exporei em maiores detalhes no capítulo 7, minha análise parece também ser capaz de acomodar, de um modo natural, casos aparentemente problemáticos como a interpretação “adversativa” em (7):

(7) Estamos na situação de viver sob regime constitucional, das chamadas liberdades democráticas, e sermos governados de forma própria do autoritarismo.

Como já havia mostrado Kitis (2000), o efeito emocional que surge nesse tipo de enunciado vem justamente do fato de que estamos unindo, em uma única situação maior (ela diria, em um único frame), duas situações que cremos ser incompatíveis, isto é, situações que contradizem algum script cognitivo que temos armazenado na memória. Uma semântica da conjunção que captura essa noção de integração de Entidades (no caso das sentenças, de Situações) parece uma candidata mais promissora no trato desses casos do que a abordagem verofuncional.

Podemos aceitar que especificações dessa ordem entrem na semântica da conjunção – mais precisamente, na determinação das possíveis rotas inferenciais que o desenvolvimento pragmático de FUNDIR pode tomar na estrutura conceitual – desde que se entenda que elas não são suficientes para determinar a intepretação que a conjunção vai assumir dadas as categorias ontológicas de seus argumentos semânticos. O que essas considerações sobre o funcionamento do nível de representação semântico autônimo (a estrutura conceitual) permitem fazer é fixar, esquematicamente, os tipos de interpretação que a conjunção pode, dados os tipos de constituintes semânticos que ela está unindo, receber. O que determinará, para um dado uso, qual interpretação a conjunção vai definitivamente assumir são princípios cognitivos gerais que atuam na interpretação de estímulos linguísticos. Esses princípios são sensíveis ao contexto, que, portanto, como vimos, acaba intervindo no processo de composição semântica, configurando aquilo que Jackendoff (1997) chama de composicionalidade enriquecida.

5.5 A INTERFACE SINTAXE-SEMÂNTICA DA CONJUNÇÃO