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5. DA FUNÇÃO DE VERDADE À FUNÇÃO

5.5 A INTERFACE SINTAXE-SEMÂNTICA DA

considerações em torno do problema da correspondência entre a sintaxe e a semântica da conjunção. Como estou assumindo aqui o modelo de gramática de Jackendoff (1997, 2002, 2007), para manter a coerência, devo também adotar uma representação sintática que seja fiel ao espírito da Sintaxe mais simples (cf. CULICOVER; JACKENDOFF, 2005). Vou assumir, então, a projeção sintática mais simples que consigo imaginar: um sintagma com conjunção (ConjP) seria algo como a estrutura de ramificação ternária abaixo, desenvolvida por Gazdar et al. (1985):

ConjP

wgo

XP e YP

É bastante usual, na literatura (cf. RADFORD, 1988; LASNIK, 2000; MIOTO; FIGUEIREDO SILVA; LOPES, 2013), encontrar a alegação de que apenas elementos que partilhem uma mesma categoria sintática podem ser coordenados. Isto é, só seriam bem formadas as conjunções em que XP=YP, segundo o esquema dado acima. Essa restrição explicaria a impossibilidade de sentenças como:

* Beethoven compôs [NP uma música] e [PP para Elise]. * Luiza leu o livro [CP que Ana queria] e [AP bom].

Culicover (1972) e Culicover e Jackendoff (2005), no entanto, reparam na existência de várias construções que violam esse princípio. Em especial, parece haver uma grande produtividade na formação de ConjPs a partir da configuração “NP e S”:

[NP Cinquenta anos de gramática gerativa] e [S o que nós aprendemos]?

[NP Mais um passo] e [S eu atiro].

É claro que será sempre possível reconstruir – de uma maneira provavelmente artificial – uma estrutura subjacente para cada uma dessas sentenças na qual cada estrutura coordenada instancie uma mesma categoria sintática. Contudo, o mais econômico, a meu ver, seria abandonar a restrição de que XP e YP devam compartilhar a mesma identidade categorial na sintaxe e assumir, simplesmente, que deva haver uma compatibilidade entre os constituintes semânticos que estão associados a eles. São os constituintes conceituais que precisam ser equivalentes, isto é, só podemos juntar Objetos com Objetos, Propriedades com Propriedades, Lugares com Lugares e Situações com Situações (as Situações não precisam ser do mesmo tipo porque, como vimos, podemos ter conjunções entre Estados e Eventos). Uma sentença com a conjunção será bem formada se ela for facultada pelo componente semântico da teoria. A ideia de que a identidade semântica precisa ser duplicada a todo custo na sintaxe parece ser um simples corolário do princípio da uniformidade de interface entre sintaxe e semântica adotado comumente nos círculos gerativistas mais ortodoxos.

A partir do instante em que abandonamos a obrigatoriedade de uniformidade entre a sintaxe e a semântica da conjunção, alguns embaraços que decorriam da análise de Wierzbicka (1980) podem também facilmente ser evitados. A autora sustentava, contra as análises que postulavam reduções de conjunções, que, em sentenças como (49), a representação semântica do sujeito (o ConjP formado por dois NPs) tinha que ser, obrigatoriamente, a fusão de dois Objetos, do mesmo modo como ocorre nos exemplos em (25c)-(25f), repetidos abaixo:

(49) a. Bernstein e Sondheim fizeram sucesso na Broadway. b. Eduardo e Cláudia foram correr.

c. O Internacional e o Grêmio foram campeões brasileiros. (25) c. John, Paul, George e Ringo são os Beatles.

d. O rei e a rainha são um casal feliz. e. João e Maria são amigos íntimos. f. Jay e Glória se casaram.

Dizer que os casos em (49) precisam ser necessariamente idênticos, no que diz respeito aos tipos constituintes fundidos pela conjunção, aos casos em (25) soa um pouco forçado. Em que sentido podemos dizer que, em um exemplo como (49c), o Internacional e o Grêmio formam uma única Entidade? Parece aí que o predicado ser campeão brasileiro só pode se aplicar, de fato, a cada uma dessas Entidades separadamente, contrariamente ao que ocorre em (25). No afã de rejeitar por completo a teoria da redução de conjunção – que postulava, para todos os casos de conjunção subproposicional, uma Estrutura Profunda em que os constituintes unidos eram sentenças completas – Wierzbicka acaba perdendo de vista esse óbvio contraste.

Está claro que em (25) as conjunções serão necessariamente interpretadas como unindo dois Objetos, pois os predicados aí parecem aceitar apenas Objetos compostos como argumentos. Para essas situações, como a autora bem percebe, é patentemente inapropriado postular uma operação transformacional de redução de conjunção, dado que, como vimos no capítulo anterior, simplesmente não existe uma paráfrase para elas em termos de conjunções entre sentenças. O mesmo não pode ser dito dos predicados em (49). Todos eles apresentam paráfrases satisfatórias sob a forma de conjunções entre sentenças, como (49’):

(49’) a. Bernstein fez sucesso na Broadway e Sondheim fez sucesso na Broadway.

b. Eduardo foi correr e Cláudia foi correr.

c. O Internacional foi campeão brasileiro e o Grêmio foi campeão brasileiro.

Isso não quer dizer, no entanto, que essas sentenças passem efetivamente por um processo sintático de redução de conjunção, até porque, pelo menos para (49a) e (49b), as paráfrases sentenciais em (49’) capturam apenas um de seus sentidos possíveis. Com efeito, os sujeitos em (49a) e (49b) podem ser interpretados como Objetos compostos. Quer dizer, é possível interpretar o sujeito de (49a) como “o grupo formado por Bernstein e Sondheim” e o sujeito de (49b) como “o grupo formado por Eduardo e Cláudia”. Wierzbicka (1980) está certa, portanto, em dizer que essa interpretação existe. Mas ela não é a única possível, como vemos pela possibilidade das paráfrases em (49’). Os sintaticistas que falavam da redução de conjunção estavam corretos em apontar que as sentenças em (49) podem ser semanticamente equivalentes àquelas em (49’).

O que está acontecendo aqui? Tanto Wierzbicka (1980) quanto os proponentes da operação de redução de conjunção estão pressupondo tacitamente a uniformidade de interface e extraindo dela análises conflitantes e inadequadas. Wierzbicka parte da sintaxe superficial dos exemplos de conjunções entre NPs e propõe a eles todos sempre a mesma representação semântica, segundo a qual todos devem expressar fusões entre Objetos – por mais que isso nos seja às vezes contra- intuitivo, como em certas leituras dos exemplos em (49). Para a autora, se temos conjunções entre NPs (e se NPs geralmente codificam Objetos), teremos sempre conjunções entre Objetos.

Os defensores da redução de conjunção, por sua vez, partem da semântica dos casos mais discutidos de conjunções – nos quais há indiscutivelmente a união de Situações – e propõem um nível sintático oculto isomórfico à semântica, no qual todos os elementos unidos por conjunções seriam expressos por meio de sentenças plenas – por mais que isso torne impossível explicar os casos de conjunções entre NPs em (25) (e também uma das leituras possíveis para os casos em (49)). As duas análises rivais conduzem, portanto, a dificuldades empíricas evidentes e difíceis de contornar.

A saída mais simples para esses entraves está, justamente, na rejeição do princípio da uniformidade entre sintaxe e semântica. Uma

vez que se aceite o caráter imperfeito e relativamente “bagunçado” da interface, torna-se possível dizer que algumas conjunções entre NPs de fato formam grupos de Objetos, enquanto outras formam grupos de Situações. Em vários casos, como parece ocorrer com (49a) e (49b), as duas interpretações são possíveis, e por isso as sentenças são ambíguas. Pode ser tanto o caso que em (49a) o falante esteja comunicando que o grupo formado por Bernstein e Sondheim fez muito sucesso na Broadway (criando, em conjunto, um musical como West Side Story) quanto que existem dois Eventos separados, que integram um Evento composto: o Evento de Bernstein ter feito sucesso na Broadway (por exemplo, com sua opereta Candide) e Sondheim também (por exemplo, com o musical Sweeney Todd). O mesmo tipo de ambiguidade pode ser reproduzido em quase todas as instâncias de conjunções entre NPs. É quase sempre possível interpretá-las tanto de maneira sintaticamente transparente (como exige Wierzbicka (1980)), isto é, como uma fusão entre Objetos, quanto como uma fusão entre Situações (como exige a análise em termos de redução de conjunção). E em nenhum desses casos se faz necessário postular um nível sintático oculto para garantir um isomorfismo com a semântica. Note-se que a ambiguidade aí não diz respeito à conjunção em si – em todos os casos a conjunção é unívoca, correspondendo à função conceitual FUNDIR – mas sim aos tipos de argumentos que a podem saturar: Objetos ou Situações.

Feitas essas retificações, fica claro que a regra de interface que determina quais elementos conceituais vão corresponder aos argumentos da função FUNDIR se torna mais complexa do que aquela que expus no início desse capítulo. Não é o caso que cada conceito que FUNDIR toma como argumento corresponda sempre ao valor semântico de um constituinte sintático que a conjunção “e” subcategoriza. Em (49c), por exemplo, isso não ocorre, pois, embora a conjunção subcategorize dois NPs, os conceitos que ela toma como argumento não são os Objetos que esses NPs expressam ([Objeto INTERNACIONAL] e [Objeto GRÊMIO], mas sim as Situações que incluem esses Objetos, produzindo a seguinte estrutura complexa:

[Estado FUNDIR ([Estado SER ([Objeto INTERNACIONAL],[Propriedade CAMPEÃO

BRASILEIRO])],[Estado SER([Objeto GRÊMIO],[Propriedade CAMPEÃO BRASILEIRO])])]

Seria essa exatamente a estrutura semântica que postularíamos para um caso de conjunção entre sentenças plenas. Como não aceitamos a uniformidade de interface, podemos acatar essa estrutura na semântica

sem termos que duplicá-la artificialmente na sintaxe. O mesmo desajuste entre argumentos sintáticos e semânticos transcorre para todas as leituras das demais sentenças em (49) onde a conjunção é entendida como formando uma união entre Situações, e não Objetos.