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6. DA IMPLICATURA À MODULAÇÃO

6.5 RESTRIÇÕES À MODULAÇÃO DA CONJUNÇÃO

Com base no esquema ModConj, podemos compreender melhor algumas restrições de natureza conceitual que pesam sobre os enriquecimentos da conjunção. Uma delas, que expus no capítulo anterior e no capítulo 4, é a restrição aspectual às interpretações

50 Não pretendo indicar, com isso, que enunciados que contenham a conjunção

não possam passar também por outros processos de enriquecimento ou de modulação de maneira geral. Proponho a generalização ModConj a fim de subsumir todos e apenas os casos de modulação da função FUNDIR. Esse esquema não tem nada a dizer, portanto, a respeito das possíveis modulações dos outros constituintes conceituais que possam, porventura, co-ocorrer com FUNDIR.

temporais (aquelas que envolvem a função DEPOIS). Argumentei lá que representações semânticas como

*[Evento DEPOIS ([Estado Estático x1], [x2])] *[Evento DEPOIS ([x1], [Estado Estático x2])]

*[Evento DEPOIS ([Estado Estático x1], [Estado Estático x2])]

seriam conceitualmente malformadas. A inserção, via modulação, de um conceito [Evento DEPOIS] como modificador de uma conjunção que tem ao menos um Estado Estático resultaria em uma estrutura conceitual igualmente anômala, como a da sentença:

? (45) Salsicha é um ser humano e (depois) Scooby Doo é um cachorro.

* (45’)

FUNDIR([Estado Estático SER([Objeto SALSICHA], [Propriedade HUMANO])], [Estado SER ([Objeto SCOOBY DOO], [Propriedade CACHORRO)])]

[EventoDEPOIS([EstadoEstáticoSER([ObjetoSALSICHA],[PropriedadeHUMANO]), [Estado Estático SER ([Objeto SCOOBY DOO], [Propriedade CACHORRO)])] Evento

Como a porção conceitual em itálico – que ocupa o lugar da variável Y de ModConj – é uma instância de uma estrutura malformada, o conceito em que ela ocorre resulta, igualmente, malformado. É por isso que esse desenvolvimento inferencial de FUNDIR não precisa ser sequer avaliado pragmaticamente: ele já está barrado por razões independentes, vinculadas à nossa conceitualização

Outra restrição que podemos depreender de ModConj é que, como grafei explicitamente, o enriquecimento da conjunção só ocorre entre Situações, isto é, entre conceitos sentenciais, que são marcados com a categoria ontológica de Estados (de qualquer tipo), Processos ou Eventos. A fusão entre Objetos – que não deve ser confundida com a fusão entre NPs, que podem codificar Situações – nunca é enriquecida. Isso significa que só podem saturar a variável Y da nossa fórmula aquelas relações conceituais que são pertinentes entre Situações, como as diversas variedade de DEPOIS e CAUSAR (e não relações que se dão exclusivamente entre Objetos, Propriedades e Lugares, por exemplo). Ou seja, não é permitido que a estrutura do modificador

contextualmente acrescentado à conjunção contenha, preenchendo Y, funções conceituais como AMAR, COMER, PERTO, MATAR. Só pode ser contextualmente acrescentada à conjunção uma função que atue sobre Situações. O nosso exemplo (50a) não poderia, por exemplo, receber o seguinte constituinte conceitual como modificador interno:

* [Estado AMAR([Evento ATIRAR([Objeto POLICIAL], [Objeto BANDIDO])], [Evento MORRER ([Objeto BANDIDO])])]

Isso porque AMAR simplesmente não é uma relação que pode se dar entre dois Eventos (ou mesmo duas Situações quaisquer), mas sim uma relação entre Objetos de um certo tipo. Igualmente, o modificador de (45) acima também não poderia ser

*[EstadoPERTO([Estado EstáticoSER([ObjetoSALSICHA],[PropriedadeHUMANO])], [Estado Estático SER ([Objeto SCOOBY DOO], [Propriedade CACHORRO)])]

Nossa mente é simplesmente incapaz de conceber o que seria um Estado estar situado perto de outro Estado. A relação PERTO se aplica apenas a Lugares e a Objetos. Ela não é, portanto, uma candidata a preencher a variável Y que enriquece o sentido da conjunção. Outros exemplos podem ser multiplicados facilmente.

Essas observações, aparentemente triviais e inócuas, sugerem as premissas básicas de uma explicação conceitual e não meramente cognitivo-pragmática – como oferecem Carston (2002) e Blakemore e Carston (1999; 2005)) – para os contrastes já mencionados entre conjunções e parataxe, como (15), repetido abaixo, (52), (53) e (54):

(15) a. João quebrou a perna. Ele tropeçou e caiu. b. João quebrou a perna e ele tropeçou e caiu.

(52) a. Eu conversei com um grande linguista ontem. Eu conversei com Lakoff.

b. Eu conversei com um grande linguista ontem e eu conversei com Lakoff.

(53) a. Guerras estão estourando em toda parte. Os EUA e a Rússia começaram a se desentender.

b. Guerras estão estourando em toda parte e os EUA e a Rússia começaram a se desentender.

(54) a. A língua é um sistema regrado. Ela segue padrões regulares.

b. A língua é um sistema regrado e ela segue padrões regulares.

É visível que as conjunções explícitas em (b) não reproduzem as relações entre os enunciados que são regularmente comunicadas pelas concatenações paratáticas em (a). Em (15a), a segunda sentença será usualmente compreendida como uma explicação para o fato apresentado na primeira. Já em (52a) o segundo enunciado funciona como uma espécie de especificação para a descrição indefinida que o antecede. No exemplo (53a), a interpretação usual da segunda sentença será a de uma exemplificação para a generalização anteriormente formulada. Em (54a), por fim, o primeiro enunciado é reformulado ou parafraseado pelo segundo. A contraparte conjuntiva de cada uma desses casos exprime, por sua vez, ou um enriquecimento temporal envolvendo a função DEPOIS (como em (15b), (52b) e (53b)) ou meramente o sentido literal mínimo da conjunção (i.e. FUNDIR) como (54b), que integra Estados Estáticos.

O que há de comum entre as relações expressas pelas sentenças (a) é que elas não aparentam ser do tipo que se estabelecem entre Situações. Explicações, especificações, exemplificações e reformulações são relações que poderíamos chamar de textuais ou discursivas (cf. MANN; THOMPSON, 1986). Não sei ao certo como representar essas conexões, mas elas parecem operar sobre (grupos de) enunciados ou proposições, ao passo que, como indiquei em ModConj, as relações enriquecidas que podem ser expressas pela conjunção precisam operar sobre Estados, Eventos e Processos. Simplesmente não existe uma função conceitual EXPLICAÇÃO ou REFORMULAÇÃO que tome Situações como argumento, do mesmo modo como não existe uma função AMAR que faça o mesmo também. É por isso que nenhuma dessas funções é apta a preencher a variável Y no esquema ModConj, configurando um enriquecimento possível da função FUNDIR.

Por envolver a concatenação de dois enunciados diferentes (e, portanto, de duas proposições distintas) a parataxe é capaz de expressar um repertório mais amplo de relações entre representações do que a conjunção, que se limita a expressar pragmaticamente relações plausíveis entre representações conceituais de um certo tipo (Situações). Uma característica peculiar dessas relações que podemos chamar de situacionais (em oposição às relações discursivas expressas pela parataxe) que foi constatada por Blakemore e Carston (1999) e Carston (2002) é que elas são valoradas por nós como reais, isto é, nos as

entendemos como relações que se passam no mundo externo às nossas mentes. Causalidade e temporalidade são, segundo a nossa concepção, propriedades da realidade física que nos cerca. No quadro da teoria internalista de Jackendoff (2002), isso significa que elas receberiam um traço de valoração EXTERNO. Relações discursivas como exemplificação, explicação e reformulação, por outro lado, “têm em comum a propriedade de não serem relações [entendidas como] situadas no mundo externo; elas são relações [que são entendidas como] existentes apenas em mentes, e talvez apenas em mentes humanas” (CARSTON, 2002, p. 250). Elas receberiam, portanto, o traço de valoração INTERNO, que é atribuído pela nossa mente àquelas representações que entendemos como, de algum modo, subjetivas.51

Essa explicação conceitual para os contrastes entre conjunções e concatenações paratáticas é mais abrangente do que a explicação semântica oferecida por Bar Lev e Paclas (1980). Além de incorrer nas previsões equivocadas que elenquei no capítulo 4, a noção de comando semântico – entendida, pelos autores, como parte da semântica lexical da conjunção – não dispõe de nenhum recurso para barrar, para o “e”, interpretações de relações discursivas que não envolvem temporalidade ou causalidade, como a especificação (52a), a exemplificação (53a) e a reformulação (54a).

A definição de comando semântico só estipula que a primeira sentença não deve ser temporalmente ou causalmente anterior à segunda. No contraste em (52) isso não ocorre, e, mesmo assim, uma interpretação equivalente para o “e” e para a parataxe não pode ser atingida. Não é o caso que em (52a) a conversa com Lakoff tenha se dado antes da conversa com um linguista (e, mesmo assim, como vimos, a interpretação da parataxe não pode ser reproduzida em (52b)). Ao contrário da explicação conceitualista, a abordagem pautada na noção de comando semântico não teria nada a dizer a respeito desses casos.

A restrição semântica proposta por Bar Lev e Paclas (1980) é, portanto, concomitantemente, muito forte – pois exclui casos que de fato ocorrem, como mostrei no capítulo 4 – e muito fraca – pois carece de

51 Outros exemplos de traços valorativos seriam oposições como NOVO vs.

CONHECIDO, COERENTE vs. INCOERENTE, SIGNIFICATIVO vs. NÃO- SIGNIFICATIVO. Esses traços são compreendidos apenas como propriedades formais de uma gama de representações: explicar em que condições a cognição atribui um ou outro a uma estrutura mental é, para Jackendoff (2002), um dos objetivos da psicologia internalista. Todos esses traços são, portanto, igualmente produtos da nossa cognição (incluindo o traço EXTERNO).

explicar como relações discursivas não temporais não podem ser recuperadas a partir da conjunção. Nesta seção, procurei elucidar este último ponto a partir da ideia de que tais relações são e os enriquecimentos da conjunção só podem expressar relações que são passíveis de ocorrer entre Situações.