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6. DA IMPLICATURA À MODULAÇÃO

6.1 CONTRASTANDO ENRIQUECIMENTOS COM

IMPLICATURAS

Existem diferenças fundamentais entre os aspectos não- articulados veiculados pela conjunção em exemplos como (2)-(5) e os casos mais claros e incontroversos de implicaturas que motivaram a teoria de Grice. Peguemos, primeiramente, um exemplo como (50) (muito semelhante a (4)), e seu provável enriquecimento contextual, explicitado em (50a):

(50a) O policial atirou no bandido e, por isso, logo em seguida, o bandido morreu.

Contrastemos esse caso agora com (51) e sua provável implicatura (51a). Suponhamos que o enunciado (51) seja proferido no contexto de resposta à pergunta “Você sabe jogar futebol?” A partir de (51), o ouvinte está autorizado a inferir – segundo as máximas da conversação (ou algum outro princípio comunicativo) e seu conhecimento de como as habilidades futebolísticas estão distribuídas entre os habitantes das várias regiões do mundo – que o que o falante quis comunicar foi algo como a proposição (51a).

(51) Eu sou brasileiro. (51a) Eu sei jogar futebol.

De início, talvez a diferença mais gritante entre as inferências de (50) e de (51) seja a questão da acessabilidade. Nós não temos acesso consciente à inferência que fazemos em (50), ao passo que, no caso (51), a inferência pode ser reconhecida até mesmo por falantes não instruídos (cf. GIBBS; MOISE, 1997). Citando as palavras de Recanati descrevendo um contraste semelhante:

No último exemplo, a implicatura é intuitivamente percebida como externa ao que é dito; ela corresponde a algo que normalmente tomaríamos como tendo sido “implicado”. No caso anterior, não somos capazes de distinguir, pré- teoreticamente, entre os dois supostos componentes da significação dos enunciados. (RECANATI, 1991, p. 115)

Essa discrepância, segundo Recanati (1991), deveria incitar as seguintes questões: estamos tratando de uma mesma coisa nos dois casos? E, se estamos, “como podemos explicar essa diferença?” (id, ibid, p. 115). Ou seja, dada a sua propensão a tratar certos aspectos da significação intuitiva de (50) (e também de (2)-(5)) como implicaturas conversacionais externas ao que é literalmente dito, “o minimalista precisa explicar por que essas implicaturas, ao contrário dos casos prototípicos [como (51)], não apresentam a propriedade da ‘acessabilidade’ à consciência.” (RECANATI, 2004, p. 12).

Recanati (2004, p. 12) reconhece como um esforço nessa direção a distinção griceana entre implicaturas conversacionais generalizadas e particularizadas.46 Aquelas, ao contrário destas, “são difíceis de distinguir do conteúdo semântico das expressões linguísticas, porque tais implicaturas [estão] rotineiramente associadas a expressões linguísticas em todos os contextos normais.” (LEVINSON, 1983, p. 127) O minimalista griceano poderia alegar que os ajustes de sentido em (2)-(5) e (50) são, precisamente, exemplos de implicaturas generalizadas, e que tais implicaturas são “geradas e interpretadas de modo inconsciente e automático” (RECANATI, 2004, p. 12). Essa é, essencialmente, a aspiração de uma proposta como a de Levinson (2000), que critiquei no capítulo 2.

Mesmo supondo que a classe das implicaturas conversacionais generalizadas fosse passível de ser caracterizada pela geração inconsciente e automática de seus membros, (motivo pelo qual, supostamente, nossas intuições a seu respeito seriam “embaralhadas”), há outras diferenças relevantes entre o enriquecimento contextual em (50a) e os exemplos tradicionais de implicaturas, de maneira que classificá-los sob um mesmo rótulo seria, no mínimo, confuso.

Uma das mais salientes diferenças é que a implicatura, de um ponto de vista semântico – i.e. em relação aos constituintes conceituais que a compõem – é totalmente diferente da proposição a partir da qual ela é calculada. Não há qualquer menção, na proposição expressa pelo enunciado (51), a habilidades físicas do falante ou a esportes. Do mesmo modo, não há nada na implicatura (51) relativo à nacionalidade. A implicatura é simplesmente outra proposição, com outros constituintes conceituais, que não precisa ter relação estrutural alguma com a proposição original. Uma maneira de ver isso seria comparar os conjuntos totalmente distintos de acarretamentos que se seguem de (51) e de (51).

46 Recanati (1991, p. 118) cita também a noção de “não-literalidade

padronizada”, que cumpriria, no quadro adotado por Bach (1987), um papel semelhante ao das implicaturas conversacionais generalizadas para os neogriceanos. As sentenças (1)-(4) estariam, de acordo com o filósofo americano, padronizadamente associadas aos enriquecimentos que citamos, e, por conta dessa espécie de “força do hábito”, nós nem notaríamos mais que tais acréscimos não fazem parte do que é dito. Haveria, nesse sentido, uma semelhança entre (2)-(6) e os casos de atos de fala indiretos padronizados, como o uso de expressões do tipo “você poderia X?” para realizar um pedido.

O mesmo não ocorre entre (50) e (50a). Todos os acarretamentos que decorrem de (50) decorrem também de (50a). Isso porque todos os conceitos que figuram na representação semântica de (50) estão também presentes em (50a), embora (50a) seja, por conta das informações pragmaticamente inferidas, mais rica e mais informativa do que (50). Parece que o ajuste de sentido em (50a) é uma espécie de desenvolvimento da estrutura conceitual mínima extraível de (50) (i.e. aquela que resultaria da aplicação cega das regras de correspondência ao objeto sintático). Tal desenvolvimento parte dessa estrutura mínima e acrescenta a ela, pontualmente, algumas outras representações semânticas – como a ideia de sucessão temporal mais ou menos imediata e a ideia de causa suficiente. Nos termos da teoria da relevância (que discutiremos melhor no próximo capítulo), a proposição de (50a) pode ser tomada como um desenvolvimento da forma lógica linguisticamente codificada por (50). Isso faz dela uma explicatura (e não uma mera implicatura) de (50) (cf. SPERBER; WILSON, 1995, p. 181-182).

Uma característica peculiar das explicaturas como (50a) – em oposição a implicaturas como (51) – é que elas acarretam o conteúdo semântico mínimo de (50) a partir do qual elas são inferidas. Continua sendo o caso que, em (50a), ocorre uma fusão entre duas Situações. Carston (1991) observa que isso é um indício de que a proposição mínima – a forma lógica – não é funcional no processo de compreensão; ela não desempenha nenhum papel cognitivo que a explicatura não possa, ela mesma, também desempenhar. Como sua teoria está pautada no princípio de que o aparato cognitivo humano é orientado para a relevância, eliminando processamentos ociosos, ela toma isso como evidência para o fato de que a forma lógica não precisa ter realidade psíquica. Isto é, a forma lógica pode nunca vir a ser efetivamente processada (mesmo inconscientemente), e, para muitos casos, ela seria uma simples abstração teórica que nos informa como seria uma interpretação totalmente modular e livre de contexto. O mesmo não se dá com ocorrências genuínas de implicaturas, como (51). Nesses casos, tanto a proposição inferida quanto a proposição original cumprem funções distintas no processo de interpretação. Ambas são, indiscutivelmente, psiquicamente reais. Nenhuma é acarretada pela outra porque, como vimos, elas apresentam, em geral, conteúdos semânticos bastante divergentes.

Outra característica importante, que está implícita no que expus acima, é o caráter local e subproposicional das informações

contextualmente inferidas. Ao contrário da implicatura do enunciado (51), a inferência que decorre de (50) não é uma outra proposição completa, mas apenas a porção anotada em itálico: por isso, logo em seguida. Nesse sentido, a representação da elaboração pragmática como uma inferência pode ser um pouco enganosa: ela pode dar a entender que (50a) é uma proposição contextualmente inferida a partir de (50). A inferência em questão não é a proposição inteira, mas um simples fragmento – a função CAUSAR –, que, como veremos, é incorporada à proposição original antes de ela ser totalmente formada. A implicatura de (51) é, contrariamente, uma inferência global e pós-proposicional: ela não integra a proposição anterior, mas é uma outra proposição independente, que pressupõe a identificação prévia do conteúdo dito.