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Eu vi tu ontem na feira, mas tu não me viu/viste/visse.

4 O MODELO TEÓRICO: A TEORIA DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA

4.2 O ESTUDO DA MUDANÇA LINGUÍSTICA

4.2.1 A mudança em progresso

A mudança não se dá de forma abrupta, mas lenta e gradual, dada a necessidade de os falantes terem a intercomunicação permanentemente garantida: atinge partes da língua até se expandir integralmente, de modo que é possível observar os seus estágios: i) as variantes, reguladas por fatores internos e externos, alternam-se nos usos linguísticos dos falantes; ii) as variantes concorrem entre si, porque uma delas atinge uma posição mais prestigiada na comunidade; iii) uma das formas alternantes suplanta a outra, concretizando-se aí a mudança. Há ainda situações em que as formas podem permanecer em variação por anos ou mesmo séculos, configurando o que se chama de variação estável.

É bom lembrar que, diferentemente do que pensavam os estruturalistas, a mudança não é absolutamente regular. Isso quer dizer que a mutação de um determinado segmento fônico, por exemplo, não o atinge em todas as palavras da língua. Ademais, é possível que uma mudança se concretize em determinadas áreas geográficas e em outras não.

A sociolinguística demonstra que o pressuposto da mudança é a variação, ultrapassando, assim, a primeira barreira imposta pela visão estruturalista sintetizada na dicotomia sincronia x diacronia. Diferentemente, o método sociolinguístico é pancrônico, na medida em que correlaciona as duas dimensões, pois a ocorrência da mudança pressupõe um estágio prévio de variação. E constatar o vínculo entre variação e mudança, necessariamente, implica aceitar a história e o passado como reflexos do presente, dinamicamente se estruturando e funcionando”.

O percurso da mudança pode ser observado por dois enfoques temporais: a partir do estudo em tempo aparente e do estudo em tempo real. Para uma investigação

em tempo aparente, parte-se de uma amostra de fala de certo recorte sincrônico, tendo por base o princípio de que os usos linguísticos de cada geração refletem desenvolvimentos diacrônicos. Baseando-se na hipótese clássica, segundo a qual a estabilidade linguística do indivíduo acontece por volta dos 15 anos, os falantes são agrupados em faixas de idade, como as consideradas para esta tese – 25 a 35 anos, 45 a 55 anos e 65 a 84 anos –, o que permite fazer uma projeção temporal dos usos linguísticos de cada grupo etário, a partir da correlação da idade do indivíduo com um dado estado de língua. Não há, contudo, evidências empíricas suficientes que permitam tomar o princípio da estabilidade linguística do falante como absoluto.

Por essa hipótese, é possível descrever a mudança em curso na comunidade, ou seja, os padrões da mudança são predizíveis antes que ela possa ter se efetivado. Por meio do estudo dos fenômenos linguísticos nas diferentes faixas etárias, atesta- se a existência de uma mudança em progresso se a variante inovadora em questão é mais frequente entre os jovens e a conservadora entre os idosos. Isso quer dizer que, se na alternância lhe/te, umas das variantes ocorre mais frequentemente entre os jovens e diminui sua ocorrência entre os falantes mais velhos, é possível admitir que haja um processo de mudança em curso na comunidade. As formas alternantes competem entre si até que, tendo sido observada a preferência dos falantes por uma delas, o sistema atinja a regularidade com a implementação da forma mais usada.

Nos casos de variação estável, uma variante não cede espaço à outra. Em termos de distribuição da variante inovadora nos grupos etários, os jovens e os idosos revelam o mesmo comportamento linguístico – uso mais frequente –, e os indivíduos da faixa intermediária apresentam menor frequência, o que pode ser explicado pelas pressões sociais a que estão expostos e que lhes exigem maior observância ao uso das formas linguísticas. O estudo em tempo aparente, embora importante, nem sempre traz conclusões seguras acerca do fenômeno linguístico em análise, a começar pela falta de aceitação pacífica da hipótese da estabilidade linguística do falante. Ademais, o fato de uma variante ser largamente usada pelos indivíduos mais jovens necessariamente não indica uma mudança em curso. Observem-se, por exemplo, os casos de variação estável e gradação etária.

Labov (2008 [1972]) esclarece que uma maneira mais segura de resolver o problema seria por meio da conjugação das observações em tempo aparente com as evidências fornecidas pelos estudos da mudança em tempo real, que se refere ao estudo das transformações por que passam as línguas comparando-se duas sincronias diferentes. Esse tipo de estudo pode ser feito através da comparação entre textos antigos com escritos atuais ou através do recontato dos informantes, mas há de se contar sempre com dificuldades. No primeiro caso elas decorrem, dentre outras questões, do fato de esses textos não transmitirem com realismo as informações linguísticas que se deseja encontrar, uma vez que se sujeitam à hipercorreção, mistura dialetal, erros de escrita e por não revelarem, em geral, os dados sociais. No segundo caso, a dificuldade está no fato de nem sempre ser possível, por motivos diversos, o recontato com os informantes.

Com o advento dos estudos sociolinguísticos, foram constituídas amostras de fala a partir de uma rigorosa metodologia, o que possibilita ao pesquisador realizar análises do estudo de tendências e do tipo painel. No primeiro caso, tendo decorrido um intervalo de tempo correspondente a uma geração (aproximadamente 18 anos), retorna-se à comunidade e constitui-se uma amostra com características semelhantes às da primeira, porém com outros informantes. No último, volta-se à comunidade depois de um lapso de tempo para entrevistar os mesmos informantes. Nas palavras de Labov (1994, p. 83):

a interpretação dos dados em tempo real, de estudos do tipo em painel ou de tendências, requer um modelo subjacente de como os indivíduos mudam ou não mudam durante sua vida, como as comunidade mudam ou não mudam ao longo do tempo, e o que pode resultar da combinação dessas possibilidades.

Assim, podemos observar: a) se há estabilidade ou instabilidade no comportamento linguístico do indivíduo e b) se a comunidade muda ou mantém-se estável no período de tempo considerado. A partir da combinação dessas possibilidades, Labov (1994) estabelece quatro padrões de comportamentos distintos:

a) estabilidade: não há alteração nem no comportamento do indivíduo nem na comunidade durante o período observado;

b) gradação etária: há alteração no comportamento linguístico do indivíduo, mas a comunidade mantém-se estável;

c) mudança geracional: o comportamento linguístico individual mantém-se estável, mas há mudança na comunidade;

d) mudança na comunidade: há mudança na perspectiva individual e na perspectiva da comunidade.

O estudo em tempo aparente não oferece muita precisão para percebermos se estamos diante de uma gradação etária ou de uma mudança geracional tendo em vista a impossibilidade de comparação do comportamento linguístico do indivíduo em momentos diferentes do tempo. Por outro lado, recorrendo ao estudo em tempo real, é possível verificar o comportamento linguístico do indivíduo e da comunidade. Assim, se o indivíduo de uma faixa etária x revela o mesmo comportamento linguístico de falantes dessa mesma faixa na primeira amostra, há um indicativo de que estamos diante de um caso de gradação etária. Se, por outro lado, ao mudar de faixa etária, o indivíduo mantém o mesmo comportamento da faixa anterior, é possível que seja aí uma mudança geracional. Nesse tipo de mudança, o comportamento linguístico do indivíduo mantém-se durante toda a vida. Na mudança comunitária, todos os indivíduos da comunidade alteram seu comportamento linguístico, adquirindo formas novas.

Apresentadas as considerações acerca dos pressupostos da teoria que embasa este trabalho, passa-se, no capítulo seguinte, à descrição do caminho percorrido para a sua efetivação. Além disso, serão apresentadas as hipóteses estabelecidas para os grupos de fatores, de modo que será necessário, em alguns momentos, agregar algumas discussões teóricas.

5 A METODOLOGIA

A utilização de uma metodologia de investigação rigorosa deve estar entre as preocupações de qualquer pesquisador, para que tenha a garantia de que os

resultados obtidos sejam confiáveis e coerentes com o aporte teórico adotado. No caso do linguista, já de início, encontramos uma primeira dificuldade: “a linguagem pouco se presta à experimentação, já que só se manifesta na espécie humana, que é dificilmente manipulável para fins de pesquisa” (SILVA, 2007, p. 117). Dessa forma, para levar a efeito um estudo, devemos coletar os dados a partir de observações, recorrendo a um conjunto de procedimentos metodológicos refinados.

A sociolinguística é uma disciplina de base empírica que oferece uma metodologia diversificada para o tratamento de fenômenos em variação ou mudança linguística e sua inter-relação com a cultura e a sociedade. A diretriz metodológica que se identifica com a proposta de pesquisa dialetal aqui desenvolvida é a da teoria da variação, que, fundamentada na análise quantitativa, opera com um grande volume de dados de situações reais de comunicação, coletados de grupos de indivíduos representativos de uma comunidade. Por realizar uma análise estatística a partir de uma amostra representativa, essa teoria permite projetar à comunidade os resultados obtidos para o grupo considerado.

A sociolinguística quantitativa, como também é conhecido o modelo, é adequada ao tratamento da língua em contexto social heterogêneo, porque, como informam Guy e Zilles (2007, p. 73), “[...] possibilita o estudo da variação linguística, permitindo ao pesquisador apreender sua sistematicidade, seu encaixamento linguístico e social e sua eventual relação com a mudança linguística”. Nesse sentido, a alegação de que a sociolinguística apresenta poucas reflexões teóricas não deve ser vista com relevância, pois o pesquisador que adota tal aporte teórico-metodológico agrega à quantificação dos dados uma análise qualitativa prévia e uma etapa de interpretação dos resultados obtidos com o tratamento estatístico.

Neste capítulo, apresentamos uma descrição minuciosa dos procedimentos metodológicos empregados para a coleta dos dados e a análise das formas objetivas de segunda pessoa em variação no português falado em Santo Antônio de Jesus, obedecendo-se às seguintes etapas: a) seleção dos falantes; b) recolha dos dados; c) transcrição dos dados; d) identificação dos contextos intralinguísticos e extralinguísticos; e) suporte estatístico.