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2 COMPLEMENTAÇÃO VERBAL E PRONOMINALIZAÇÃO NO PORTUGUÊS

2.1 A NOÇÃO DE COMPLEMENTAÇÃO VERBAL NOS ESTUDOS GRAMATICAIS

2.1.1 O complemento verbal não-preposicionado

O complemento acusativo do latim corresponde, em geral, à função de objeto direto nas línguas neolatinas. Em português, esse complemento é caracterizado pela ausência de preposição e por sua posição estrutural na oração, conforme definição apresentada por Bechara (2003, p. 416): o complemento direto é “representado por um signo léxico de natureza substantiva (substantivo ou pronome) não introduzido por preposição necessária”. A distinção entre sujeito e objeto apresentada pelo autor leva em conta o fato de o primeiro aparecer à esquerda do verbo, estabelecendo relação de concordância, e o último à direita, sem influenciar na flexão do verbo.

Com base em critério semântico, Cunha e Cintra (2002 p. 141) assinalam que o objeto direto “indica o ser para o qual se dirige a acção verbal”. Esse é também o critério empregado por Rocha Lima (2011), para quem o OD é o paciente da ação

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O papel de tema é atribuído à entidade deslocada por uma ação (você/o convite). O paciente, por sua vez, sofre o efeito de alguma ação, havendo uma mudança de estado (o lanche) (CANÇADO, 2013).

verbal e indica (i) o ser sobre o qual a ação recai, (ii) o resultado da ação e (iii) o conteúdo da ação (cf. (16a), (16b) e (16c), respectivamente)19

.

(16) a. Castigar o filho. b. Construir uma casa.

c. Prever a morte do ditador.

Os referidos gramáticos agregam, ainda, noções sintáticas e morfológicas a essa definição ao mencionarem que o OD corresponde ao sujeito de construções passivas e, na terceira pessoa, é comutável pelos clíticos o, a, os, as.

Bechara (2003), por sua vez, para além de referir-se às estratégias de comutação e de transposição da oração na voz ativa para a voz passiva, com a passagem do sujeito a agente da passiva e do objeto a sujeito paciente, orienta identificar o OD fazendo-se a sua substituição pelos pronomes interrogativos quem? [é que] (para pessoas) e [o] que? [é que] e topicalizando o complemento direto para a esquerda do verbo. O gramático esclarece que não se trata de estratégias infalíveis e adverte que se deve sempre recorrer a mais de uma delas para identificar o complemento direto, uma vez que nem todo predicado de oração ativa admite a passagem para a passiva e há construções sem o complemento direto que também aceitam a transformação para a passiva. Salienta, ainda, que não soam com naturalidade perguntas com quem? ou o que? em relação a verbos que indicam medida, peso, tempo, preço (O corredor mede cinco metros) e não são frequentes, embora possíveis, pronominalizações com verbos com essa natureza semântica (O corredor mede-os).

Mateus et al. (2003) definem o complemento direto como o argumento interno – nominal ou oracional – de predicadores verbais de dois ou três lugares com papel paciente, tema ou objeto. O OD é imediatamente dominado por SV, à direita do verbo, e assume as seguintes posições argumentais: a) com verbos de dois lugares (Cf. (14a)): [S V OD]; b) com verbos de três lugares (Cf. (15b)): [S V OD OI]; c) com

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complemento oblíquo20 (Cf. (15a)): [S V OD OBL]. (MATEUS et al, 2003, p. 163). As

autoras citam algumas propriedades dessa categoria, a saber:

a) a possibilidade de não aparecer realizado fonologicamente (objeto nulo);

(17) a. João leu Ø OD toda a noite

b. Ana está a comer Ø OD.

b) o argumento interno aparece incorporado ao verbo formando com este uma predicação monoargumental. Tais verbos, como ter, fazer e dar, cujo conteúdo semântico é esvaziado, recebem do complemento a carga semântica e são conhecidos na literatura como verbos leves ou verbos- suporte (dar uma ajuda/ajudar, ter medo/temer, fazer um discurso/discursar);

c) o OD representado por um SN é “o argumento que admite mais facilmente um especificador nulo”;

(18) a. Vi [miúdos] OD no jardim.

b. *[Miúdos]SU estão a brincar no jardim21.

d) pode aparecer antecedido por preposição em casos em que o objeto é representado pelo pronome relativo quem (19a), é um clítico pronominal com redobro (19b) e em certas expressões feitas (19c).

(19) a. Vi o velhote [a quem]OD o Luís ajudou.

b. Vi-[os]OD a eles à saída do cinema.

c. Amar a Deus (mas amá-Lo).

Bechara (2003b, p. 31), em sua Gramática escolar da língua portuguesa, menciona que esse tipo de objeto direto referido em (19a), (19b) e (19c), o objeto direto preposicionado22 (ODP), ocorre quando a preposição aparece, sem ser necessária,

acompanhando o complemento verbal objeto direto, podendo, portanto, ser

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O conceito de complemento oblíquo será apresentado na seção 2.1.2. 21

No PB, a construção não é vista como agramatical.

22 Embora o título da subseção se refira a “complementos não-preposicionados”, tratamos aqui do objeto direto preposicionado porque as construções com essa característica são comutáveis pelo clítico acusativo o(s)/a(s).

dispensada. Nessa mesma página, contudo, o autor afirma que há casos em que a preposição junto ao objeto direto é obrigatória:

a) quando está representado por pronome pessoal oblíquo tônico: Não vejo a ela há meses.

Entendemos a ele muito bem.

b) quando está representado pela expressão de reciprocidade um ao outro: Conhecem-se um ao outro.

c) quando o objeto direto é composto, sendo o segundo núcleo representado por substantivo:

Conheço-o e ao pai. (BECHARA, 2010, p. 31).

Cunha e Cintra (2002, p. 143) apontam a obrigatoriedade da preposição em construções de objeto direto apenas quando este for representado por um pronome oblíquo tônico. Afirmam, ainda, que é facultativo o uso da preposição com verbos que exprimem sentimentos, para evitar a ambiguidade ou quando o OD vem antecipado, conforme, exemplificam:

(20) a. Não amo a ninguém, Pedro. (C. dos Anjos)

b. Sabeis, que ao Mestre vai matá-lo. (M. Mesquita) c. A médico, confessor e letrado nunca enganes.

Para além dos casos apontados por Cunha e Cintra, Rocha Lima (2011, p. 300-301) menciona como obrigatório o uso da preposição: (i) diante do pronome quem, de antecedente expresso (ou pronome relativo) – “(...) perdi meu pai e senhor a quem muito amava...”; (ii) diante do nome de Deus – Amar a Deus sobre todas as coisas; (iii) diante de um substantivo que se encontra coordenado com um pronome átono – “(...) o reitor o esperava e aos seus responsáveis”; (iv) diante do complemento de um verbo transitivo direto usado impessoalmente, acompanhado da partícula se – Aos pais ama-se com fervor.

Os casos facultativos listados por Rocha Lima (2011, p. 302-305) são: (i) diante de pronomes referentes a pessoas (ninguém, alguém, todos, outro, etc.); e pronomes de tratamento; (ii) “com nomes próprios ou comuns – para evitar ambiguidade, ou por fatores (não bem caracterizados)23 que se condicionam ao sentimento de certas

épocas ou de certos escritores”; (iii) com o pronome quem, sem antecedente; (iv)

23 “Benza Deus aos teus cordeiros” (Rodrigues Lobo) e “o verdadeiro conselho é calar, e imitar a santo Antônio” (Vieira)

com nomes antecedidos de partícula comparativa (como, que, do que); (v) quando o objeto direto precede o verbo; (vi) quando a preposição tem valor partitivo; e (vii) em certas construções idiomáticas (cumprir com o dever/cumprir o dever, puxar da faca/puxar a faca)24.

As estruturas com ODP foram abundantes no português do século XVI, XVII e XVIII e no estágio atual do PB estão em decréscimo, fato que, de acordo com Ramos (1992), se relaciona à perda da preposição a. Fica a indagação se o uso do clítico lhe como OD não poderia se ligar de alguma forma ao declínio do ODP.