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Eu vi tu ontem na feira, mas tu não me viu/viste/visse.

3 A FORMAÇÃO DO PORTUGUÊS DO BRASIL E O CENÁRIO SOCIOLINGUÍSTICO DE SANTO ANTÔNIO DE JESUS

3.1 O CENÁRIO PLURIÉTNICO E PLURILÍNGUE DA FORMAÇÃO DO PB: PORTUGUESES, ÍNDIOS E AFRICANOS

3.1.1 O contato entre índios e portugueses e as repercussões linguísticas

O registro feito por Ribeiro (1995), novamente, servirá como fonte para a descrição do cenário sócio-histórico em que se dá a formação da identidade linguística nacional, dessa vez, ressaltando o multilinguismo inicial e generalizado quando do achamento das terras brasileiras: “Eram, tão-só, uma miríade de povos tribais, falando línguas do mesmo tronco, dialetos de uma mesma língua, cada um dos quais, ao crescer, se bipartia, fazendo dois povos que começavam a se diferenciar e logo se desconheciam e se hostilizavam” (RIBEIRO, 1995, p. 20). Como atesta o

35 “[...] it is the sociolinguistic history of the speakers, and not the structure of the language, that is the primary determinant of the linguistic outcome of language contact. Purely linguistic considerations are relevant but strictly secondary overall (THOMASON; KAUFMAN, 1988, p. 35)

relato, os povos indígenas, que se encontravam espalhados do litoral paulista até o Rio Grande do Norte, compartilhavam uma relativa unidade linguístico-cultural, na medida em que utilizavam línguas aparentadas pertencentes à família linguística tupi-guarani.

Outros relatos históricos reiteram essa descrição, ao mencionarem que a costa atlântica brasileira, no início da colonização portuguesa, era habitada por cerca de um milhão e meio de índios, segundo as estimativas mais aceitas, os quais, em sua maioria, pertenciam às tribos do tronco tupi36

. Ressalvada a fragilidade estatística do dado, Rodrigues (2000) menciona a existência de cerca de 1273 línguas indígenas no território brasileiro no momento do contato entre portugueses e índios, das quais, atualmente, restam cerca de 180, concentradas principalmente na região Amazônica e faladas por cerca de 350.000 índios. Diante de tais dados, como assevera Mattos e Silva (1987, p. 07), “qualificar de glotocida o processo histórico do contacto entre a língua portuguesa e as línguas indígenas brasileiras não se configura nem como exagerado nem como inexato.”

Diferentemente de outros cenários de contato linguístico, no Brasil, os portugueses inicialmente valeram-se das língua autóctones para implementar, por um lado, a ação escravizadora dos colonos e, por outro, a ação cristianizadora jesuítica, ambas a serviço do empreendimento colonial da Coroa, como é possível entender nas palavras do Padre Manuel da Nóbrega: “Sujeitando-se o gentio [...] terão serviços e vassalagem dos Índios e a terra se povoará e Nosso Senhor ganhará muitas almas e S.A. terá muita renda nessa terra, porque haverá muitas criações e muitos engenhos já que não haja muito ouro e prata”(Manuel da Nóbrega, Plano Civilizador, apud EISENBERG, 2000, p. 112 e 239).

O multilinguismo, visto como uma confusão babélica e uma ameaça à propagação da fé cristã, representava um empecilho ao recrutamento dos índios para o trabalho forçado. Como parte da tarefa de propagação da fé e consolidação do império português em terras nacionais, iniciou-se uma política homogeneizadora, instaurada

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Como assinalado por Mattos e Silva (2006), havia também no litoral índios das tribos do tronco linguístico tupinambá e tupiniquim, ambos da família tupi-guarani. Em pontos distantes da costa, estavam os tapuia, que falavam línguas do tronco macro-jê.

pelas missões jesuíticas e sustentada no sistema de aldeamento indígena. Nas aldeias, punham-se em convivência índios de diferentes etnias, que eram forçados a aprender, além da religião, a língua comum, o tupi, que mais tarde viria a ser conhecida como língua geral, termo que, segundo Rodrigues (1996, p. 06), designa “determinada categoria de línguas, que surgiram na América do Sul nos séculos XVI e XVIII em condições especiais de contacto entre europeus e povos indígenas”.

O termo língua geral recobre, de acordo com Lucchesi (2012, p. 43), uma série de situações: i) a koiné empregada na comunicação entre as tribos de línguas do tronco tupi da costa brasileira; (ii) a sua versão como língua franca usada no intercurso dos colonizadores portugueses e indígenas; (iii) a versão nativizada predominante nos núcleos populacionais mestiços que se estabeleceram no período inicial da colonização; e (iv) a versão “gramaticalizada” pelos jesuítas sob o modelo do português e utilizada largamente na catequese, até de tribos de língua não tupi – chamados por estes de tapuias, que significa ‘bárbaro’, em tupi.

A imposição da língua geral, criada a partir de outras línguas do tronco tupi, e sua gramaticalização pelo Padre José de Anchieta na Gramática da língua mais usada na costa do Brasil, tiveram consequências aniquiladoras do ponto de vista linguístico-cultural, como destaca Mattos e Silva (1987, p. 08):

a [...] obra representativa da gramática quinhentista favoreceu o desaparecimento de quantas línguas do litoral brasileiro não se sabe, em proveito de um tupi que veio a ser instrumento da difusão da fé e do império e levou para a morte culturas e línguas, uma vez que a [...] Gramática se tornou essencial para a catequese indígena e manual de ensino de uma língua que poderíamos considerar até certo ponto artificial a populações indígenas aloglotas, dominados e aldeados pelo poder leigo e sagrado e que se descaracterizaram culturalmente. Salvaram-se aquelas populações que fugiram, enquanto outras muitas foram liminarmente dizimadas pelas epidemias transmitidas nos primeiros contatos com os homens do Velho Mundo.

Rodrigues (2006) assinala que houve a formação, em momentos distintos, de duas línguas gerais no cenário colonial brasileiro: a língua geral paulista e a língua geral amazônica. A primeira, formada por volta de 1532, no litoral paulista, foi corrente por cerca de 250 anos na Capitania de São Vicente, tendo se expandido por Minas Gerais, Mato Grosso e outras províncias, com o empreendimento das expedições dos bandeirantes. A segunda, formada no século XVII, a partir da interação entre os

colonos portugueses e os índios tupinambás, desenvolveu-se no Pará e no Maranhão. A língua geral amazônica sofreu modificações, passando depois à condição de língua natural – nheengatu –, ainda falada, embora sem a hegemonia de outrora, no território da Amazônia brasileira, onde se refugiaram os índios tupinambás afugentados da costa atlântica.

A miscigenação, consequência da união entre homens brancos e mulheres indígenas, nos primeiros anos da colonização, foi responsável pela propagação da língua geral. As primeiras expedições portuguesas eram compostas exclusivamente por homens, o que os levava a se casarem com índias ou manterem relações de concubinato – práticas, inclusive, estimuladas pela Coroa portuguesa para garantir a eficácia do processo de dominação –, e os filhos daí nascidos eram criados pelas mães, que lhes transmitiam a língua tupi. Dessa forma, a língua geral era nativizada, adquirindo estatuto de língua natural.

A língua geral foi a principal forma de comunicação durante três séculos entre índios, negros, afrodescendentes e brancos e, nas palavras de Holanda (1976, p. 90), em Raízes do Brasil, foi “de uso mais corrente, em verdade, do que o próprio português”, sobretudo em São Paulo, enquanto na zona açucareira de Pernambuco e Bahia predominava o português. Sobre o uso generalizado da língua geral pela população paulista, é válido lembrar o conhecido relato do Padre Anônio Vieira:

É certo que as famílias dos portuguezes e índios de São Paulo estão tão ligadas hoje humas ás outras, que as mulheres e os filhos se criam mystica e domesticamente, e a língua que nas ditas famílias se fala he a dos indios, e a portugueza a vão os meninos aprender à escola... (Obras Várias, I, Lisboa 1856, p. 249 apud HOLANDA, 1976, p. 88).

As línguas gerais começam a conhecer a sua derrocada a partir da implantação do projeto civilizatório iniciado no século XVIII, que, com a pretensão de livrar os índios de hábitos, segundo o Marquês de Pombal, prejudiciais ao desenvolvimento da Colônia, instituiu o português como língua oficial e proibiu do uso das línguas gerais. Aliado a isso, os ciclos econômicos cumprem um importante papel na difusão do português (já modificado) país afora.