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Eu vi tu ontem na feira, mas tu não me viu/viste/visse.

3 A FORMAÇÃO DO PORTUGUÊS DO BRASIL E O CENÁRIO SOCIOLINGUÍSTICO DE SANTO ANTÔNIO DE JESUS

3.3 ASPECTOS LINGUÍSTICOS DE SANTO ANTÔNIO DE JESUS

Como informamos em outros momentos deste texto, a fala santoantoniense já foi objeto de observação de algumas pesquisas. Tais estudos desenvolveram-se especialmente no âmbito do Projeto Vertentes do Português Popular do Português do Estado da Bahia, cujo objetivo é traçar um panorama sociolinguístico do português popular da Bahia, considerando a relevância do contato entre línguas na sua formação histórica e os processos atuais de difusão linguística a partir dos centros urbanos. Nesta seção retomaremos alguns resultados evidenciados nesses trabalhos (ANTONINO, 2007; MENDES, 2009; ASSIS, 2010) na tentativa de apresentar, de maneira aproximada, uma caracterização linguística dessa comunidade, no que diz respeito a alguns aspectos morfossintáticos. Vale ressaltar que tais estudos não tratam exclusivamente da variedade linguística de SAJ, antes a consideram em contraste com outra variedade do português popular do interior da Bahia (Poções).

Informamos que foi testada a interferência de fatores linguísticos nas análises realizadas, mas demos preferência apenas à exposição dos resultados dos fatores sociais, uma vez que nos interessa a inserção dos fenômenos na estrutura social da comunidade.

Antonino (2007) analisou a concordância de gênero e número em estruturas passivas e de predicativo do sujeito (as coisa estão cara ~ caro; a criança não foi atendida ~ atendido) com base em amostras de Santo Antônio de Jesus e Poções. Ao todo, a autora analisou 48 entrevistas, sendo 24 de cada município, as quais se distribuíram igualmente entre falantes urbanos e rurais. O percentual de variação desse fenômeno é bastante baixo, tendo em vista que a frequência registrada para a aplicação da concordância foi de 96%, o que sugere, de acordo com a autora, que o não uso da regra tenha sido mais evidente no passado.

A ausência de dados sobre esse fenômeno em variedades urbanas do PB, que, para a autora, é um indicativo da inexistência de variação significativa, aliada à frequência de não-concordância em torno de 20% em comunidades isoladas e ao resultado obtido em seu estudo, constituem de acordo com Antonino (2005), evidências de que se pode tomar o fenômeno em questão como uma característica resultante do processo de transmissão linguística irregular. Em síntese, “quanto mais intensa for a relação da comunidade de fala com o contato entre línguas, maior o nível de variação que se observa atualmente no uso das regras de concordância nominal e verbal” (ANTONINO, 2005, p. 96).

Antonino controlou a atuação de fatores sociais como sexo, faixa etária (25 a 35 anos, 45 a 55 anos e acima de 65), escolaridade (analfabetos e semianalfabetos), localidade de procedência do falante (rural ou urbana) e estada fora da comunidade (por, no mínimo, seis meses), mas na análise estatística para a concordância de gênero foi considerada relevante apenas esta última. Assim, o estudo demonstrou que os falantes que passaram mais de seis meses fora da comunidade lideram o processo de mudança em relação à recuperação da concordância padrão. A autora atribuiu esse resultado ao contato dos falantes com outras realidades linguísticas.

As demais variáveis, embora sem significância estatística, foram discutidas pela autora. Para a variável faixa etária, foi observado que os falantes mais jovens (faixa 1 – 25 a 35 anos) realizam mais a concordância de gênero, o que é justificável, tendo em vista que esse grupo tem maior contato com a escolarização. Em relação à variável sexo, era esperado que os homens residentes na zona urbana se aproximassem mais da aplicação da regra padrão da concordância nominal de

gênero, uma vez que, segundo o estudo, apresentariam maior inserção em ambientes em que esse uso é requerido, a exemplo do ambiente escolar, mercado de trabalho e centros urbanos. Entretanto, os resultados evidenciaram que as mulheres lideram o processo de mudança em relação à concordância de gênero. Acreditamos que o processo de urbanização, sobre o qual falamos anteriormente, aliado ao fato de que as mulheres começam a exercer novos papéis sociais, possam explicar esse resultado.

A análise estatística não considerou relevantes também a escolaridade e a procedência geográfica do falante, demonstrando, nesse último caso, que a integração, cada vez mais frequente, entre as populações urbana e rural dos municípios pode estar interferindo na realização da concordância de gênero e diminuindo as diferenças.

Quanto à variação na concordância de número em estruturas passivas e predicativas, o estudo de Antonino (2005) apontou a ocorrência de aplicação da regra de plural em apenas 4% do total de 307 ocorrências analisadas. A autora compara esse resultado à frequência de 1% registrada por Lucchesi (2008) para comunidades isoladas e a 46% registrados por Scherre (1991) em dados do Rio de Janeiro, de modo que é possível reforçar a existência de uma polarização linguística no português brasileiro.

Na correlação do fenômeno com a variável faixa etária, a autora observou que os falantes mais jovens – 25 a 35 anos – são os que mais realizam a concordância de número, o que, segundo ela, pode significar um processo de implementação da variante liderado por esse grupo de falantes.

Antonino (2005) compara os resultados de seu estudo com aqueles obtidos por Scherre (1991), que detectou um processo de variação estável, caracterizado pelo favorecimento da norma no grupo etário intermediário e desfavorecimento desta entre os falantes mais jovens e mais velhos. A partir dessa observação, Antonino (2005) sugere que seu estudo reafirma a hipótese da polarização sociolinguística do PB, uma vez que os falantes do interior do país estariam ainda caminhando para a

implementação da regra de concordância nominal de número, ao passo que os falantes de centros urbanos tendem a manter o padrão.

A análise da interferência do sexo confirma o resultado já apontado para essa variável no estudo da concordância de gênero, no que diz respeito ao fato de que os novos papéis sociais femininos, advindos da emancipação da mulher, estão influenciando em um maior uso das formas padrão por esse segmento social. Em termos quantitativos, detectou-se a frequência de 8% entre as mulheres e apenas 1% entre os homens.

As variáveis estada fora da comunidade, escolaridade e procedência geográfica do falante não foram consideradas relevantes na análise estatística, mas Antonino (2005) apresenta algumas considerações sobre elas. De acordo com a autora, os falantes que estiveram fora da comunidade por, no mínimo seis meses, tendem a apresentar maior uso das marcas de plural em estruturas passivas e predicativas, com 7% de frequência em oposição a 1% dos que nunca se ausentaram da comunidade, ou o fizeram em um intervalo menor do que seis meses. Em termos de escolaridade, a autora credita a não interferência dessa variável ao fato de os falantes pesquisados, que são analfabetos ou semianalfabetos, terem tido pouco acesso à educação formal. Quando feita a correlação da variável dependente com a origem geográfica do informante, foi detectado que os falantes da zona urbana usam mais a marca formal de número do que os residentes na zona rural.

Com base no mesmo corpus utilizado por Antonino (2005), Mendes (2009) buscou descrever a morfologia flexional de casos dos pronomes pessoais, definindo como variantes o uso do pronome flexionado (ele gosta de mim) o uso do pronome não flexionado (ele gosta de eu). A autora informa-nos que a sua análise variacionista será limitada à 1ª e a 2ª pessoas do singular, tendo em vista que, para as demais pessoas, predominam as formas não flexionadas em todas as funções sintáticas; em outras, palavras quase inexiste a variação.

As frequências registradas para o uso de formas não flexionadas foram 91% e 59%, respectivamente, para a 1ª e a 2ª pessoa. A autora adverte-nos que na segunda pessoa, a maior parte das estratégias de complemento verbal e adverbial é

construída com o pronome você, que não constitui variantes estigmatizadas, uma vez que o traço nominal desse pronome lhe permite figurar em diversas posições sintáticas. Assim, foram eliminados da análise também os dados de segunda pessoa.

Do total de 1127 ocorrências consideradas, 9% correspondem ao uso de formas não flexionadas e 91% de formas flexionadas. De acordo com Mendes (2009), esse resultado é semelhante ao que se encontrou para o português afro-brasileiro. A autora menciona que, ainda que a frequência da variante de prestígio seja elevada, reforça a hipótese da polarização linguística do PB, visto que, nos dados de norma culta, essa variante praticamente inexiste. Mendes (2009) estudou a interferência dos mesmos fatores sociais estudados por Antonino (2005), acrescidos do grupo de fatores discurso laico/religioso.

Na correlação com os fatores sociais, foi verificada a relevância das variáveis discurso laico/religioso e localidade. No primeiro caso, ficou constatado que, no discurso de cunho religioso, o falante tem maior probabilidade de recorrer a variantes padrão – pronome flexionado –, tendo em vista o seu caráter mais conservador. No segundo, verificou-se que a variante padrão apresenta maior produtividade entre os falantes oriundos da sede dos municípios. Para Mendes (2009), este resultado está em conformidade com a ideia de que há um continuum e os falantes do português popular da sede dos municípios pesquisados ocupam uma posição mais próxima à das variedades urbanas culta e semi-culta do PB. A autora afirma ainda que “as redes de relações sociais que caracterizam essas localidades influenciam nos seus comportamentos lingüísticos, uma vez que as zonas rurais com alta densidade e rede de relações multiplex apresentam um alto grau de coesão interna, sendo, portanto, menos sensível às influências externas, e conservando os padrões mais arcaicos de comportamento social e lingüístico da comunidade” (MENDES, 2009, p. 106).

As variáveis sexo, estada fora da comunidade, faixa etária e escolaridade não apresentaram relevância estatística no estudo; entretanto, são apresentadas algumas considerações sobre elas. Diferentemente do que Antonino (2007) constatou, o estudo de Mendes revela que os homens apresentam um padrão de

comportamento mais voltado para a escolha das formas padrão. A autora atribui esse desvio em relação ao que comumente é verificado para os estudos centrados em comunidades de fala urbana à inserção masculina no mercado de trabalho ou ao seu deslocamento para grandes centros urbanos em busca de melhores condições de vida. O resultado encontrado por Mendes (2007) traduz o comportamento habitual de comunidades rurais, onde as variantes prestigiadas provêm de fora da comunidade, a partir do contato com os centros urbanos, e as mulheres, que têm círculo social mais restrito, estão menos expostas a essas formas.

Os resultados para a variável estada foram da comunidade sugerem que os falantes que se ausentaram da comunidade por pelo menos seis meses apresentam maior propensão à escolha das formas flexionadas do pronome, enquanto os que nunca saíram da comunidade mostram-se mais resistentes às influências externas. Em relação à faixa etária, as frequências registradas foram: 90% de realização da forma flexionada do pronome, na faixa I, 91%, na faixa III, e 93%, na faixa II. A variável escolaridade nesse estudo revelou que há uma tendência de os falantes semialfabetizados fazerem uso das formas flexionadas, ao contrário dos analfabetos, entre os quais prevalecem as formas não-flexionadas.

Assis (2010), também no âmbito dos estudos do Projeto Vertentes, investigou a regência variável dos verbos de movimento no português popular do interior da Bahia, considerando também dados de Santo Antônio de Jesus e Poções. Nesse estudo, a princípio foram tomadas como formas variantes as preposições a (vou à cidade), para (vou para a cidade), em (vou na cidade), até (eu fui até a feira), todavia, dado o baixo número de ocorrências de a e até no corpus, o que demonstra que tais formas não fazem parte da gramática dos falantes pesquisados, foram consideradas apenas as preposições para e em. Das 1.356 ocorrências levantadas, 787 correspondem ao uso da preposição para – 58% do total –, e 569 da preposição em – 42% do total. Além de variáveis linguísticas, a autora controla a interferência das variáveis sexo, faixa etária, escolarização e estada fora da comunidade, cujos resultados retomaremos a seguir.

No estudo da variável faixa etária, Assis (2010) detectou que a forma inovadora na comunidade – a preposição para – é predominante entre os falantes mais jovens, ao

passo que, nas faixas 2 e 3, predomina o uso de em, variante mais estigmatizada. A autora observa que seus resultados contrastam com os de Ribeiro (1996), que, tomando para análise dados de norma urbana culta, revela a implementação da preposição em entre falantes mais jovens, especialmente os do sexo masculino. Mollica (1998) também indica, de acordo com Assis (2010), igual tendência de mudança para a norma urbana semi-culta. A comparação entre os estudos, colocando de um lado a norma urbana culta e semi-culta, com a implementação da preposição em, e, de outro, a norma popular do interior do país, com a implementação da preposição para, confirmam, de acordo com Assis, o cenário de polarização sociolinguística do Brasil. Na correlação da variável dependente com o sexo do informante, verificou-se o predomínio da variante inovadora para na fala dos homens, enquanto as mulheres demonstram usar a preposição em. De acordo com Assis (2010, p. 120),

Esse perfil mais conservador da variante em pode refletir o passado de contato entre línguas dessas comunidades. Ou seja, no passado os complementos locativos deveriam ser regidos por uma única preposição, no caso o em, na sua forma fonética CV ni. Com o tempo, a preposição para foi sendo introduzida na comunidade.

Em relação à interferência da comunidade de que provém o falante – Santo Antônio de Jesus e Poções –, ficou evidenciado que Poções revela maior tendência ao uso da variante conservadora em em oposição ao aspecto inovador de SAJ. Assis (2010) sugere que o comportamento linguístico dos santoantonienses está relacionado ao fato de ser a cidade um polo comercial abastecedor da região e, portanto, “o processo de difusão da variante inovadora, a partir dos grandes centros urbanos, atinge inicialmente os centros urbanos mais próximos e mais integrados economicamente, para depois alcançar os pequenos centros urbanos, mais distantes e economicamente mais atrasados.” (ASSIS, 2010, p. 121).

Quando comparados os estudos de Antonino (2007), Mendes (2009) e Assis (2010), podemos sugerir algumas observações sobre o comportamento linguístico do interior da Bahia, representado pelas comunidades rural e urbana de Santo Antônio de Jesus; todavia, adiantamos, não há padrões de comportamento fixos, uma vez que é necessário considerar a dinâmica de cada comunidade.

Os estudos aqui apresentados reforçam a hipótese da polarização linguística do PB. Mesmo quando apontam que a frequência de uso das variantes não estigmatizadas suplanta a das formas estigmatizadas, é preciso considerar que o emprego das formas desprestigiadas é muito menor nas variedades cultas. Quanto à análise dos fenômenos morfossintáticos em correlação com a variável sexo, é notória a impossibilidade de estabelecer um padrão de comportamento linguístico para homens e mulheres, uma vez que, no estudo de Antonino (2007), as mulheres mostraram-se mais propensas à realização da concordância, ao passo que nos estudos de Mendes (2009) e Assis (2010), os homens demonstraram predileção pelas formas não estigmatizadas.

É preciso levar em conta que os estudos consideraram falantes de procedência rural e urbana, que, em geral, têm comportamentos linguísticos diferentes. Na observação da faixa etária, vimos que os falantes mais jovens deram preferência às formas menos estigmatizadas, comportamento que pode estar relacionado ao maior contato que esses falantes têm com a escola ou mesmo com a mídia. A variável estada fora da comunidade também revelou uma tendência semelhante nos três estudos: os falantes que se ausentaram da comunidade demonstram predileção pelas formas não estigmatizadas.