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2 COMPLEMENTAÇÃO VERBAL E PRONOMINALIZAÇÃO NO PORTUGUÊS

2.1 A NOÇÃO DE COMPLEMENTAÇÃO VERBAL NOS ESTUDOS GRAMATICAIS

2.1.2 O complemento verbal preposicionado

Na maioria das gramáticas pedagógicas e tradicionais, o complemento verbal regido de preposição é incluído na categoria objeto indireto. É essa a definição que se verifica em Cunha e Cintra (2002, p. 144), onde se lê que o objeto indireto é o “complemento que se liga ao verbo por meio de [qualquer] preposição”. Por essa definição, termos de natureza sintático-semântica diferente, como os destacados em (21a) e (21b), são tratados sob o mesmo rótulo de OI.

(21) a. As crianças gostam de bolo de chocolate. b. Entreguei a carta ao rapaz.

Em (21a), o verbo psicológico gostar projeta uma estrutura com um experenciador – as crianças – e uma fonte desencadeadora da experiência – bolo de chocolate. Em (21b) o verbo entregar seleciona um argumento com papel beneficiário comutável por lhe, diferentemente de de bolo de chocolate, que não admite a substituição pelo clítico.

Cunha e Cintra (2002) assinalam ainda que o pronome oblíquo lhe/lhes representa essencialmente o objeto indireto ao lado de outros pronomes (me, te, nos e vos), que oscilam entre as funções de OD e OI, dependendo do verbo a que estejam

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Bechara (2003) chama a preposição usada nesses contextos de posvérbio. A preposição acrescenta um “um novo matiz de sentido”.

ligados. Os autores informam que nesses casos, em que o OI é representado pelo pronome oblíquo, não ocorre o emprego da preposição.

Rocha Lima (2011) e Bechara (2003), divergindo de Cunha e Cintra (2002), expressam certa semelhança ao definirem o objeto indireto como o complemento que se refere quase sempre a um ser animado, introduzido pela preposição a e, mais raramente, para e que expressa o papel de beneficiário, destinatário, sendo comutável pelo pronome pessoal lhe/lhes. Dessa forma, o segundo argumento interno em (21b) é tratado como OI por atender a essas condições, ao contrário do argumento interno de (21a), chamado por esses autores de complemento relativo. Rocha Lima (2011) assim distingue o complemento relativo do objeto indireto tradicional:

Não representa a pessoa ou coisa a que se destina a ação, ou em cujo proveito ou prejuízo ela se realiza. Antes denota, como o objeto direto, o ser sobre o qual recai a ação; não corresponde, na 3ª pessoa, às formas pronominais átonas lhe, lhes, mas às formas tônicas ele, ela, eles, elas, precedidas de preposição [...]. (ROCHA LIMA, 2011, p. 252).

Bechara (2003) apresenta o complemento relativo como complemento de verbos de grande extensão semântica e a preposição que introduz o complemento, diferentemente daquela que introduz o OI, constitui uma extensão do verbo e sua escolha está condicionada à norma estabelecida pela tradição, podendo, inclusive, haver o emprego de mais de uma preposição. O autor lembra, porém, que certos usos são gramaticalmente previsíveis como concorrer com, agregar a, depender de, que apresentam identidade entre o prefixo e a preposição, ou o emprego da preposição de com verbos pronominais. Bechara (2003) assinala que a identidade funcional entre o complemento relativo e o objeto direto explica a possibilidade de muitos verbos receberem o objeto direto no lugar do complemento relativo (atender ao telefone/atender o telefone; presidir à sessão/presidir a sessão; satisfazer o pedido/satisfazer ao pedido).

Outra divergência encontrada nos estudos tradicionais diz respeito à natureza do argumento de verbos como ir e chegar nos exemplos a seguir:

b. Chegarei a Salvador ainda hoje.

Embora comumente definidos como intransitivos, nossa intuição de falante nos mostra que tais verbos não têm “significação completa”, necessitando, portanto, de um termo que indique aonde alguém vai ou chegou. Bechara (2003) inclui os argumentos desses verbos entre os complementos relativos, advertindo-nos, contudo, que:

Não há unanimidade entre os estudiosos em considerar tais argumentos do predicado complexo como complemento relativo. Levando em conta exclusivamente o aspecto semântico, muitos preferem considerar tais termos como adjuntos circunstanciais ou adverbiais [...]. Pelas mesmas razões, também não é unânime a identificação como objeto direto argumentos do predicado complexo que têm por núcleos verbos que significam medida, peso, preço e tempo. A verdade é que significados gramaticais [“agente”, “paciente”, “locativo”, “direção”, etc.] se manifestam mediante esquemas sintáticos muito variados. Repare-se que, numa oração como O policial acompanhou o idoso ao banco na hora do tumulto, o termo indicativo do lugar (ao banco) é inerente ao predicado, e, portanto, não pode ser dispensado, como ocorre com na hora do tumulto. [E. Paiva, 71 e ss.]. (BECHARA, 2003, p.421).

Rocha Lima (2011) trata complementos como os exemplificados em (22a) e (22b) como complementos circunstanciais, atribuindo-lhes a mesma importância dos demais como elemento indispensável à construção do significado do verbo. Bechara (2003) utiliza ainda a designação dativos livres, que são para ele “construções especiais de objeto indireto”, definidas como:

[...] argumentos sintático-semânticos extensivos da função predicativa do conteúdo comunicado nas respectivas orações.

[...] remanescentes de construções, algumas das quais da sintaxe latina, aparecem sob forma de objeto indireto, nominal ou pronominal, alguns termos que não estão direta ou indiretamente ligados à esfera do predicado – são os chamados dativos livres [...] (BECHARA, 2003, p. 423-4, grifos do autor).

Em princípio, Bechara (2003, p. 424) trata os dativos livres como objetos indiretos, mas reconhece que não estão ligados ao verbo. Para o autor, os dativos livres são representados pelos: a) dativo de interesse (dativus commodi et incommodi) – “a quem aproveita ou prejudica a ação verbal”: beneficiário (Ele só trabalha para os seus); b) dativo ético – variedade do anterior, “representa aquele pelo qual o falante tenta captar a benevolência do seu interlocutor na execução de um desejo” (Não me enviem cartões a essas pessoas); c) dativo de posse – exprime o possuidor (Doe-me

as costas); d) dativo de opinião – exprime a opinião de uma pessoa (Para nós, ela é a culpada).

Mateus et al. (2003, p. 289) definem o objeto indireto como “o argumento interno de verbos de dois ou três lugares25 com o papel semântico Alvo ou Fonte”. Introduzido

pela preposição a, frequentemente está associado ao traço [+ animado] (Cf. (23a) e (23b), mas pode ocorrer com o traço [- animado] (Cf. (23c)).

(23) a. O Pedro não obedeceu [à Maria] OI

b. O João ofereceu um CD [ao Pedro] OI

c. As crianças sobreviveram [ao incêndio] OI

O objeto indireto pode ser um argumento [- animado], segundo Mateus et al. (2003), com alguns predicadores de dois lugares, como obedecer (obedecer ao regulamento), sobreviver (sobreviver ao massacre) ou com verbos como dar e fazer, quando seguidos de um objeto direto cujo núcleo seja um nome deverbal: Maria deu [uma pintura] às estantes. Além disso, para as autoras, o OI apresenta a forma dativa da flexão casual, quando o objeto indireto é um pronome pessoal, e ocorre imediatamente à direita do objeto direto, adjacente ao verbo, quando é um pronome clítico ou imediatamente à direita do verbo, se o objeto indireto for um sintagma nominal pesado ou uma frase.

Mateus et al. (2003, p. 294) distinguem o complemento indireto do complemento oblíquo, definindo estas últimas como “[...] relações gramaticais que não são centrais”, as quais podem ser representadas por argumentos obrigatórios, como em (24a) e opcionais, como em (24b), e por adjuntos, como em (24c). Os complementos oblíquos definidos por Mateus et al. (2003) correspondem aos complementos circunstanciais e relativos descritos por Rocha Lima (2011).

(24) a. O João pôs o livro [na estante] OBL

b. O Pedro viajou [do México] [para Lisboa] OBL

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Os verbos ditransitivos selecionam dois complementos internos, em geral, um deles é um complemento preposicionado frequentemente associado ao objeto indireto, mas pode ser, segundo Mateus et al. (2003), um complemento oblíquo.

c. O meu amigo pintou esse quadro [para a Maria] OBL

Em (24a) e (24b), os verbos selecionam complementos circunstanciais – na estante e do México para Lisboa –, que, de acordo com a GT, são adjuntos adverbiais. Mateus et al. (2003), ao enquadrarem esses termos entre os complementos oblíquos obrigatórios, argumentam que os adjuntos, diferentemente dos complementos oblíquos obrigatórios, “são unidades que fazem parte da interpretação situacional, mas não dependem de nenhum item lexical presente na frase, como acontece com expressões de tempo e muitas expressões de localização espacial.” (MATEUS et al., 2003, p. 184). Ainda a respeito da diferença entre adjuntos e complementos oblíquos, as autoras observam que:

(i) Os constituintes com relações gramaticais oblíquas que são complementos do verbo não podem ocorrer numa interrogativa segundo o esquema O que é que SU fez OBL?/O que é que aconteceu a SU OBL?, sendo a resposta mínima não redundante o SV constituído pelo verbo e pelos respectivos complementos.

P: *O que é que o João fez [na estante] OBL?/R: *Pôs o livro; *O que é que o Pedro fez [do México] [para Lisboa]?/*R: Viajou.

(ii) os constituintes com relações gramaticais oblíquas que sejam adjuntos podem ocorrer numa interrogativa segundo o esquema O que é que SU fez OBL?/O que é que aconteceu a SU OBL?, sendo a resposta mínima não redundante o SV constituído pelo verbo e pelos respectivos complementos. P: O que é que o meu amigo fez [para a Maria] OBL?/R: Pintou esse quadro.

Outra característica que diferencia o objeto indireto do complemento oblíquo diz respeito à natureza da preposição introdutora. Os complementos oblíquos podem ser introduzidos por diferentes preposições (em, para, a) e expressam relações semânticas diversas, tais como instrumento, beneficiário, tempo, duração, frequência, situacional, causa, instrumento, companhia, locativo, etc. O objeto indireto é introduzido pela preposição a, esvaziada semanticamente e que funciona apenas como um marcador morfológico do caso dativo.

Até aqui revisamos alguns conceitos e apresentamos esclarecimentos que consideramos necessários à compreensão da abordagem que faremos a seguir acerca das inovações na sintaxe de complementação.