• Nenhum resultado encontrado

Eu vi tu ontem na feira, mas tu não me viu/viste/visse.

3 A FORMAÇÃO DO PORTUGUÊS DO BRASIL E O CENÁRIO SOCIOLINGUÍSTICO DE SANTO ANTÔNIO DE JESUS

3.1 O CENÁRIO PLURIÉTNICO E PLURILÍNGUE DA FORMAÇÃO DO PB: PORTUGUESES, ÍNDIOS E AFRICANOS

3.1.2 Em cena, africanos e afrodescendentes

A colonização das terras recém-descobertas na América e nas ilhas da Madeira, Canárias e São Tomé e Príncipe trouxe de volta a utilização em larga escala do trabalho escravo, que no Brasil começaria pelo emprego da mão-de-obra indígena e, posteriormente, alcançaria os negros africanos, com o início do tráfico transatlântico.

De acordo com Marquese (2006), a primeira leva de escravos africanos chegou ao Brasil em meados do século XVI e, por ser esta mão-de-obra utilizada em atividades especializadas nos engenhos, custava cerca de três vezes mais que a de um escravo indígena. A vinda de contingentes africanos fazia parte da tentativa de “salvar” o projeto de colonização do Brasil iniciado em 1530 com o estímulo ao desenvolvimento da produção açucareira, o qual, além da ausência de financiamento dos engenhos, esbarrava na dificuldade de recrutamento de mão-de- obra, esta causada pela morte frequente de indígenas, acometidos por moléstias como sarampo e varíola, e pela pressão dos jesuítas contra a escravização dos índios.

Schwartz (1988) destaca um rápido decréscimo da escravidão indígena no Recôncavo Baiano, a qual, em 1574, alcançava 93% dessa população, em 1591, 63% e, em 1639, não havia registro de índios escravizados na região.

Os números de escravos africanos trazidos para o Brasil durante os três séculos de tráfico não são precisos, mas, frequentemente, aceita-se a estimativa de mais de 4 milhões, assim distribuídos ao longo dos anos:

Tabela 06 – Estimativa do número de africanos desembarcados no Brasil entre 1551

e 1870

Período Número de africanos

desembarcados no Brasil 1551-1600 50.000 1601-1650 200.000 1651-1700 360.000 1701-1740 605.100 1741-1800 1.095.200 1801-1830 1.000.400 1831-1850 712.700 1851-1870 6.400 Total geral 4.029.800

Fonte: Adaptado de Alencastro (2000).

É conveniente lembrar que o primeiro censo da população brasileira foi realizado somente em 1872, de modo que os dados demográficos anteriores a esse período são aproximativos e devem ser vistos com cautela.

Em toda a América escravocrata, nenhuma outra região recebeu tantos escravos traficados quanto o Brasil. E foram estes os responsáveis pela concretização do projeto de colonização português, tendo em vista que o pequeno contingente português no século XVI não era suficiente para garantir a ocupação da colônia. A Tabela 07, a seguir, procura sintetizar as estimativas demográficas do período colonial e pós-colonial, evidenciando que os portugueses e a população descendente não passavam de um terço da população brasileira:

Tabela 07 – Demografia geral do Brasil entre 1538 e 1890

Etnias 1538-1600 1601-1700 1701-1800 1801-1850 1851-1890 Africanos 20% 30% 20% 12% 2% Negros brasileiros - 20% 21% 19% 13% Mulatos - 10% 19% 34% 42% Brancos brasileiros - 5% 10% 17% 24% Europeus 30% 25% 22% 14% 17% Índios integrados 50% 10% 8% 4% 2% Fonte: Mussa (1991, p. 163).

Já de início impressionam os números referentes à população indígena integrada, que, ao longo de todo o período colonial foi drasticamente dizimada. Os africanos e afrodescendentes, a partir do século XVII, passaram a compor o maior contigente da população brasileira, chegando ao índice de 60%, ou mais, entre os anos de 1601 e 1850. A população branca, nesse período, alcança entre 30 e 32%, com crescimento significativo na segunda metade do século XIX, quando chega a 41%, sendo 17% de europeus e 24% de brancos brasileiros. Esse aumento da etnia branca pode ter se dado graças às políticas de branqueamento da população que impulsionavam a imigração.

Os impactos desses dados serão visíveis não somente na formação cultural e na composição étnica da população mas também na formação da variedade linguística falada pelos colonizados. Quanto a esse último aspecto, observa-se que o

crescimento da população escrava e afrodescente, a partir do século XVII, comprova que foram estes os que mais contribuíram para a formação de um “português geral brasileiro”, conforme se refere Mattos e Silva (2004) para designar o antecedente histórico do português popular.

De acordo com Lucchesi (2009), é possível que os escravos inicialmente tenham mantido contato com a língua geral, mas a redução do contingente indígena favoreceu o contato com a língua portuguesa desde cedo. Hipotetiza-se também a existência de uma língua franca entre os escravos (MUSSA, 1991), mas não há evidências suficientes sobre ela, principalmente porque grande parte dos escravos africanos acabava por aprender o português, apresentando graus diferentes de aprendizagem, conforme sua posição no quadro social: os escravos domésticos, que habitavam a casa dos senhores, tinham maior acesso à língua alvo e acabavam por abandonar a sua língua materna, enquanto os escravos rurais usavam o português na comunicação com o colonizador, mas conservavam a língua materna nas senzalas. A aprendizagem do português dava-se de forma deficiente, uma vez que, segundo Mattos e Silva (2008, p. 395) “o modelo da língua alvo era defectivo, precário para a aquisição da língua dominante politicamente, a portuguesa”.

Lucchesi (2001; 2009) atribui essa aprendizagem imperfeita do português ao processo de transmissão linguística irregular, o qual é caracterizado como um processo de aquisição da língua em situação de contato entre falantes de línguas tipologicamente diferentes em decorrência da ação colonialista. Nessas situações, de acordo com a explicação do autor, a língua de superstrato impõe-se aos falantes, em geral adultos, que se veem forçados a adquiri-la, como segunda língua, sob condições adversas. Essa língua já alterada passa a ser o modelo para aquisição da língua materna pelas gerações seguintes.

O português, com as marcas da aprendizagem imperfeita, chegava aos filhos dos senhores, por influência das amas, da mesma forma que estas também o transmitiam aos seus descendentes. E, impulsionada também pela movimentação dos escravos no território, em decorrência dos ciclos econômicos e do tráfico interno, essa variante chegava a diversos espaços geográficos. Com base em informações

de Mattoso (1990 [1979]), Mattos e Silva (2004, p.129-130) traça a movimentação dos escravos no território brasileiro:

Nos séculos XVI e XVII, se concentravam nas lavouras da cana-de-açúcar nas capitanias litorâneas de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro. Nos séculos XVII e XVIII, transitou grande parte para as áreas de mineração de ouro e de diamantes, nos interiores paulistas, no centro e centro-oeste do Brasil. Do século XVIII para XIX, diminuindo a mineração referida, em boa parte voltam para o litoral do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde ocorre novo impulso açucareiro. No século XIX, concentram-se no Vale do rio Paraíba do Sul, em áreas paulistas, do Rio e de Minas Gerais, locais em que se explorou o novo ouro, o café. Acompanhando seus senhores, seguem para a Amazônia, para a exploração de especiarias. Desde o século XVI, se dispersam os escravos e também os indígenas pelas imensas regiões pastoris interioranas, deslocando-se, a partir do século XVII, aos interiores nordestinos. Já no século XIX, deslocam-se segmentos da população para as charqueadas do Sul do Brasil.

Essa mobilidade no espaço brasileiro fez com que o português avançasse pelo território tanto pela boca do colonizador, em sua variedade nativa, como através das variedades defectivas da língua adquiridas pelos escravos e transmitidas a seus descendentes (LUCCHESI, 2009). Ainda conforme opinião de Lucchesi, o retrocesso da língua geral no Brasil pode ser mais bem explicado por esses processos sociodemográficos do que pelo decreto do Marquês de Pombal, que expulsara os jesuítas do Brasil e tornara o português a língua oficial do país.

3.1.3 A industrialização, a urbanização e o papel dos imigrantes na formação