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Do “caos” linguístico emerge a regularidade: a heterogeneidade ordenada

Eu vi tu ontem na feira, mas tu não me viu/viste/visse.

4 O MODELO TEÓRICO: A TEORIA DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA

4.1 DE ONDE PARTE O OLHAR DO SOCIOLINGUISTA: O PRINCÍPIO DA HETEROGENEIDADE DA LÍNGUA E A ESTRUTURA SOCIAL

4.1.1 Do “caos” linguístico emerge a regularidade: a heterogeneidade ordenada

De acordo com os princípios da Teoria da Variação, para escapar às limitações impostas por uma análise estritamente formalista, o linguista deve partir para uma observação de dados concretos da fala dos indivíduos. É preciso analisar “a língua tal como usada na vida diária por membros da ordem social, este veículo de comunicação com que as pessoas discutem com seus cônjuges, brincam com seus amigos e ludibriam inimigos” (LABOV, 2008 [1972], p. 13). Assim, ao contrário dos estruturalistas que podiam estudar o aspecto social da língua – langue – a partir de dados intuitivos fornecidos por um falante ou mesmo pelo próprio pesquisador, os sociolinguistas precisam coletar seus dados no seio da comunidade de fala.

Labov direciona, dessa forma, seu olhar para o vernáculo, visto que é nele que se manifestam de maneira mais regular os dados que interessam ao estudo variacionista, as regras variáveis, que se evidenciam quando o falante pode escolher entre diferentes formas – variantes linguísticas – para se referir a uma realidade do mundo bio-social.

Os dados de língua falada, com suas frases “mal formadas” constituíam, para o estruturalismo, uma situação caótica, o que impossibilitava o estudo da fala. Como não dispunham de um aparato teórico-metodológico capaz de descrever essa heterogeneidade, não conseguiam explicar como a língua pode passar de um estágio a outro enquanto continua servindo eficientemente a seus usuários e, diante desse paradoxo, cultivaram a equivocada identificação entre estrutura e homogeneidade.

A sociolinguística, em contrapartida, rejeita a incompatibilidade entre estrutura e heterogeneidade e advoga que a ausência desta é que seria disfuncional numa comunidade. O pressuposto defendido é o de que a língua pode variar e ao mesmo tempo continuar a mesma, evidenciando sua coesão interna, porque, como assinalam Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968]), a variação linguística é inerente e motivada. Nega-se, dessa forma, a noção estruturalista de variação livre, em favor

do princípio de que a variação é sistemática e estruturada, sendo motivada por forças sociais que atuam continuamente sobre a língua. (LABOV, 2008 [1972]).

Os estudos labovianos demonstraram que a superação do paradoxo saussuriano, e a consequente compreensão da variação e da mudança linguísticas, estava na correlação entre os dados linguísticos e a estrutura social: “a chave para uma concepção racional da mudança lingüística – e mais, da própria língua – é a possibilidade de descrever a diferenciação ordenada numa língua que serve a uma comunidade” (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006 [1968], p. 36).

Da mesma forma que a competência linguística de um falante nativo o faz reconhecer como agramatical o “sintagma” casa a também o faz reconhecer, ainda que inconscientemente, as diferenças entre formas em variação, permitindo-lhe, por exemplo, escolher entre “Aonde você pensa que vai?” e “Aonde tu pensa que vai?” numa dada situação comunicativa. Essa escolha não é aleatória, antes acontece de forma sistemática e regulada.

Em resumo, pelo princípio laboviano, o falante é competente para operar com as regras variáveis de sua língua. Weinreich, Labov e Herzog, 2006 [1968], p. 36) seguem argumentando que “[...] o domínio de um falante nativo (nativelike command) de estruturas heterogêneas não tem a ver com multidialetalismo nem com o ‘mero’ desempenho, mas é parte da competência monolíngue”. Por esse entendimento, considera-se a competência do falante, igualmente, estruturada e ordenada, na medida em que ele sabe escolher, dentre formas que se alternam no sistema, aquela que melhor atende aos seus objetivos comunicativos

Por esse ponto de vista, quando o falante de Santo Antônio de Jesus, nossa comunidade estudada, escolhe dizer, dentre as possibilidades que o sistema pronominal da língua lhe oferece, “Posso te ajudar?”, “Posso lhe ajudar?” ou “Posso ajudar você?”, não o faz ao acaso. Em certa medida, suas escolhas são previsíveis e regulares, pois são definidas com base em parâmetros da estrutura linguística e social. O estudo cuidadoso desse fenômeno linguístico, através de métodos de investigação rigorosos, revelará os padrões que o regulam, os quais envolvem desde características do contexto linguístico, da situação comunicativa, do contexto sócio-cultural, até características dos indivíduos envolvidos na comunicação.

Para determinar os processos reguladores, teremos, então, de responder a algumas questões: a) em que contexto situacional o falante recorre a cada uma das formas de representação do objeto?; b) comparando-se grupos distintos quanto à faixa etária, ao sexo, à escolaridade e ao nível socioeconômico, é possível observar diferenças quanto à escolha das formas?; c) as formas gozam do mesmo prestígio dentro da comunidade analisada; d) que contextos linguísticos favorecem o fenômeno observado? e e) qual a tendência da variação observada – variação estável ou mudança em curso?

A recorrência da atuação dos fatores condicionantes revela a sistematicidade da variação. Isso quer dizer que é possível medir, matematicamente, a influência de cada fator para a realização de uma forma linguística. Em síntese, o aparato teórico- metodológico da sociolinguística variacionista é capaz de explicar que, em meio ao aparente “caos”, existe regularidade, o que caracteriza a variação como estruturada.

Como nesta tese investigamos uma regra variável morfossintática, julgamos necessário revisitar a clássica discussão entre Lavandera (1978) e Labov (1978) acerca da aplicabilidade da análise sociolinguística a fatos dessa natureza.

O princípio da regra variável passou a ser discutido após a publicação do trabalho de Weiner e Labov (1983), no qual consideraram como covariantes as formas de passiva sem agente (the closet was broken into) e de ativa com sujeito genérico (they broke into the closet). Os resultados obtidos apontaram para a exclusão dos fatores sociais, o que gerou, por parte de Lavandera, questionamentos acerca da atuação de variáveis sociais em fenômenos não-fonológicos. Além disso, a pesquisadora questionou a adequação do conceito de regras variáveis para unidades acima do nível fonológico, dada a ausência de identidade entre estas, em sua opinião. Assim, Lavandera propôs que a noção de identidade semântica fosse substituída pela de “comparabilidade funcional”, que prevê apenas a existência de mesma função comunicativa –não necessariamente do mesmo significado – ou que se renunciasse a estudos variacionistas além da fonologia.

A respeito da crítica ao alargamento dos estudos sociolinguísticos para além da fonologia, Labov (1978) argumenta que a ausência de motivação social para a mudança não compromete o estudo sociolinguístico, tendo em vista que a preocupação não deve ser apenas medir a atuação de fatores sociais mas também obter dados sobre as restrições da estrutura da língua. Em resposta ao segundo questionamento, Labov (1978) afirma que a manutenção do significado referencial é suficiente para garantir que as formas sejam variantes, independentemente de possuírem significação social ou estilística diversa. Nas palavras do autor, “dois enunciados que se referem ao mesmo estado de coisas têm o mesmo significado representacional ou o mesmo valor de verdade”. (LABOV, 1978, p. 02).

Tomando como exemplo as variantes te e lhe que constituem formas de realização do acusativo e do dativo em SAJ, constatamos que guardam o mesmo conteúdo informacional, embora seu emprego, de acordo com uma de nossas hipóteses, possa obedecer a uma diferenciação pragmática: a primeira, usariam os falantes em situações de intimidade com o interlocutor, como clítico de tu; a segunda, como clítico de você, reservada para relações de respeito/cortesia. A diferenciação social que se estabelece entre as variantes pode determinar que uma forma seja considerada mais ou menos prestigiada do que outra, o que, no caso de lhe e te, por exemplo, não é muito claro. Acreditamos, portanto, que a metodologia variacionista possa ser adequadamente aplicada a este estudo.