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CAPITULO III O PAPEL DA FILOSOFIA DE KANT NA CONSTRUÇÃO DO CAMPO

3.3. A Mulher, a Filosofia e o Direito – Um recorte de Gênero na Filosofia

Tornando ao ponto relativo à construção da cidadania, no qual o Direito representa muito bem as idéias iniciais de Kant para o seu plano de educação, cumpre fazer breves considerações, num recorte de gênero, a fim de demonstrar que para o filósofo alemão o “belo sexo” não tinha condições de alcançar a maioridade, a autonomia preconizada por ele, não lhe sendo possível, por conseguinte, gerir-se juridicamente.

Como já observado previamente, a ética de Kant se funda na idéia da autonomia e da liberdade, estas plenamente alcançáveis pelo uso da razão. A razão, por sua vez, segundo a percepção filosófica de Immanuel Kant não é atributo que seja inerente à parcela feminina da população. Aliás, estabelece Kant, na citação feita por Carvalho (2002, p. 53) que as mulheres até possuem entendimento, mas este entendimento deve se apoderar de questões de natureza simples, deixando-se as grandes reflexões e os conhecimentos complexos e abstratos a cargo dos homens, devido a sua constituição propícia a tais fins. Demonstra com isto a pesquisadora, ter Kant observado em seu projeto educacional uma importante diferença entre os sexos, que não poderia ser desprezada, alocando para as mulheres as preocupações referentes à esfera privada e reprodutiva, onde os atributos femininos pudessem ser preservados, deixando para os homens o exercício da razão inerente à própria condição e que a estes possibilita alcançar a maioridade. No sentido preconizado, Carvalho (2002, p. 57) cita Kant, indicando que para ele

A virtude da mulher é uma bela virtude. A virtude do sexo masculino deve ser uma virtude nobre. As mulheres evitam o mal, não porque o mal seja injusto, mas porque ele é feio [...] Nada há nas mulheres que diga respeito ao dever, à necessidade ou à responsabilidade. A mulher é refratária a qualquer tipo de comando e a todo tipo de coação [...] As mulheres só realizam uma ação se esta lhes parece agradável; toda a arte consiste em tornar-lhes agradável unicamente aquilo que é bom. Eu custo a acreditar que o belo sexo seja capaz de princípios [...] Mas no lugar de princípios, a Providência colocou nos corações femininos sentimentos de bondade e de benevolência, um sentido refinado de decência e uma alma agradável.

Ora, mas para que seja possível atingir a razão é preciso que esta virtude diga respeito às leis da liberdade (autonomia) e esta somente se atinge no ideal kantiano se o indivíduo consegue "ser mestre de si (animus sui compos) e ter autoridade sobre si próprio (imperium in semetipsum), quer dizer, domar seus afetos e dominar suas paixões" (CARVALHO, 2002, p. 58). Logo, a análise da referida autora indica ser incapaz, para Kant, pela sua própria constituição, de domar os seus afetos e paixões e, por conseguinte, impossível a ela o exercício pleno da razão que facultaria atingir a maioridade. Deste modo, o

ideal pedagógico proposto não contemplaria a autonomia feminina, restando à mulher sempre agir sobre a proteção (condução) masculina e sua menoridade é condição que não se esvai com o passar do tempo, concluindo a citada autora:

Em razão de seu permanente estado de minoria de idade, as mulheres não possuem independência civil e necessitam ser representadas por outros nos assuntos de direito. Escreve Kant: ‘As crianças são por natureza menores e seus pais são seus tutores naturais. A mulher, qualquer que seja a sua idade, é declarada civilmente menor; o marido é seu curador natural10’ (CARVALHO, 2002, p. 61)

Não possuindo condições de se auto-gerir ficariam as mulheres, no máximo, com possibilidade de exercer a cidadania passiva, fato que, segundo Bárbara Valle, Kant admite ser possível somente se adquirida através do casamento (VALLE, 2002, p. 82).

Diante deste quadro, percebe-se que o projeto educacional de Kant tem por objetivos a disciplina, a cultura, a prudência e a moralidade, no entanto, as concepções kantianas somente estavam voltadas para os homens. Isto se explica porque para o filósofo de Königsberg somente os homens seriam capazes da utilização da razão, faculdade essencial para que o ser humano atinja a maioridade, porque pressupõe a utilização plena de virtudes somente nele encontráveis. Ora, para Kant , apenas o espécime humano masculino pelas suas virtudes intrínsecas, contrárias às femininas, poderiam ser mestres de si mesmos, afastando as emoções que corromperiam o intelecto e a moralidade.

Ao Direito, o filósofo de Königsberg, atribui um papel importante na formação do homem, porque lhe permitiria reconhecer os limites da sua ação, disciplinando-o, o que é alcançável facilmente nas etapas relativas à educação física do corpo e da alma: é a educação negativa expressa pela disciplina que permite que seja alcançada uma fase inicial da construção da liberdade, formando o homem cidadão. Por outro lado, o papel atribuído ao direito é realçado quando Kant sugere a introdução de um catecismo a ser utilizado nas escolas. Este catecismo permitiria perceber ser o contato com as normas jurídicas a possibilidade inaugural de conceder ao educando o entrosamento com regras de condutas sociais estabelecidas pelo Estado, facultando o questionamento dos valores éticos de justiça, isto conduzindo, por sua vez, ao diálogo entre o homem e os valores morais.

Estes aspectos, co-relacionados sucessivamente pelas diversas etapas da formação do homem no caminho da liberdade e da autonomia, permitem, justamente pelo

condicionamento às regras, com a interiorização destas, possa o educando, pelo uso sistemático da razão e do seu livre arbítrio, construir máximas eivadas de valores morais, com as quais ele passará a conduzir o seu destino, demonstrando com isto ter atingido a maioridade, objetivo do projeto kantiano e que visa, através da educação, o desenvolvimento pleno e cada vez mais efetivo da humanidade.

Consoante os motivos alhures realçados, entretanto, esta maioridade não seria alcançada pelo “belo sexo” porque, segundo a visão kantiana, ele não deteria pleno domínio da razão, faculdade indispensável para a consecução (pelas mulheres) do projeto de modernidade idealizado por Kant. Esta visão, re-elaborada pela pós-modernidade permite compreender, ainda assim, a interferência de motivações desta ordem sobre a formação acadêmica no campo do direito, tanto quanto em outros, reclamando, pois, a averiguação desta hipótese no presente estudo.

Na prática, percebe-se de certo modo a influência da abordagem kantiana na construção da segregação das carreiras jurídicas pela variável gênero. Assim, ainda que as explicações não mais se sustentem no discurso exagerado do referido filósofo, não há dúvidas que outras justificativas forjam as supostas inabilidades femininas para construírem de forma plena suas carreiras no mundo do Direito, sendo necessário, conforme o discurso avistável em algumas das entrevistas retirar das mulheres no exercício profissional aspectos inerentes às suas condições femininas para que elas possam colocar-se no mercado em condições semelhantes as dos seus colegas.