• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO V A FORMAÇÃO JURÍDICA: UMA QUESTÃO DE GÊNERO? A

6.3. O Estado de Bem Estar Social

Consubstanciado nas alterações havidas no mundo do trabalho, surge a necessidade de observar as imbricações no Estado de Bem Estar Social, nominado Welfare State. Desde quando ocorreu a Primeira Revolução Industrial, ainda durante a Segunda Revolução Industrial, o modelo de gestão estatal priorizava a assistência e a previdência social, configurador do chamado Estado Paternalista. Giddens, repensando o Estado de Bem Estar Social, diz que aos olhos de muitos pensadores da esquerda, o Estado deve garantir condições mínimas de dignidade aos necessitados e doentes através das instituições previdenciárias (1996, p. 153), tornando-se este o conceito chave para verificar as amarras que unem o Estado de Direito ao Welfare State a partir da Terceira Revolução Industrial.

Partindo deste pressuposto, o Welfare State esteve desde a Primeira Revolução Industrial associado ao conceito de trabalho assalariado, utilizado como categoria-chave para a análise das estruturas sociais, o que implica na compreensão correlata que o Estado de Direito assumiu não somente atributos administrativos, mas também assistencialista e previdenciário, a fim de garantir àqueles que estivessem afastados do trabalho formal uma mínima condição de vida, administrando os riscos oriundos da própria vida, seja a doença, a pobreza, o desemprego, etc. Em outras palavras, admitir a viabilidade do Welfare State é perceber que ele co-existe com um sistema de produção tradicional, segundo uma concepção anterior ao mundo pós-moderno e globalização. Ou seja, o ideal securitário do Welfare State perpassa por uma sociedade na qual o trabalho assalariado é a tônica e, por conseguinte, o

modelo capitalista das fases da Primeira e Segunda Revolução Industrial sejam vigentes, permitindo que a massa de trabalhadores assalariado sustente a própria Previdência e Assistência Social, cabendo ao Estado a gerência dos direitos decorrentes.

A análise do Welfare State permite considerar a sua direta relação com a idéia ou com o ideal de Estado Nação, associado às diretrizes de ordem jurídica, porquanto representante do chamado Estado de Direito. Este chamado Estado de Direito é percebido por João Bernardo (2000) como um “Estado Restrito” no qual a clássica divisão de poderes restabelecida por Montesquieu prepondera. O Estado Restrito é, portanto, “formado pelo conjunto de instituições que compõem o governo, o parlamento e os tribunais, ou seja, os poderes executivo, legislativo e judiciário” (BERNARDO, 2000, p. 11). O chamado Estado Restrito é justamente o Estado-Nação que a maioria das pessoas conhece como sendo representante legítimo dos interesses de um dado país, responsável, portanto, pela gestão legislativa, administrativa e jurídica, consolidado pelo projeto da modernidade do Estado de Direito, cuja base fundamental é uma Constituição.

De outro lado, os mecanismos inerentes à globalização e a pós-modernidade fizeram nascer o Estado Amplo que ultrapassa as fronteiras do Estado Restrito, contrapondo- se a ele em alguns momentos, estando relacionado ao modelo econômico de administração e organização da força de trabalho. Segundo Bernardo (2000, p. 11), o exercício do poder pelo Estado Amplo está a cargo dos proprietários das empresas ou dos seus administradores que agem simultaneamente como órgão executivo (administradores), legislativo e judiciário, fazendo valer sua força em face daqueles que estão sob o seu “domínio”. Neste sentido, por exemplo, o poder legislativo é operacionalizado na medida em que são criadas formas não- estatais de organização e gestão da força de trabalho, enquanto o poder judiciário se exerce pela avaliação de desempenho dos trabalhadores, impondo os prêmios de produtividade ou as punições que vão desde simples multas ou descontos até a demissão previstas pelo aparato legislativo não-estatal criado pelo Estado Amplo.

Diante disto, percebe-se que o conceito de Estado Amplo forjado por João Bernardo constitui inequivocamente um poder político cujos efeitos são visíveis no mundo econômico da pós-modernidade e torna-se, por assim dizer, um “Estado paralelo” que convive ao lado do Estado Restrito. Como conseqüência da forma de condução dos negócios do Estado Amplo, expande-se o mercado informal de trabalho (economia informal) que passa, por outro lado, a receber a interferência do crime organizado... Isto a um só tempo enfraquece as possibilidades

do Welfare State, como também reduz a institucionalização do Estado de Direito a ele associado. Ora, a percepção de que existe um poder político atuando em paralelo ao Estado de Direito, aqui também chamado Estado Restrito, cujas ações não requerem a incidência das fórmulas jurídicas preconizadas pela instituição oficial, determina o enfraquecimento contínuo do Welfare State. Bernardo, tratando desta hipótese, afirma

...Na forma clássica do corporativismo era o Estado Restrito que exercia a hegemonia no triângulo governo + empresas + sindicatos. Na fase atual, porém, mesmo quando este triangulo se mantém, inverte-se a hierarquia e é o Estado Amplo que prevalece. Para a compreensão destes aspectos os formalismos jurídicos não são só inúteis mas contraproducentes. (BERNARDO, 2000, p. 18)

Deste modo, assegura o Bernardo que “o Estado Amplo adquiriu hoje a hegemonia sobre o Estado Restrito” (BERNARDO, 2000, 18), levado pela possibilidade inconteste de que “as grandes empresas podem já inter-relacionarem-se diretamente, sendo-lhes cada vez menos necessária a mediação do Estado Restrito” (2000, p. 18). Isto tudo gera a ruptura com o sistema jurídico tradicional e impõe a criação de alternativas viáveis, por isto, Dupas (2000, p. 102), citando Manuel Castells, afirma que “enquanto o capitalismo global prospera e as ideologias nacionalistas explodem em todo o mundo, o Estado-nação está perdendo seu poder.”. Nalini perpassando por estas questões, assegura, tomando como referência Eduardo Giannetti da Fonseca:

No cenário da globalização há três aspectos importantes: "a estabilidade e a previsibilidade macroeconômicas, a agilidade e a flexibilidade comportamentais e o capital humano, cujo principal componente é a informação". Enquanto isto, e sempre segundo a mesma fonte, perdem terreno na economia globalizada o Estado Nacional soberano, o ativismo macroeconômico de tipo keynesiano e a necessidade de mão de obra barata e de recursos naturais abundantes, tornados quase descartáveis pela terceira revolução tecnológica. (NALINI, 2000, p. 70)

Pelo mesmo argumento, torna-se possível perceber que o Welfare State, associado ao fenômeno jurídico, está ameaçado, encontrando limites para decidir suas ações relacionadas à política monetária e orçamentária, à organização do sistema produtivo, à cobrança de impostos, enquanto a globalização, na sua faceta mais negativa, consegue possibilitar a consolidação de alianças entre redes criminais, gerando a “globalização do crime organizado”, colocando “em xeque a capacidade do Estado na regulação da própria legislação nacional, já que estes negócios fogem de todo tipo de regulação governamental” (DUPAS, 2000, p. 102). Este aspecto permite compreender bem a perplexidade incutida na voz do docente que disse que “só se globaliza miséria”. Giddens já houvera preconizado que a problemática é decorrente não somente pela elevação dos custos trazidos pela globalização e pós-modernidade, mas, sobretudo pela forma de reorganizar tanto os custos quanto o mundo

do trabalho (apud DUPAS, 2000, p. 105). Este modelo de argumentação também é encampado por Mattoso (1995, p. 151) quando observa que a desordem do mundo do trabalho, resultante das mudanças paradigmáticas não podem continuar no Brasil, sob pena de gerar maior fragmentação, anomia e ruptura da institucionalização democrática. Estes aspectos enfraquecem o Estado de Bem Estar Social e determinam mudanças significativas do modo de pensar o direito e a construção da formação jurídica.

Conclusivamente, verificado que a crise do Welfare State tem raízes nas profundas mudanças sociais, também relacionadas ao mundo do trabalho, torna-se premente a necessidade de compatibilizar a intervenção estatal através das medidas de bem estar social, com a intervenção deste no mercado, determinando o papel e efetividade do Estado, garantindo-se os direitos fundamentais à população, definindo uma base legal que mantenha: a estabilidade econômica, o investimento em serviços sociais básicos e em infra-estrutura, o amparo aos vulneráveis e uma proteção ao meio ambiente (DUPAS, 2000, p.115). Com isto, possibilita-se a manutenção do Estado de Direito.

A análise do magistrado Nalini sobre esta perspectiva atinge o cerne da questão pela compreensão de estar o capitalismo atual desorganizando as conquistas do Estado de Bem Estar Social, sendo somente a renovação do ensino jurídico capaz de reverter esta queda, pois para ele, "o Direito continua sendo a alternativa para os conflitos humanos e está cada vez mais presente quando eles se intensificam... O homem do direito é predestinado a ser o artífice da paz no terceiro milênio" (NALINI, 2000, p. 70) Contudo, manter-se esta perspectiva, fazendo atuar o disposto no art. 193, da Constituição Federal, ‘promovendo uma ordem social que tenha como base o primado do trabalho e como objetivo o bem estar e a justiça sociais’ implica em intervenção social e econômica, compreendendo ainda providências de ordem jurídica vocacionadas “para disciplinar a cooperação entre os indivíduos e a dirimir os conflitos entre as pessoas em geral”, sendo esta a função jurídica do Estado (CINTRA, GRINOVER e DINAMARCO, 2006, p. 41-42).