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CAPITULO III O PAPEL DA FILOSOFIA DE KANT NA CONSTRUÇÃO DO CAMPO

3.1. O Projeto Kantiano de Autonomia e sua Relação com a Educação Jurídica

3.1.2. A Educação Moral e o Direito

No momento inicial do projeto educacional da modernidade antevisto por Kant, a formação repousa na disciplina, que nada mais é do que a educação negativa. Com a disciplina, o infante passa a se habituar a determinados contornos, devendo, portanto, respeitar limites. O respeito aos limites, a partir da educação física, passando pela educação intelectual, será gradativamente interiorizado, conduzindo o homem à atuação dentro de determinados padrões que, se inicialmente são exógenos, a partir de certo momento começam a ser impostos pelo próprio educando. Neste exato ponto, o homem inicia o processo de liberdade, porque, interiorizados os limites, ele mesmo, sem o auxílio de elementos externos, passa a respeitá-los e a espontaneamente guiar-se por eles.

A educação moral, como etapa subseqüente à educação física e intelectual, afasta-se agora da disciplina, presumindo-se que esta já se interiorizou no aluno, e caminha rumo ao desenvolvimento e aperfeiçoamento das noções de liberdade, estimulando o educando a agir, não conforme máximas externas, mas criando e seguindo suas próprias regras de conduta, focado sempre no ideal moral, instigadas nos propósitos de que as condutas devem ser praticadas dentro de certa ótica porque comungam com o ideal de bem comum (universal)9.

A cultura moral se desdobra dentro da elaboração das máximas que levam à autonomia, se repartindo na cultura moral geral e específica. A primeira relaciona-se à

formação do caráter e a outra está inserida na formação de valores morais propriamente ditos, aqui abrangidos à religiosidade e a sexualidade, por exemplo. É justamente no seio da educação moral que irão emergir as considerações de Kant sobre o direito, ponto importante desta exposição.

A formação moral do homem, especialmente a concernente à construção do caráter tem como bases a obediência, a verdade e a sociabilidade. Estes três pilares têm intensa relação com as questões relativas ao mundo jurídico. A obediência, como elemento sobre o qual se constrói o caráter, tem o condão de “preparar a criança para o respeito às leis que deverá seguir corretamente como cidadão, ainda que não lhe agradem” (KANT, 1996, p. 83). Aqui, mais uma vez, aparece dentro da construção pedagógica do filósofo de Königsberg, a preocupação com o bem estar da coletividade, com a educação voltada para o conjunto dos homens, espelhada na assertiva de que as normas devem ser cumpridas, mesmo que desagradem àqueles que devem se submeter a elas. Desta fala kantiana permite-se também verificar o grau do positivismo jurídico inerente às práticas jurídicas e a forma como ele resta impregnado na sociedade através das reafirmações doutrinárias / dogmáticas constantes, repetidas incansavelmente nas metodologias pedagógicas utilizadas nas teorias e nas práticas dos cursos jurídicos. Realidade, aliás, avistável nos discursos dos docentes entrevistados.

A análise de Kant partilhada por Habermas, construtor da teoria do agir comunicativo, remete à importância de Kant ainda nos dias atuais. Com efeito, conforme preleciona Roani (2006), tratando das idéias habermasianas acerca do tema, resta claro que o direito não é sinônimo de moralidade, entretanto, não é possível afastar o tema moral do conteúdo do direito, sobretudo dos direitos humanos. Citando Habermas, observa Roani:

Para Habermas, o conceito de direitos humanos não se origina na moralidade, mas antes carrega a marca do direito subjetivo, de um conceito jurídico específico, portanto. Os direitos humanos são jurídicos por sua própria natureza. (ROANI, 2006, p. 133).

À despeito disto, apesar do conceito de moralidade não se confundir com o conceito de direito, nem mesmo de direitos humanos, já que a fala habermasiana se preocupa com eles, não há, em contrapartida, como retirar daqueles direitos, subjetivos pela própria natureza, o ideal de moralidade como precursor do ideal jurídico, conforme sustentado por Kant. Na realidade, a teoria habermasiana quer estabelecer a relação entre a construção do Direito com a teoria do agir comunicativo e, para isto, busca responder às questões da legalidade e da legitimidade dos direitos humanos, afastando-se da explicação trazida por Norberto Bobbio que assegura terem os direitos humanos uma origem histórica e jurídica simultaneamente.

Habermas, assimilando parcialmente esta idéia, quer encontrar um contraponto para observar que os direitos humanos partem também de uma premissa moral. Esta premissa moral na realidade vem realçar o entendimento de Kant de que os direitos humanos, que tratando-se de direitos básicos do homem, tem por característica principal a inalienabilidade.

De outro lado, Habermas anuncia, conforme Roani (2006) ser possível fundamentar os direitos humanos partindo do pressuposto da liberdade de escolha estabelecida a partir da distinção de moral e direito, sustentada na coerção interna e externa, respectivamente. Este pressuposto de liberdade de escolha é fundamentado na participação do cidadão (legitimidade) através dos discursos racionais, questionando as asserções relativas aos direitos fundamentais, introduzindo novas propostas, manifestando seus desejos, necessidades, etc. e, principalmente, exercendo os direitos de participar do discurso e da normatização produzida a partir deles. A partir da interação comunicativa, surgem cinco categorias de direitos, tendo as três primeiras o conteúdo moral idealizado por Kant, conforme afirma Roani:

É da relação entre o princípio do discurso e a forma jurídica que tem origem um sistema de direitos considerando as cinco gerações dos direitos fundamentais. Os primeiros têm a origem ligada à ampliação do princípio do discurso, a um aspecto da forma jurídica, a saber a moral e o direito – respeitando a liberdade de ação. Neste caso, os direitos que emergem são os seguintes:

1º) Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação; (2º) direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro da associação de parceiros do direito; (3) direitos fundamentais que resultam imediatamente da postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual; (4) direitos fundamentais à participação, em igualdade de condições, em processos de formação de opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam direito legítimo; (5) direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos elencados de (1) a (4). (ROANI, 2006, 138)

Na realidade, a moral, manifestada através das máximas de condutas tratadas por Kant, é um dos elementos justificadores dos direitos fundamentais tratados por Habermas, porque possibilita manifestar a própria liberdade de ação, inerente ao princípio do discurso habermasiano. Aliás, para Habermas os direitos subjetivos, entre eles os direitos humanos estabelecem “limites no interior dos quais um sujeito está justificado a empregar livremente a sua vontade, definindo liberdades de ação iguais para todos os indivíduos ou pessoas jurídicas, tidas como portadoras de direitos” (apud ROANI, 1996, p. 141). Ora, a partir da configuração jurídica destas liberdades de ação, desde que legitimada a ordem jurídica pela participação dos cidadãos através do princípio do discurso, há compatibilidade entre a

liberdade de arbítrio individual e a liberdade de todos segundo a lei. A lei, então, surgiria, concluindo o modo de pensar este entrelaçamento entre direito e moral proposto por Habermas, como uma forma de retirar do indivíduo o fardo das normas morais.

Em síntese, Roani (2006) assegura que a aplicação do princípio habermasiano do discurso à moral e ao direito ocorreria de duas formas: “pelo princípio da universalização,... e pelo princípio da democracia” (ROANI, 2006, p. 142), sendo, portanto, o princípio da democracia o justificador do sistema de direitos ou da própria legalidade deste direitos, ambos justificados pela idéia de liberdade de ação, pensada por Kant no seu projeto pedagógico como capaz de sustentar a formação moral do homem, não voltada unicamente para si mas para toda a humanidade. Na realidade, Kant e de Habermas, respectivamente referindo-se à educação moral e aos direitos humanos, têm por alvo globalizar estes conceitos in concreto, num molde de um Estado cosmopolita, garantindo ambos a todos permanentemente.

3.2. Os Padrões Éticos Pensados por Kant Atualizados nos Valores Preconizados pelas