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A multiplicidade e a solução da governamentalidade

1. SOBRE A POLÍTICA E O POLÍTICO

1.3. SABER DO CORPO, MULTIDÃO E MULTIPLICIDADE COMO PROBLEMA POLÍTICO

1.3.4. A multiplicidade e a solução da governamentalidade

Nas páginas que seguem procurarei mostrar que ao múltiplo e à multiplicidade como problema, se responde com a governamentalidade. Este elemento é relevante para a compreensão do pensamento político na modernidade, para a articulação do saber do corpo entre a política e o político, como propus, mas também para uma crítica dirigida ao contemporâneo, já que, de acordo com Foucault (2009, p. 137), ainda vivemos na era da governamentalidade descoberta no século XVIII.

Sabemos que frente à política moderna, entre a leitura de Foucault e a de Arendt há pelo menos uma diferença. Enquanto para o primeiro a questão decisiva é que a família deixa de ser modo de bom governo e se converte no instrumento de intervenção governamental, para a segunda, a família, de sua origem na vida privada, passa a

                                                                                                               

72 Tratado político, cap. V, § 5. 73

É importante destacar que, segundo se lê no estudo de Étienne Balibar, Spinoza y la política, em relação com a linguagem há toda uma discussão teológica que distingue os profetas dos apóstolos. Enquanto os primeiros, na tradição judaica, são mediadores de uma lei exterior, os apóstolos, na tradição cristã, levam a pregação de Cristo a fim de que seja internalizado seu ensino (Cf. BALIBAR, 2011, p. 57-59). Trata-se da diferença entre a Lei e a fé, como se pode constatar na carta de Paulo aos Gálatas (3.21). Esta diferença teria sido constituída com Paulo de Tarso ao instituir uma religião do Filho, à diferença da religião do Pai, própria da tradição judaica (Cf. FREUD, 1984). Com Badiou (2009c), podemos dizer que também se trata do contraste entre a Lei e a graça. De qualquer forma, importa destacar que Paulo de Tarso pode ser considerado fundador do universalismo: com ele, se coloca um problema que é político, ou teológico-político, um problema que diz respeito a “todos” e à “multidão”.

 

dominar a vida pública, produzindo deste modo uma indistinção entre vida doméstica e política.74 Em qualquer caso, não parece contraditório afirmar que a governamentalidade é uma forma de generalização pública da vida pré-política. Isso, levando em conta que o que se generaliza é a economia política, isto é, a elevação da economia como parâmetro fundamental de regulação da vida pública. Desse modo, a economia, que se distinguiu da política por seu caráter doméstico, embora se falasse da economia de uma cidade, converte-se em parâmetro quase exclusivo na hora de valorar o conjunto de atividades simbólicas e materiais de um povo. É o germe do governo como administração da vida e o declínio do governo como instrumento da política.

O certo é que a arte de governar, surgida no mesmo cenário no qual se propõe o problema da multiplicidade, pode expressar-se na seguinte pergunta: como introduzir a economia na política? (FOUCAULT, 2009, p. 119). Pergunta que prefigura, como se vê, o que se pode qualificar como oximoro, quer dizer, a economia política. Trata- se de levar o que antigamente pertencia ao domínio da vida privada à vida pública, como indicou Hannah Arendt. “La introducción de la economía dentro del ejercicio político (…) es la apuesta esencial del gobierno”, diz Foucault (2009, p. 120), o é no século XVI e o seguirá sendo no século XVIII, com Rousseau, como se pode ver no seu Discurso sobre a economia política. Para distinguir entre “el sabio y legítimo gobierno de la casa, en pro del bien común de toda la familia” e o “gobierno de la gran familia que es el estado”, Rousseau (2001, p. 3) remete à economia doméstica ou particular por um lado, e à economia geral ou política por outro. Apesar da analogia, Rousseau (2001, p. 7) afirmará que “el estado no tiene nada en común con la familia, a no ser la obligación común para sus jefes de procurar la felicidad”. A economia pública, segundo Rousseau, é o governo.

Tratando-se do problema da multidão e da multiplicidade, é importante destacar, com Foucault (2009), que para que se constituísse a economia política do século XVIII, foi necessária a população. Estes processos têm como marco geral a passagem do regime dominado pela soberania a outro dominado pelas técnicas de governo. Quando o que se generaliza é a economia política, o soberano é o organismo; é ele quem decide o destino político, ou talvez seja ele, finalmente, em última instância, o paradigma da decisão. Talvez Napoleão tenha sido, em princípios do século XIX, o que se opôs mais claramente a estas

                                                                                                               

formulações, quando diz “o destino, é a política”, em lugar do que parecia afirmar-se, “a anatomia, é o destino”.75

Na arte de governar, quando a economia se superpõe à política, o corpo tem que ser tratado como coisa, porque governar é governar sobre as coisas, diz Foucault (2009), é dar uma ordem às coisas, e o corpo, elemento individual dentro de um conjunto chamado população, não pode estar alheio a este tratamento. Tratar o corpo como coisa, é onde se joga grande parte da astúcia da economia política. Para tal, o destino não pode ser a política, mas anatomia. Nas disciplinas o saber do corpo é o da anátomo-fisiologia, quer dizer, disciplina do indivíduo a partir do controle do organismo, dissociação radical mente-organismo, primeiro controle mental, logo automatismo do organismo. Em meados do século XIX, a influente psicofísica de Gustav Fechner esteve nesta linha.76

Já ao fim do século XX, Foucault (2009, p. 135) afirmava que “gobierno, población, economía política, constituyen a partir del siglo XVIII una serie sólida que, sin duda, ni siquiera hoy está disociada”. Como diz Gilles Moutot (2005, p. 43),

en el busto de mármol del Estado ‘liberal’, que descubre el ‘nuevo mundo’, también se elaboran temibles rechazos de esta inédita fusión de lo económico y lo político, que restringe la misión de este último a la gestión de las masas.

É curioso que nesta sociedade, a do Estado governamentalizado, a que viu cristalizar a população, há um traço do que propunha Spinoza no Tratado Político: a virtude do Estado é a segurança.

                                                                                                               

75 Introduzo esta ideia, bastante livremente, por certo, a partir do debate proposto por Milner (2013) a propósito da relação entre as afirmações de Napoleão e Freud. A respeito da educação do corpo, desenvolvemos algo sobre o tema em Rodríguez Giménez e Seré Quintero (2013).

76

Fechner buscava, em contexto metafísico, “la ley que expresa la verdadera relación de dependencia entre el espíritu y el cuerpo” (apud ASSOUN, 1981, p. 155, n. 33).