• Nenhum resultado encontrado

Economia, política, religião: primeiro rodeio

85 Tomo conceitos de Milner (1999; 2012b).

4. UMA LEITURA POLÍTICA DO CORPO

4.1. A QUESTÃO DO CORPO ARTICULADA NA RELAÇÃO ECONOMIA, POLÍTICA E RELIGIÃO

4.1.1. Economia, política, religião: primeiro rodeio

Nesta seção tomam-se em consideração fundamentalmente três coisas. Em primeiro lugar, a ideia que vincula economia e teologia no longo e denso percurso da investigação de Agamben (2008, p. 196): “(…) a genealogia foucaultiana da governamentalidade [pode] continuar-se e remontar-se até identificar no próprio Deus a origem da noção de um governo econômico dos homens e do mundo – através da elaboração do paradigma trinitário (…)”. Em segundo lugar, na sequência, novamente Agamben (2008, p. 497): “A modernidade, excluindo Deus do mundo, não apenas não só saiu da teologia, mas ainda, de certa forma, não tem feito outra coisa que realizar o projeto da oikonomía providencial”. Em terceiro lugar, o declínio da política, que tem sido sublinhado por diversos pensadores contemporâneos, embora com ênfase em aspectos distintos. 100 Esse declínio pode ser caracterizado por várias vias, mas certo consenso indicaria a subordinação da política perante a economia, direito ou religião, como indica, novamente, Agamben (2001).

Depois de explicitadas essas referências, ainda que não seja o tema central desta seção, não é possível deixar inadvertido o nome de Carl Schmitt, já que vários dos principais pensadores contemporâneos da política encontram nele um ponto de inflexão. Schmitt é invocado em inúmeras ocasiões, tanto para iniciar uma crítica ao paradigma contemporâneo da política (AGAMBEN, 2008, 2013), quanto para indicar que com ele se estabelece uma doutrina sobre o matar (MILNER, 2013), ou inclusive uma recuperação da política com fins “execráveis” (MILNER, apud BADIOU; MILNER, 2014, p. 176). Foi Schmitt quem primeiro constatou uma aliança entre teologia e política. Mas, também se pode dizer que o que Schmitt procurou foi recuperar o mito político e emprega-lo contra o racionalismo político (ZARKA, 2009). Seja como for, do ponto de vista da teoria política, é mais do que instigante a “hipótese Schmitt”, segundo a qual “todos os conceitos

                                                                                                               

100 Entre outros, cf. Agamben (2008); Arendt (2010); Badiou (2007); Freud (2012); Milner (2007, 2013); Polanyi (2012).

concisos da teoria do Estado moderna são conceitos teológicos secularizados” (SCHMITT, 2006, p. 35).

Pela via de Schmitt, Agamben (2005) reconhece no triunfo da economia a despolitização do mundo, sem que isso esteja vinculado ao paradigma teológico. O termo oikonomía procede de Aristóteles; oposto a polis, designa a “administração da casa”, um tipo de paradigma “gerencial”. Não implica normas nem episteme, mas “decisões e disposições”, podendo ser traduzido como “management”. O conceito oikonomía foi chave da fundamentação cristã do dogma trinitário, e serviu para conciliar a trindade com o monoteísmo. Agamben (2005, 2008) vai afirmar que a teologia cristã deriva de uma teologia econômica e não política, assim como a economia teológica está do lado do “estado de exceção”. O autor vai dizer que a história da política ocidental é a história das oposições e cruzamentos entre os paradigmas econômico e político, trata-se do reino e do governo, respectivamente.101

Se a “hipótese Schmitt” é verdadeira, ao problema da representação, problema por excelência da modernidade (FOUCAULT, 2003),102 agrega-se agora que na minúcia dessa representação estão os conceitos teológicos secularizados, ou, arriscando um pouco mais, poderíamos dizer que esses conceitos teológicos são a condição de possibilidade da representação secular. O objeto das ciências humanas, diz Foucault (2003, p. 342),

no es este hombre que, desde la aurora del mundo o el primer grito de su edad de oro, estaba consagrado al trabajo; es ese ser que, desde el interior de las formas de producción que dirigen toda su existencia, forma la representación de esas necesidades, de la sociedad por la cual, con la cual o contra la cual las satisface en tal medida que, a partir de allí, puede finalmente darse la representación de la economía misma.

Na economia moderna é possível identificar o problema da representação na distinção entre valor de uso e valor de troca (MARX, 1983). O que é o valor de troca senão o que um valor representa para

                                                                                                               

101

Esse argumento é amplamente desenvolvido em O Reino e a Glória, Agamben (2008).

102

Em política, o problema da representação é chave, mas sobretudo se é pensado na articulação com a sua contrapartida: o problema das multidões, que já foi apresentado nos capítulos 1 e 2.

 

outro valor? O valor de troca de A não representa nada senão em relação ao valor de B. Assim, podemos dizer que A não representa nada para ninguém, até que represente alguma coisa para alguém. E esse valor, na modernidade, é representado em dinheiro, que é a forma mercadoria par excellence. Desse modo, o que importa para a representação é a forma, e não o conteúdo, ao contrário das análises dos economistas burgueses, dirá Marx. Se é importante lembrar esse processo, é porque Marx vai destacar a persistência de elementos metafísicos e teológicos na forma mercadoria, como veremos na sequência, portanto, na representação do valor.

É conhecida a tese de Marx (2008) que afirma que o desenvolvimento das forças produtivas é que faz com que detonem as formas sociais, culturais e políticas de uma formação social. Tratando-se do capitalismo, poder-se-ia acrescentar que o fator ideológico é fundamental. Esse fator ideológico, na medida em que articula o visível e o invisível (ŽIŽEK, 2003), implica a dialética da forma mercadoria; sendo assim, nessa dialética está presente um viés metafísico-teológico. A partir desse enunciado geral, poderíamos pensar que os conceitos teológicos secularizados são a base do Estado moderno, mas também articulam o discurso da economia política. Não é a consciência dos homens que determina o ser social, mas o ser social que determina a consciência, diz Marx (2008), e se é permitido fazer uma analogia entre a estrutura ser social-consciência e o Ser-práxis, poderíamos dizer que, sob este ângulo, o problema político da modernidade não é a consciência da luta de classes, mas como ela é articulada por meio das “sutilezas metafísicas” e “manhas teológicas” (cf. MARX, 1983). Isto é, o sujeito engajado no discurso capitalista não pode prescindir da intrincada relação entre economia, política e religião, na medida em que a economia moderna deriva de um paradigma teológico. O ser social da modernidade (aliás, o único “ser” com direito a esse nome) é sempre-já uma posição de sujeito que atualiza o paradigma (político) da economia como razão de ser da vida em comum. Não mais a polis, mas a oikos, será a matriz do sujeito moderno (cidadão).