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FALAR DE POLÍTICA, O QUE NÃO TEM SENTIDO

mismo hábitat” (LACAN, apud LE GAUFEY, 2007, p 52, n 40) Se não há

6.7. FALAR DE POLÍTICA, O QUE NÃO TEM SENTIDO

O fantasma político tem seu êxito porque o sujeito supõe que o saber se inscreve no verdadeiro, que o que reconhece como saber pode ser posto, sem mais, nesse campo. Logo, a ficção que os dispositivos culturais ajudam a sustentar, faz o seu. A desabilitação do conceito de ideologia, inclusive sua queda em desgraça, faz diluir a crítica a ficção que estabelece o político. Aí somam-se, sem que seja anunciado claramente, epistemologia e política, é onde o sujeito cede ao desejo de sentido. Se há um dispositivo cultural fundamental para o moderno, esse dispositivo é o sistema educativo nacional. Neste ponto, é Hobbes quem situa claramente as coisas, ao falar de duas instituições da verdade: uma tem a ver com a “atualidade” de uma verdade, com sua divulgação e manutenção discursiva, outra que se pode chamar “regulação semântica” (BALIBAR, 1995, p. 24). Uma vez mais se coloca de maneira marcante a questão da linguagem: a solidariedade entre o político e um sistema nacional de educação está na estabilidade do sentido atribuído a uma verdade.215 Função epistemológica da política, função política da epistemologia. Funções ligadas à linguagem, ante a qual não se pode prescindir nem da vigilância teórica, nem da crítica ideológica. Conviver no espaço da política, o espaço por excelência dos seres falantes, supõe

                                                                                                               

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Sobre a relação entre o falar e o ensinar na tradição agostinha, cf. Behares (2008).

 

ao menos duas coisas: por um lado, demanda certa univocidade e estabilidade do sentido, o que torna possível a comunicação, por outro, a possibilidade sempre ameaçadora do equívoco, que diminui tal univocidade e estabilidade, quer dizer, a impossibilidade da comunicação.216 Este é um dos paradoxos da política, quiçá o mais importante, ao menos o que mais bem a caracteriza e a distingue.

Pode haver o que se chama Palavra-Senhor.217 Pode haver inclusive projetos políticos articulados em uma Palavra-Senhor: revoluções, projetos totalitários, diversas variantes do que se chama democracia etc., mas nenhuma Palavra-Senhor pode, finalmente, pôr fim à história. A consistência de uma cultura procede, em parte, de que os sujeitos se suportem agrupados, quer dizer, que se deixam afetar por um laço. Mas não há conhecimento de agrupamento humano em que os sujeitos cedam seu desejo, quer dizer, não se tem conhecimento de agrupamento em que se tenha podido prescindir de um real. A língua não está na infraestrutura, tampouco na superestrutura, diz-se, e ainda se poderia dizer: o único real é a língua. Mas se nesse real entra algo que pode se chamar Liberdade, os sujeitos agrupados por um pedaço de língua não podem mais que imaginar, e apenas isso. Consentirão, se tiverem paciência, em que finalmente a Liberdade não pode escrever-se, não pode dizer-se, porque ela é justamente o nome que indica que não há todo, que não há relações, semelhantes, identidades, propriedades, classes. Uma vez mais: todo o sólido se desvanece no ar. Logo, os seres falantes não têm outro destino que falar. Falar, falar, falar. Words, words, words, disse Hamlet… A política, é o destino.

Que estranhos prisioneiros, e, no entanto, que parecidos conosco. Em ocasiões, a aceitação de uma Palavra-Senhor procede de alguma promessa redentora. Por isso não falta o sujeito que, como

                                                                                                               

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A famosa elocução “On a gagne” (Ganhamos), realizada por François Mitterand em 10 maio de 1981 em ocasião de alcançar a presidência da França, é um bom exemplo deste paradoxo da comunicação. Cf. Pêcheux (2006). 217 Uma “Palabra-Amo funda, sea cual fuere su particularidad, la subsistencia y representación de todo lo que subsiste y se representa. A partir de ella, pues, todo se ordena, pero lo cierto es también que sólo ella permite plantear los todos” (MILNER, 1999, p. 70). A Palavra-Senhor é a primeira e a última palavra, ela origina a cadeia de enunciados e estabelece seu privilégio: nada distinto ao que ela funda pode-se proferir. Contudo, também há que dizer que “Todo enunciado que se profiere se autoriza en una Palabra-Amo, y si toda Palabra-Amo es devaluada, ningún enunciado será válido” (MILNER, 1999, p. 76).

Fausto, vende sua alma ao diabo. Vender a alma ao diabo não é outra coisa que ceder à homonímia, e traduzi-la por sinonímia. Por exemplo: supor que Liberdade seja igual à liberdade. Supor que o significante que dispersa todo laço seja igual à somatória indefinida e indefinível de liberdades empíricas; é, finalmente, ceder à multiplicidade falante dos seres falantes e sua demanda. Seja como for, não sabemos qual é o meio justo, e se existe tal coisa, entre o matar em nome de um significante- amo e o matar em nome das liberdades formais, em nome das liberdades da multiplicidade de corpos falantes. O que sabemos é que, em qualquer caso, se está fora da política. Os nomes têm efeito de verdade, mas não são a verdade, porque não servem para eliminar o hiato entre uma coisa e uma palavra, entre um objeto e o conhecimento deste objeto. E se não servem para isso, é porque estão atados ao imaginário, mas também ao simbólico e ao real. Nomeiam, têm efeito de verdade, mas enquanto nomeiam, submetem-se ao equívoco e ao declínio. No entanto, isso não leva a política à indiferença, justamente porque nessa junção está a condição de possibilidade de que tal registro tem lugar. O que se conhece como slogan político é necessário, inclusive imprescindível, mas tão imprescindível como reconhecer que nenhuma disposição imaginária pode dar molde definitivo à contingência infinita dos corpos, nenhum discurso pode prescindir do encontro com a verdade como testemunha do “instante de um efeito” (MILNER, 1999, p. 54).

Se os seres falantes se agrupam por um pedaço de língua, se um sujeito se agrupa onde há a língua, entrarão eles na dinâmica da representação. Uma vez nesse campo, os sujeitos se agruparão, querendo ou não, em classes representativas, nelas inscrever-se-ão, e essa inscrição é efeito da qualidade política dos seres falantes. Mas essas classes que fazem conjunto de unidades representáveis não são senão semblante, uma forma de nomear o real, sem que possam nomeá-lo completamente, trata-se de uma espécie de meio-nomear, porque, finalmente, pertencer a uma classe representável não é mais que uma qualidade sociologicamente detectável e nenhuma outra coisa. Como se trata de semblante, pode ser que o sujeito se inscreva nas “classes paradoxos” (MILNER, 1999, p. 112 e sig.). Ao ser falante pede-se coerência, é uma das demandas do laço político, moeda corrente na economia do laço. O ser falante, se cede à demanda, tenta ser coerente. Em sua coerência, elide o paradoxo de pertencer a várias classes ou, stricto sensu, de não pertencer a nenhuma. Mas isso não pode durar muito tempo, ou não pode ser sem consequências, porque a barra do sentido pesa demasiadamente para que um sujeito a suporte sem mais, por tempo indeterminado.

 

A democracia, finalmente, não é o regime que contempla as opiniões de todos, a doxa do povo. A democracia é o regime que dá abrigo a uma verdade, à verdade do sujeito, e, portanto, não se preocupa tanto com as liberdades formais associadas ao particular, mas com a Liberdade que se associa ao singular.218