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ideia de totalidade, síntese, autonomia e, sobretudo, semelhança (cf.

5.2.3. Técnica e o homem

Vamos assumir a posição de Ortega e Gasset (1977) no seguinte ponto: não há homem sem técnica, eles se co-pertencem. Desse modo, a técnica é o ponto estrutural da constituição do homem, assim como a língua pertence ao ser do homem, para dizê-lo de um modo hegeliano, pois não se trata só de uma questão de antiguidade da relação homem- técnica, mas de uma necessidade lógica. Porém o foco destas considerações tem a ver com a modernidade: não é o mesmo afirmar que homem e técnica se co-pertencem que afirmar, pela via dos fatos, a hipóstase técnica e homem. A cultura moderna contribui para esta hipóstase, nela, sendo o homem separado da natureza, o que se apresenta como problemático é retomando a questão heideggeriana, o desabrigar que exige à natureza fornecer energia para ser armazenada. A técnica é, para os modernos, dominação da Natureza, há um sentido imperialista nesse modo de compreender a mediação técnica (BENJAMIN, 2012).

A civilização moderna apoia-se num continuum:

Ciencia, técnica, progreso, historia: toda una civilización se vuelve a captar entonces como productora de su propio desarrollo, y toma su impulso dialéctico hacia una realización de la humanidad trazada en términos de totalidad y felicidad (BAUDRILLARD, 2000, p. 30). A separação instrumental entre cultura e natureza, afirmada pela técnica como mediação e dominação, se expressa logo na política, ou mais precisamente, na suspensão dela, quer dizer, na guerra. Embora com fissuras, essa disjunção funciona no pensamento da modernidade no seu conjunto. Funciona em Freud, por exemplo, que pode ser considerado um pensador disruptivo entre os modernos, que assistiu a Primeira Guerra Mundial e foi perseguido pelo regime nazista, o regime que levou aos extremos a utilização instrumental da técnica. Freud diz num texto publicado em 1927 que a cultura humana abrange

por um lado, todo o saber e toda a capacidade adquiridos pelo homem com o fim de dominar as forças da natureza e obter seus bens para a satisfação das necessidades humanas e, por outro, todas as instituições necessárias para regular as relações dos homens entre si, em especial, a

 

divisão dos bens acessíveis (FREUD, 2012, p. 37).

Contudo, deve-se sublinhar a dimensão política implícita na definição freudiana de cultura161: na identificação civilização e cultura apoia-se a ideia que a dominação da natureza precisa da “regulação dos assuntos humanos” (2012, p. 38). Freud considerava míope “aspirar a uma abolição da cultura”, porque desse modo só restaria “o estado de natureza” (p. 54). Embora Freud, do ponto de vista epistemológico ainda bebesse nas fontes da física, da biologia e da economia política de sua época (ALTHUSSER, 1970), é claro que no seu pensamento preserva-se a dimensão política para os “assuntos humanos”, dimensão que, com Aristóteles e Lacan, pode se reconhecer como pertencente à língua. Não ceder ao desejo, disso se trata. Se o homem comporta também uma dimensão técnica, essa articulação ou essa identidade, é necessariamente política. O convívio dos homens em tempo e espaço precisa da palavra, ainda que o equívoco seja a única constante.

Uma espécie de antropologização instrumental da técnica faz com que a reflexão moderna sobre o corpo e a vida seja realizada sob o pano de fundo da distinção entre homem e natureza. Mas, de que lado fica o corpo? E a vida? Do lado do homem ou da natureza? Se do lado do homem, o humanismo e a sua retórica da pessoa se afirma; se do lado da natureza, a fenda por onde aparece a política das coisas comparece. De todas as formas na qual o corpo é uma coisa, um acúmulo de energias do qual se pode extrair sempre um melhor rendimento, talvez o esporte seja a maior e melhor expressão contemporânea. Não por acaso, inclusive do ponto de vista simbólico, essa ideia é tão eficiente: pode-se ver na ideia de sociedade esportivizada e na política que toma a forma esportiva, versão “pós-moderna” da biopolítica. Na sociedade esportivizada os usos do corpo se inserem no dispositivo de cuidado biomédico, se apoiam na fetichização da aptidão física, e os esquemas e modelos do esporte, dentro dos quais se destaca a concorrência, são aplicados em outras esferas da vida económica, social, cultural e politica (VAZ, 2011).

Não sabemos se o corpo tem um ser próprio, ou melhor dizendo, qual é o ser do corpo enquanto ente, usando uma expressão heideggeriana mais uma vez. Mas, com a expansão da ciência moderna,

                                                                                                               

a possibilidade de saber sobre o ser do corpo sofre a forclusão.162 Ele é apenas um meio, e não por acaso se ajusta tão bem aos requerimentos técnicos da economia, do social, da cultura e da politica. Em qualquer um desses espaços em que o corpo aparece, ele é tratado segundo critérios técnicos, quer dizer, pela lógica do cálculo. Se a técnica é só um intermediário na metafísica moderna, o corpo enquanto ente é produzido como mera disponibilidade. Trata-se de uma disponibilidade para a vida? Mais uma vez a questão cartesiana: o cogito é quem define a disponibilidade do corpo para a vida, sempre que corpo seja o conjunto de órgãos, aparelhos e sistemas ou o corpo anátomo- fisiológico. A vida, operando desse modo, fica dividida, de uma parte o corpo, da outra, a razão. Porem não é esse o problema do dualismo cartesiano, mas as suas consequências políticas: o corpo fica do lado das forças da natureza, portanto, na racionalidade instrumental, ele é algo de onde tirar energia e armazenar. Na crítica da economia política isso leva o nome de mais-valia. Por isso a visão técnica do mundo tira a sexualidade do corpo, porque ela é “contingência infinita”; assim, o corpo é colocado do lado da necessidade, afastado da contingência.

O curioso é que na contramão da ideia de repressão, inclusive da repressão técnica, e pela via de uma suposta liberação, de um progressismo político, a cultura sofre da “primazia do corpo”. Só que não é tão claro que essa libertação seja alguma coisa distinta da primazia da economia, toda vez que o discurso sobre o corpo é um discurso que não pode prescindir da ideia de propriedade. Nos primórdios, a técnica esteve ao serviço da revolução industrial, desse modo, ao serviço do capital. Depois, a técnica passa a estar a serviço do modelo individual dos corpos, em que cada indivíduo é proprietário do seu corpo e soberano diante dele, efeito tardio do “discurso Locke”. Parafraseando Foucault, mais uma vez: ironia dos dispositivos.

                                                                                                               

162

Encontramos em Heidegger (2004, p. 28) uma distinção entre corpo e organismo: “El cuerpo del hombre es algo esencialmente distinto de un organismo animal. La confusión del biologismo no se supera por añadirle a la parte corporal del hombre el alma, al alma el espíritu y al espíritu lo existencial y, además, predicar más alto que nunca la elevada estima en que se debe tener al espíritu, si después se vuelve a caer en la vivencia de la vida, advirtiendo y asegurando que los rígidos conceptos del pensar destruyen la corriente de la vida y que el pensar del ser desfigura la existencia”. A distinção que realiza Heidegger é fundamental para esta investigação; é preciso ver nela a relação crítica que mantém com o vitalismo e com a tradição cartesiana.

 

5.2.4. O saber que se põe em jogo na política como técnica dos