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O CORPO EM UMA POLÍTICA MINIMALISTA

mismo hábitat” (LACAN, apud LE GAUFEY, 2007, p 52, n 40) Se não há

6.3. O CORPO EM UMA POLÍTICA MINIMALISTA

A política moderna tem tido seus momentos de megalomania, tem sido pouco modesta. No entanto, a modéstia na política não seria simplesmente deixar de pensar em projetos megalomaníacos, tampouco baixar as expectativas a respeito de um futuro mais ou menos utópico e paradisíaco, ou ainda renegar a escatologia ou o messianismo (excluindo, claro, essa forma vulgar de messianismo que aparece cada vez que uma massa se articula no desejo de um líder). A modéstia na política seria o fragmento. Porque a política, como condição dos seres falantes, sempre é do todo. Mas ao mesmo tempo, e pela mesma razão, sempre é do nãotodo, como se disse antes.

A política não deve reduzir-se à relação entre governantes e governados, à relação entre uma instância ativa e outra passiva.

Queda por tanto así una posibilidad para el que no decide y comprende que le hace falta hacerse entender en cuando no decide: fragmentar. Inundar la política con el elemento del fragmento. Fragmento a fragmento y sin mimética, el que no decide puede eventualmente imponer su fuerza al que decide. Habrá impuesto su fuerza en un punto dado, sin por eso imaginarse que decide (MILNER, 2013, p. 37).

                                                                                                               

205 Assim como não é a consciência o que determina o ser social, não é o sujeito o que determina a série de significantes, senão o contrário, na medida em que o sujeito é representado por um significante para outro significante (cf. LE GAUFEY, 2010).

 

Um lema do tipo “sejamos realistas, peçamos o impossível” tem sentido para o sujeito. Porque a que outra coisa pode aspirar um sujeito senão ao real? E esse real, claro, é impossível. A política, do todo e do nãotodo ao mesmo tempo é sempre e de alguma forma uma política do real. E enquanto é uma política do real, é uma política do hic et nunc.206 É no presente que os seres falantes se deparam com o real, por isso a política é balbucio, é derivada de lalangue, é a forma em que, ante a imanência da massa, se manifesta a contingência infinita dos corpos. Por isso, em contrapartida, o real da política está no cuidado da sobrevivência dos corpos falantes, diz Milner (2013). “El criterio de lo insoportable en política se busca del lado del cuerpo” (MILNER, 2013, p. 76); neste critério se apoia a política minimalista: “parte de los cuerpos hablantes y a ellos vuelve” (p. 77).

A política não é para fazer laço, mas o que supõe um laço. Por isso a representação é importante, em suas diversas variantes, pelo menos as seguintes: representar um laço, ser representado em um laço, encontrar lugar em uma representação. Os seres falantes estão tomados na semelhança, mas não se reduzem a ela. Uma política baseada na semelhança é, finalmente, fascista. Tal política teme o real, o dispersante que todo laço enfrenta; ela funciona como gendarme do fantasma, ao mesmo tempo em que este é sua garantia. Para dizer de um modo muito simples, talvez brutal: o problema manifesta-se quando quem representa acredita que realmente representa; tocou-se fundo, então, um sujeito representa um significante para outro significante. Logo, não há política para além dos agrupamentos, inclusive não há qualquer coisa para além deles. Quando isso acontece, a pregunta última, ou talvez primeira, sempre é: de que lado você está? Esta pergunta é possível porque, como diz Lacan (1979g, p. 162), “não se pode servir a dois amos”. Ao representado se exigirá pureza, a mesma que oferece o representante; esta começa pelas ideias, acaba pelos corpos. Os que não são iguais merecem morrer e junto com eles, a

                                                                                                               

206 Não ignoro o paradoxo que possa comportar a expressão “política do real”. Por exemplo: acreditar em uma política do Real, disse Milner (1999, p. 97), “es lo mismo que creer en un discurso que no sea del semblante (…)”. Contudo, prefiro submeter a ideia à contradição, levá-la a seu limite, quer dizer, verificá- la aí onde pelo menos para um caso, não se cumpra. A política do real é puro acontecimento; não é nem pode ser ideologia, e muito menos pode ter a ver com o mundo pragmático. Por isso Milner (2013, p. 29) se pregunta: “¿es posible una política de los seres hablantes cuando se sabe que en su fundamento está la más profunda de las heridas que pueda sufrir un ser hablante?”.

política. Em suma, quando digo fascismo, suponho a seguinte sequência: apenas há política dos agrupamentos, há apenas um agrupamento possível, esses agrupamentos somos nós. Uma palabra- Senhor organizará estruturalmente esse discurso, chame-se essência, raça, liberdades, mártir, história etc. e servirá para recrutar legião.207

A posição multiculturalista não resolve o problema, a integração das minorias no discurso político tampouco. São variantes da política da semelhança, e respondem mais a uma demanda que ao desejo, quer dizer, mais ao social que ao sujeito. Uma política do real é indiferente à semelhança, por mais que os seres falantes estejam tomados por ela. A política é outro nome da deriva em que um significante representa um sujeito para outro significante. Por isso, a única posição ética à altura do sujeito, na medida em que o que rege essa deriva pode chamar-se nãotodo, é uma ética do impossível, uma ética que não teme o real. Esta ética, não pode ser outra que aquela cuja raiz ou princípio está no desejo, não na pura obrigação. Ela não propõe um modo de vida, um ideal, mas uma liberdade que estaria no encontro do sujeito com sua verdade, quer dizer, com a verdade de seu desejo, com um saber que não se sabe que se sabe e cujo nome é “inconsciente”. Desta maneira, há que indagar no “ser social” de Marx, justamente porque não é a consciência o que o determina, assim como tampouco determina o desejo. A consciência, mais que reprimir um desejo, é a consequência de uma repressão fundamental que compõe a estrutura do sujeito. Nesse “ser social” que determina a consciência está a chave da ética, mas não ao tomar-se consciência disso, porque a questão fundamental não é a “tomada de consciência”, mas a de deparar-se com um saber não sabido, um saber que está estruturado como uma linguagem. Em todo caso, a consciência goza dessa falta de saber. A única ética possível é uma “ética do real”, “do impossível”, uma ética para além das idealizações.208

Pode-se chamar realista esta política, apesar de que o lugar por excelência da política seja a instância chamada simbólico. Será realista na medida em que atenda as determinações reais da vida de cada um no

                                                                                                               

207 Cabe recordar aqui a relação entre fascismo e foices: esses últimos referem a um feixe de gravetos que segura um machado, representando a ideia que afirma “a união faz a força”. Na antiga Roma eram transportados em procissão, carregados ao ombro por lictores, para simbolizar o poder, sobretudo para recordar o fundamento militar de todo poder social.

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Para esta forma de conceitualizar a questão ética, valho-me de Rajchman (2001).

 

encontro com outros, na medida em que possa conservar uma ideia de Liberdade como dispersante de todo laço e não se deixe esterilizar pela cultura burguesa e ainda pelo neoliberalismo. Será política na medida em que as instituições não sejam a “meta da pulsão”, na medida em que não se interponha algo assim como um intento de estatização da lalangue.

Para uma política à altura do sujeito as liberdades formais que tratam do empírico são importantes, sem dúvida, ainda que não se reduza a elas. Ao deparar-se com a multiplicidade real dos corpos contados um por um, o sujeito se espanta, ainda que certa prudência, quando não hipocrisia, faz que o olhar seja de soslaio, por medo de ficar petrificados, como se tratasse de Medusa. O sensível reivindica um lugar no mundo, e sem política não tardaria muito tempo em proliferar o sentimento de incompatibilidade entre os seres falantes. A política é realista se não renega o desejo do sujeito, mas é política a condição de sua articulação em uma cadeia de significantes. Enquanto tal, pode-se confiar cautelosamente no laço, para que a realidade seja habitável, para que ofereça um lugar para os corpos contados um por um, um lugar para os corpos falantes dos seres falantes. É esta a única razão pela qual à política pode interessar a técnica, sempre que esta sirva para organizar o mundo.