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Tradição judaico-cristã, política e economia

85 Tomo conceitos de Milner (1999; 2012b).

4. UMA LEITURA POLÍTICA DO CORPO

4.1. A QUESTÃO DO CORPO ARTICULADA NA RELAÇÃO ECONOMIA, POLÍTICA E RELIGIÃO

4.1.2. Tradição judaico-cristã, política e economia

A enunciação “judaico-cristã” se apresenta como junção, mas na verdade também é separação: o hífen não está só para sublinhar continuidade, mas descontinuidade. Para que o cristianismo tivesse sucesso, foi preciso uma ruptura com a tradição judaica, que no tempo

da suposta ressurreição de Jesus Cristo já se iniciara havia treze ou catorze séculos, se estivermos de acordo em que a instituição da tradição judaica e sua religião foram obra de Moisés.103 A ruptura é a causada por Paulo de Tarso, o “anti-filósofo”, segundo Badiou (2009).104 O que temos entre nós, em termos culturais e políticos (econômicos?) é um conteúdo que, através da tradição ou da historiografia, herdamos de Moisés e Paulo, conteúdo que pode sedimentar-se no inconsciente se, com Freud (1984), aceitamos que essa estrutura, sendo da ordem do sujeito, não pertence ao indivíduo, mas à História.105

A tradição judaica conserva um lugar importante para a palavra e para o corpo. De alguma forma isso é o que permite dizer, junto com Aristóteles, que a política é uma coisa de seres falantes, ou ainda mais, com Milner (2013), que a política é coisa de corpos falantes de seres falantes.106 A palavra no corpo sublinha a tradição judaica. A palavra no corpo, evidência da matéria espiritualizada, do significante encarnado, é a condição de possibilidade da política, sempre que ela seja uma instância específica dos seres humanos, por serem corpos e por serem falantes, quer dizer, pelo fato de serem corpos falantes dos seres falantes.

Segundo Stéphane Mosès (2007, p. 11), a tradição mística judaica tem insistido muito na origem carnal do conhecimento:

las categorías del conocimiento, aun del más abstracto, reflejan la estructura somática del sujeto humano. (…) Las estructuras que el hombre proyecta sobre el mundo para volverlo inteligible no sólo reflejan las estructuras de su propio espíritu, sino también las de su cuerpo.

Desse modo, o trabalho é uma forma de conhecimento do mundo.107 Portanto, se o trabalho é uma mercadoria, a mercadoria é

                                                                                                               

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Cf. Freud (1984) e a Bíblia (2011).

104 Para Badiou (2009) Paulo de Tarso é um anti-filósofo, não só porque despreza a Filosofia, mas, sobretudo, porque seu discurso se apoia na graça de um acontecimento, e na negação ao conhecimento.

105 Para ser fiel ao texto de Freud (1984, p. 191): “De por sí, el contenido del inconsciente es ya colectivo, es patrimonio universal de la Humanidad”. 106 Segundo a interpretação rabínica do Gênesis, o homem se define como ser dotado da capacidade de fala (MOSÉS, 2007, p. 25).

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Neste ponto é interessante lembrar as palavras de Locke (1994, p. 98): o trabalho do corpo e a obra das mãos.

 

fetiche e o corpo é reificado, então, o conhecimento, como produto do trabalho científico, não está isento de ser mistificação do positivo. Mas ainda há um viés teológico muito mais claro, talvez mais complexo: “Y con mi propia carne veré a Dios” (JOB, 19:26). Defrontamo-nos aqui com um problema muito importante, o problema da verdade (ou da Verdade).

Se a Verdade é da ordem do transcendente, se ela está ao lado do Ser, a possibilidade de se deparar com ela está no corpo. Desse modo, o corpo, como matéria espiritualizada, é o que articula o Ser e a práxis. A economia política bem poderia ser a desconexão do corpo falante, para deixar isolados um organismo e uma língua. Desse modo, a economia política é a impossibilidade da Verdade, ou, em sentido platônico, a impossibilidade da Ideia, toda vez que o corpo é tirado desse lugar de articulação entre Ser e práxis, e reduzido a um organismo e uma língua como comunicação, ou a uma biologia e um imaginário (em termos de Lacan), quer dizer, reduzido a uma noção dualista de indivíduo composto por uma biologia e uma linguagem comunicacional destinada a estabelecer “universos logicamente estabilizados” (PÊCHEUX, 2006) que aceita o Eu como amo da sua casa.108

Pode-se acrescentar, também, que se o organismo fica ao lado das coisas, a língua (como dispositivo de comunicação) fica ao lado dos dispositivos de governamentalidade. Na sequência, a política será “política das coisas”, segundo a expressão de Jean-Claude Milner (2007). Nesse ponto, é possível lembrar com Agamben (2001), e também de alguma forma com Arendt (2010), a importância das noções de poder soberano e vida nua. Essa importância é, claro, política. A vida nua é uma vida sem qualidades, desarticulada da língua, uma vida, portanto, que não pode falar, que não é capaz exercer uma condição política fundamental: a crítica. Por que a crítica? Porque ela é conhecer, distinguir, julgar. Sem a potência da crítica, a vida é puro organismo, e só poderá dar conta do sofrimento, mas não do bem e do mal, do justo e do injusto, como propõe Aristóteles em Política. Para o Filósofo, o homem é um animal social, “muito mais que a abelha ou outro animal gregário”; e

                                                                                                               

108 Nesse caso, a relação entre a biologia e a língua não é pensada em termos estruturais, mas, puramente imaginária, de uma “consciência” do corpo biológico.

é o único entre os animais que tem o dom de fala. Na verdade, a simples voz pode indicar a dor e o prazer, e outros animais a possuem (sua natureza foi desenvolvida somente até o ponto de ter sensações do que é doloroso ou agradável e externá-las entre si), mas a fala tem a finalidade de indicar o conveniente e o nocivo, e portanto também o justo e o injusto; a característica especifica do homem em comparação com os outros animais é que somente ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras qualidades morais, e é a comunidade de seres com tal sentimento que constitui a família e a cidade (Política, 1253a).

A economia política é, deste ponto de vista, um oxímoro. A condição de possibilidade desse oxímoro pode ser lida de duas formas, embora complementares, já mencionadas: como indicou Foucault (2009), a família passou de modo de governo a elemento da população (de modelo a instrumento), ou ainda, nos termos de Hannah Arendt (2010), a família como modo de governo estendeu-se à sociedade, como já foi dito antes. Segundo Foucault (2009), no século XVI a economia designava uma forma de governo, já no século XVIII designa um nível de realidade, um campo de intervenção. Apesar das diferenças entre Foucault e Arendt neste ponto, é possível dizer que, nas duas leituras, a política fica esmagada. Conforme a entrada na era do trabalho, que perfeitamente pode-se considerar uma invenção moderna, pelo menos na forma em que ele é desenvolvido na formação social capitalista, a política é, antes de tudo, economia, e, arriscando ainda mais, a política é a arte da administração do sofrimento dos trabalhadores. Isso, porque tirada a palavra aos trabalhadores, esmagada a política, só resta a voz, o meio para expressar o sofrimento. Por isso no Manifesto Comunista Marx e Engels afiram que os proletários não têm nada a perder, apenas os seus grilhões. Até aqui, seria possível reconhecer que a crítica política que Marx realiza à economia é também uma crítica ao cristianismo que bebe da tradição judaica.109

Para a crítica ao capitalismo, assim como para a relação entre teologia e política, a tradição judaica apresenta uma dimensão ética

                                                                                                               

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Voltarei sobre este aspecto mais à frente. Sobre o papel da tradição judaica e a sua relação como o pensamento filosófico e científico em Spinoza, Marx, Freud e outros, cf. Deutscher (1958).

 

altamente significativa. A vida do homem é, para essa tradição, matéria animada por um sopro divino à qual são adicionados o saber e a fala. Em consonância com Aristóteles (Política), uma tradução da bíblia ao aramaico no século I ou II define o princípio de vida que anima o ser humano como a aptidão para falar (MOSÈS, 2007). De acordo com o relato bíblico, a história do homem conserva uma dualidade: na figura de Adão encontra-se uma dimensão metafísica (o arquétipo da humanidade, a unidade da espécie, a verdade do Ser em que se expressa uma substância originalmente dual) e uma dimensão antropológica (origem de uma espécie que se divide numa multidão incalculável de indivíduos, o ser/espírito encarnado num corpo) (MOSÈS, 2007). Mas a exigência ética se apresenta quando, segundo o relato do Gênesis, Deus decide que não é bom que o homem esteja sozinho. Com isso assentam- se as bases da exigência ética que prefere a dualidade em lugar do “narcisismo do Eu” (MOSÈS, 2007, p. 20).

Mas também há outras possíveis críticas ao capitalismo a partir da tradição judaica, especialmente ao capitalismo tardio e o seu rosto de sociedade de consumo. A sociedade de consumo mobiliza cada vez mais para eliminar as mediações, para que o consumo seja um ato. Cada vez mais o consumo é um mandato. A história da relação entre o judaísmo e ocidente pode nos dar uma pista para uma crítica a essa compulsão ao consumo. Diz Stephan Mosés (2007) que tal história pode ser lida a partir da oposição entre Jacó e Esaú.110 Para o Talmude, Esaú é o princípio do Império Romano e Jacó o princípio de Israel. Eles são irmãos, Esaú é o primogênito; mas aqui a primogenitura é entendida como um dever. Segundo o relato bíblico, Esaú desdenhou a primogenitura um dia em que voltou com fome e sede do campo. A vontade de satisfazer a necessidade fez com que Esaú vendesse a primogenitura a Jacó. A impaciência por satisfazer uma necessidade sempre-já é, de alguma forma, uma renúncia à política. Jacó cozinhou, o que implica mediações (cozinhou para mais tarde e para outro): a analogia com a política é mais que provável. A política sempre são mediações, e sair da necessidade é a possibilidade de adiar a satisfação imediata em prol da sobrevivência dos corpos falantes. Esse é o que se apresenta de um modo violento na modernidade (a multiplicidade dos corpos falantes) e que no capitalismo tardio impõe o mandato de consumo para satisfação imediata de uma necessidade, aliás, criada pela

                                                                                                               

110 Jacó (Antigo Testamento) e Caim (Novo Testamento) são camponeses, enquanto os “preferidos” do Pai são Esaú (caçador, AT) e Abel (pastor, NT).

própria dinâmica da sociedade de consumo.111 Esaú, o princípio do Império Romano, é, hoje, o princípio de satisfação imediata de uma necessidade, o princípio de uma anti-política. Trata-se do homem que vive no puro ato, do homem que não pode desconectar a relação imediata entre o apetite e o ato que o satisfaz. Nesse sentido é que podemos propor, embora seja de modo heurístico, uma espécie de atualização do sujeito Esaú no mundo contemporâneo. Aliás, isso se articula como a hegemonia do homo œconomicus sobre o zoon politikon, o que será apresentando mais adiante, ao discutir sobre um modo crítico da questão do corpo articulada na relação entre economia, política e religião.

4.1.3. Marx: o espectro da ideologia e as sutilezas metafísicas e