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FALAR, QUER DIZER, QUANDO FALHA UM SABER

mismo hábitat” (LACAN, apud LE GAUFEY, 2007, p 52, n 40) Se não há

6.6. FALAR, QUER DIZER, QUANDO FALHA UM SABER

Entrar na questão da verdade é, como quase sempre acontece, entrar no terreno do equívoco, é deixar-se afetar por ele. É pela mesma matéria pela qual é possível uma verdade: pela língua. O certo é que se trata de uma questão que inquieta, e talvez pela mesma razão que inquieta o existir como corpo, como diz Lacan.

Nas palavras de Balibar (1995, p. 44):

Si existe la verdad en y por el lenguaje, es porque hay equivocidad del ser respecto del lenguaje: es porque el ser del lenguaje es no ser, flatus vocis, enfrentado a los objetos de los que habla o a los sujetos que lo hablan.

Quando o sujeito fala para dizer a verdade, se o que quer é referir-se a um objeto, não pode prescindir do discurso, portanto, não pode prescindir da linguagem. No ponto em que parece sair de si mesmo para nomear o real de um objeto, volta sobre si mesmo, como ser falante. Poder-se-ia aplicar aqui a seguinte fórmula: a verdade se autoriza por si mesma.211 Quer dizer, não há metalinguagem capaz de explicá-la, fundamentá-la, descobrí-la. Ela fala, isso fala, e assim é que o sujeito sempre está comprometido na verdade. Disso é o que pretende prescindir uma ciência sem sujeito.

De maneira que, tratando-se de seres falantes, a verdade é algo que, ao pronunciá-la, se desvanece, envolve todo ao mesmo tempo em que prescinde de todo e qualquer sentido; ao pronunciá-la coloca-se em evidência seu carácter dividido, de um lado o sujeito da enunciação, do outro o do enunciado; de um lado o real e o que essa verdade supõe remeter, do outro a estabilidade imaginária, o funcionamento

                                                                                                               

211

Poderá se perceber aqui uma fórmula parecida a “Eu sou o que sou” (Éx. 3:14). Dentro das possíveis interpretações do enunciado, destaco duas: “Eu sou o que sou” afirma uma verdade em oposição ao falso, o real frente ao imaginário, neste caso, trata-se do verdadeiro Deus afirmando-se em contra dos ídolos. Por outro lado, pode-se interpretar como uma forma de evadir o nome, de onde se pode deduzir que uma verdade não se pode nomear, porque nenhuma palavra poderia representá-la. Este é um claro exemplo de como são intrincadas as relações entre teologia e filosofia. Se considerarmos a hipótese de Kojève (19--), para quem a ciência moderna se origina no cristianismo, estas interpretações não carecem de relevância.

 

fantasmático da verdade, seu caráter de ficção; no meio, a cadeia significante, lugar onde se instaura uma verdade. O sujeito deseja uma verdade, mas nunca pode senão dizê-la a meias, e quem diz a verdade, se engana. Segundo Balibar (1995, 52), “la unidad de la verdad como nombre está inmediatamente comprometida en un proceso de división en dos y más, o de metaforización infinita”. A verdade é não-toda, e, portanto, submetida à contradição: é A, mas também não-A; não se trata de relativismo nem de representações, mas da impossibilidade de forclusão de uma verdade. Por outra parte, de acordo com Lacan (2013b, p. 60),

una verdad no tiene contenido. Una verdad que se dice tal es verdad o bien es semblante, diferenciación que no tiene nada que ver con la oposición de lo verdadero y lo falso, puesto que si es semblante, es precisamente semblante de verdad.

Trata-se de uma verdade que toca um real, e o faz por meio da palavra. É neste momento que entra em jogo a noção de sintoma, cujo descobrimento Lacan atribui a Marx. O sintoma é valor de verdade, ainda que a verdade não seja um sintoma. O que a verdade põe em jogo é o ser, ser que, em termos lacanianos, não é outra coisa que ser falante, porque apenas chega a ser enquanto falante. Mas, o ponto é que não chega a ser, falha (LACAN, 2013b).212 Se tal falha não existisse, estaríamos frente a um indivíduo, ao que pudesse completar-se sem fissuras, a plenitude do sentido e nada mais. Desta maneira, o sintoma “representa el retorno de la verdad como tal en la falla de un saber” (LACAN, 1979d, p. 56). Nos termos de Pierre Bruno (2012): o que designa o sintoma é um tipo de interdição, trata-se da verdade como o que faz objeção ao todo-saber. Assim, o sujeito está dividido entre saber e verdade, porque não há saber que possa recobrir uma verdade, divisão que retorna como sintoma.

Portanto, a relação entre saber e verdade falha, ou está marcada por um desencontro. Trata-se da existência de uma “não-relação”? O certo é que, como quer que se a defina, a divisão entre saber e verdade caracteriza a política. O projeto político, o projeto de um coletivo, de uma associação, de uma comunidade, de um partido, enfim, supõe um saber. Mas, cedo ou tarde enfrenta-se a uma verdade. Se o político é o

                                                                                                               

nome por excelência do dispositivo de sexualidade, nos termos em que mostra Michel Foucault desde o primeiro volume de sua História da Sexualidade, é porque no coração do projeto moderno está o descobrimento da contingência infinita dos corpos. O político é o sintoma deste descobrimento, é a resposta técnica à incomensurabilidade.213

Quer dizer, a política, cuja existência não é outra coisa que o fato bruto dos seres falantes se depararem com a multiplicidade, é o correlato da divisão do sujeito, da divisão entre saber e verdade. Ao ser tomado na linguagem, o sujeito está no campo do saber, um saber que é do Outro. Aí “nasce” a política, portanto, sua condição de possibilidade está na divisão do sujeito, aí se articula sua verdade, um saber alienado no campo do Outro. O inconsciente é a política, diz Lacan!214

Seguimos neste ponto a Alain Badiou (2007, p. 15):

Por haber caracterizado la política como irrepresentable, porque ella hace sujeto en el orden perceptible del síntoma, Marx es un pensador de la política desprendido de lo político, en lo cual fija la ficción. No se cerciora de la existencia de una norma, sino de un “hay” acontecimiento, donde cruza un real, en el atolladero de todo orden concebible y representado. La verdad de la política está en el punto de ese “hay”, y no en su lazo.

Vale aqui uma referência ao discurso capitalista, enquanto “designa el lazo social tal como se desprende del dominio del modo de producción capitalista” (BRUNO, 2012, p. 288). Como conceito, não deixa de resultar um tanto paradoxal, porque ao mesmo tempo em que parece nomear um discurso que não faz laço, não pode deixar de fazê-lo pelo semblante. Este discurso apresenta-se como sem perda; como propõe Lacan (2013c), o que distingue o discurso do capitalismo é a

                                                                                                               

213 Isso estabelece todo um problema entre ciência e técnica, que não abordo nesta investigação. Direi somente que o problema não é que uma resposta técnica tem sido dada, mas as derivações da relação ciência e técnica na modernidade ou, para arriscar um pouco mais, da onipotência da técnica. 214 Lacan (1967b) faz esta afirmação, recordando outra de Freud, não menos importante: a anatomia é o destino. Cf. também Laurent (2015). Sobre a tal frase de Freud, cf. a problematização que realiza Jean-Claude Milner (2012, p. 110-111 e 168-169) e (2013, p. 85-86).

 

rejeição da castração. Desta maneira, poderíamos propor que a política contemporânea é a ausência do nome político enquanto nome divisor: os seres falantes, empiricamente falando, já não se agrupam em um partido ou movimento de massas, os seres falantes do capitalismo tardio são o epígono de um sintoma. Se há o que se pode chamar de divisão subjetiva articulada em uma Ideia, essa divisão parece cada vez mais estranha ao contemporâneo.

Por certo, falar da verdade nesses termos significa situar a questão ao lado da ética e não da epistemologia, ainda que cedo ou tarde também chegue a ela. Tampouco se trata de representações, inclusive quando elas estão implicadas. Tratando-se da política como algo próprio dos seres falantes, algo próprio da inscrição do vivo no campo da linguagem, chegamos à via que nos conduz ao sujeito dividido. No meio-dizer do parlêtre se atualiza uma verdade disjunta do saber, e que remete sempre a essa divisão fundamental. Por isso, ainda que a política não possa prescindir da representação e das representações, porque tudo o que demanda um sujeito é que uma representação seja possível, como afirma Milner (2012), não deve a elas sua existência. Enfim, a política não tem sentido, é a fratura do sentido porque ela não expressa senão o hiato entre o organismo e o corpo, a articulação a modo de “não- relação” entre o vivo e o significante. E aí há um saber, próprio da singularidade, um saber que não se sabe, um saber inconsciente; sendo tal, não se pode representar. De todo modo, e justamente por resultar nesse hiato, a política não pode prescindir do simbólico. Mas se o simbólico se caracteriza pela deriva do significante, por nunca encontrar sentido (ainda que se dirija a ele), de todas as maneiras é a garantia de um possível pensamento e interpretação, na medida em que se produz em um corte, e não em uma continuidade, tampouco na tomada de um poder: “en ello la política da muestra del efecto de sujeto, unido a lo real como obstáculo, y escindido de la ficción del sentido” (BADIOU, 2007, p. 13).

No entanto, haveria que distinguir entre os efeitos de verdade da ciência e os da política, inclusive para dar ar à potência do encontro entre ambos, especialmente se se tem em conta a diferença entre a verdade e a cifra, a disjunção entre verdade e saber.

O político, como conjunto de técnicas e dispositivos que se ocupam da conexão entre uma necessidade e sua satisfação, põe a circular os indivíduos em um mundo biológico, no mundo da pura vida; em troca, a política supõe um mundo simbólico, vale-se dele. Para não enfrentar a verdade do organismo, de uma raça, de uma essência, para

não enfrentar a verdade biológica do mundo, quer dizer, para não organizar a vida, especialmente a vida pública, em função de uma economia e construir a partir daí a figura do político, o sujeito tem que enfrentar a verdade que o interpela enquanto falante, enquanto parlêtre. Efeito do significante, o sujeito não responde a um instinto, mas a uma pulsão. Aí se coloca em jogo a política, nisso que pode chamar-se contingência infinita dos corpos, sim, e apenas sim, um significante estabelece uma solução de continuidade no real de um organismo.

Recuperar o corpo politicamente quer dizer tirá-lo do atlas da anatomia, do silêncio do órgão, e colocá-lo a funcionar na linguagem. Significa admitir que tudo o que deseja um corpo falante é que haja sentido, e haverá aí um saber-fazer, mas admitir também que há um saber em falta, nicho da política por excelência, e que há um impossível saber, ao que podemos chamar real, que para a vida com outros não é senão o fato imponderável e cru da multiplicidade falante de corpos falantes que povoam o mundo.