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85 Tomo conceitos de Milner (1999; 2012b).

4. UMA LEITURA POLÍTICA DO CORPO

4.2. QUANTO MAIS CORPO MENOS POLÍTICA?

4.2.5. Bíos e política

Expressões tais como “biopolítica” ou “política do corpo” são estranhas ao pensamento de Hannah Arendt, na medida em que para ela, quando há primazia da biologia, já não há política. Mas, conforme indica Esposito (2009), ao tratar-se de “linguagens originariamente heterogêneas”, a força da perspectiva biopolítica procede justamente daí, dessa antinomia. Se a cultura contemporânea prescinde da política, pelo menos no sentido clássico dessa noção, é porque a preocupação principal é a vida; mas trata-se de conservação da vida biológica, da perdurabilidade do organismo. O arco que percorre essa preocupação é amplo e quase inesgotável: da prática médica à pedagógica, da renovação tecnológica destinada a aprimorar o artifício cotidiano ao consumo conspícuo, das tecnociências ao bricolage, de certas filosofias da pós-modernidade às reivindicações da religiosidade new age. O corpo (deve se ler organismo) governa. A política do corpo também

entra comodamente na política das coisas. O corpo, já dizemos, é uma coisa, res extensa. A política das coisas é a ruptura radical com a noção tradicional de política.137 Essa política, cuja condição de possibilidade reside na generalização da economia política, leva ao extremo o postulado cartesiano, mas inverte o dualismo, conforme demanda uma política das coisas. Se o corpo reificado governa, e a política é o contrário do governo das coisas (MILNER, 2007, p. 19-20), não há mais que administração da vida. Não há acaso em que na sociedade contemporânea gestão-avaliação-corpo pertençam a um único e ubíquo domínio. Mas os seres falantes são incomensuráveis e insubstituíveis, isso é o que constitui a substância das suas liberdades (MILNER, 2007, p. 23), por isso é que a política das coisas não se realiza, ou apenas se realiza enquanto os seres falantes vivem como se fossem organismos.

Num Estado em que a política é debilitada e funciona uma política das coisas, onde o corpo (sōma) está no centro das preocupações, o que resta é a pura administração. Em outras palavras: não se necessita da ação, senão da burocracia, mas não uma burocracia que seja subordinada à política, mas de uma burocracia auto- referenciada, cujo propósito seja administrar o governo das coisas, não dos homens. Esposito, embora tome distância de Hannah Arendt, é taxativo: quando o corpo, vivo ou moribundo, é o eixo das dinâmicas e conflitos políticos, “decididamente estamos fora da democracia” (ESPOSITO, 2009, p. 187).138

O corpo transformado em coisa não fala, porque as coisas são mudas; o corpo coisificado é pura violência, ou sinal da retirada da política. A palavra cedeu espaço à voz. Mas o problema não é que o corpo (sōma) seja uma realidade inferior ao espírito; o problema é que em certo “materialismo popular”, segundo uma expressão do já citado Levinas (2006, p. 16), uma espécie de identidade entre corpo e eu, que faz com que a vida do espírito fique dissolvida na biologia.139 E a

                                                                                                               

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Notar-se-á que em ocasiões uso a palavra política para referir ao que neste trabalho se chama “político”. Esse uso justifica-se por questões sintácticas e não conceptuais. Tal é o caso, por exemplo, na expressão “política das coisas”. 138 A referência da pagina é do livro na sua versão em espanhol, mas para as citações uso a tradução feita por Selvino Assmann.

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Alguns elementos do contemporâneo que se apresentam como progressistas deveriam ser mais bem analisados. Por exemplo, a expressão “eu sou dono do meu corpo”, lema utilizado na defesa feminista em prol do aborto legal. Essa expressão indica, no mínimo, uma identidade eu-corpo, uma espécie de privilégio do organismo, em que o corpo é colocado na categoria de coisa

 

biologia toma para si o governo do espírito (o espírito como mais uma coisa identificada com o corpo), com o qual a política deriva numa ponderação da herança, da raça, do sangue. Essa é a política do corpo de não poucas reivindicações contemporâneas, como já foi dito. Para finalizar esta secção, deixo uma hipótese em aberto: o privilégio contemporâneo do corpo, ao qual prefiro chamar privilégio do organismo, a partir do qual se pode ler a queda da política, é um fato que está em relação com a ideia do fim da história.

Epílogo

Nesta seção apresentaram-se um conjunto de reflexões, algumas um pouco mais bem resolvidas, outras apenas em forma de questões abertas. Essas reflexões deram lugar à entrada de vários autores, embora o propósito fundamental tenha sido explorar a potencialidade de alguns conceitos da obra de Hannah Arendt na discussão sobre a relação corpo e política. A “coerência interna” da estrutura conceitual apresentada pela autora é de uma consistência ímpar. Contudo, essa estrutura se revela insuficiente para explorar alguns elementos da relação corpo e política, por exemplo, a noção de sujeito implicada na sua teoria. Por isso o intento feito nestas páginas foi acima de tudo -a partir do exercício de pensar possíveis aproximações com outros autores, nem sempre tão próximos, tanto disciplinar quanto teoricamente- acrescentar uma discussão colocada de maneira especialmente lúcida por Arendt.

Uma das possíveis contradições se encontra no uso da noção de biopolítica. Apesar disso, se as reflexões sobre a contemporânea relação corpo e política se realizam levando em conta os limites e as limitações dos conceitos, provavelmente essas reflexões ganhem densidade. Essa é a pretensão do percurso desenvolvido nos próximos capítulos.