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A NAÇÃO JURUNENSE: cultura, tradição e identidade

4. a nação jurunense: um evento real, social e narrado

“Tradição tem um papel inescapável no discurso moderno, e é parte do problema da modernidade” (Xavier Costa, 2002: 501).

A história do Rancho Não Posso me Amofiná., contada e cantada por seus produtores culturais através da idéia de nação jurunense, nos permite confirmar a tese da não-separação entre tradição e modernidade. 163 Mas isso não significa total indistinção entre o tradicional e o moderno, pois os ranchistas dintinguem claramente o tradicional (a era Manito) do moderno (a era Bosco). Para eles tradição e modernidade não são indistintas, mas se articulam, posto que existem ilhas de tradição dentro da modernidade.

Shils (1971, 1981) realizou uma excelente análise do papel da tradição na cultura e nas sociedades, e da necessidade da tradição no mundo moderno, mas, segundo Handler & Linnekin (1984) não conseguiu resolver a principal ambigüidade do conceito: a tradição implica em um processo de transmissão que, ao mesmo tempo em que muda continuamente, pois “interpretações são feitas da tradição presentificada; a

visão do passado muda através da interpretação consciente, o passado percebido é plástico e pode ser reformado pelos seres vivendo no presente” (Shils, apud Handler &

Linnekin, 1984), mantém um núcleo que se perpetua, que tem uma certa continuidade, que permanece.

Como um modelo do passado, a tradição é “uma construção simbólica,

inseparável da interpretação da tradição no presente” (Handler & Linnekin, 1984).

Nesse sentido, toda tradição é inventada porque é necessariamente reconstruída no presente. Mas essa invenção não se restringe a projetos auto-conscientes, pois pode incluir um conjunto de representações que vai “do mais autoconsciente para o

aparentemente inconsciente e do mais reconstruído ao que parece herdado e genuinamente tradicional” (Ibidem).

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Analisando processos de sociabilidade presentes no ritual das fallas valencianas num espaço de tradição e modernidade, Xavier Costa (2002) demonstra que a clássica oposição entre o tradicional como uma categoria residual, sem dinamismo, que “não tem reflexividade, não cria, só repete”, e o moderno como aquilo que é caracterizado pela “reflexividade e pela razoabilidade” é uma falsa questão.

Levando em consideração a crítica de Bruno Latour acerca do excessivo poder da linguagem na constituição dos objetos nas sociedades modernas, retivemos sua afirmação de que todo evento é, ao mesmo tempo, real, social e narrado (1994: 12), para pensar a nação jurunense como um evento narrado como real e, portanto, social, e que participa de forma direta, embora não linear ou homogênea, da construção das diversas identidades vinculadas ao bairro, às festas e à escola de samba, através de redes de relações e de práticas discursivas (Fairclough, 2001).

Como vimos, sambistas, compositores e demais produtores culturais tornaram-se especialistas em um discurso acerca da tradição histórica, cultural e carnavalesca da escola, produzindo temas que relacionam tradição, história e memória, nos quais os diversos tempos se cruzam e se interpenetram, misturando o passado e o presente, constituindo um campo discursivo no qual os sujeitos elaboram e reelaboram suas práticas discursivas, algumas delas competindo entre si, em disputa – entre outras coisas – pela definição dos conteúdos e significados da nação jurunense, como precisaremos no próximo Capítulo.

Gonçalves (2001) analisou questões de história e identidade no carnaval das escolas de samba em Macapá, através das letras de sambas-de-enredo e de entrevistas com fazedores de carnaval, buscando entender as

“formas e sentidos que grupos negros locais elaboraram para se legitimar no lugar e nas lutas por ascensão social. A construção de uma memória discursiva e de uma identidade cultural são as marcas de utilização do passado” (:7).

As escolas de samba aparecem como espaços de construção de identidades, vinculadas ao local (bairro), mas que falam de uma territorialidade específica, a do samba (festeiros, sambistas). A autora estudou o carnaval como locus de produção dos documentos (fontes) para discutir história, memória e identidade, como um contexto onde os fazedores de carnaval produzem uma memória discursiva e uma identidade

cultural para si e negociam com elas nas lutas por dizibilidade e visibilidade na

sociedade. Esses fazedores de carnaval identificam-se como guardiões da memória do lugar e negociam com esse papel nas lutas por um lugar de destaque na estrutura social.

A autora analisa a relação de troca entre memória e história, uma troca permanente de valores e informações, que demonstra a circularidade entre a cultura dos fazedores de carnaval e uma cultura científico-acadêmica, que os fazedores usam para consultar fontes orais e escritas para construir seus enredos (:21-22). Tomando a escola de samba como um lugar de memória, a autora demonstra que as memórias que os entrevistados constroem sobre o carnaval são inseparáveis de suas histórias de vida (:89- 94), de modo que as histórias recordadas e narradas sobre os eventos passados estão sempre vinculados às trajetórias individuais, o que pode levar ao que Bourdieu (1998) denominou de ilusão biográfica, através da qual os sujeitos são, ao mesmo tempo, objetos privilegiados da narrativa que eles constroem, buscando afirmar uma

“existência dotada de sentido, no duplo sentido de significação e direção” (:183-185).

Para Le Goff (1996), a memória é um elemento essencial da identidade individual ou coletiva, sendo a memória coletiva um instrumento de poder (:476). Segundo Lowenthal (1998), “relembrar o passado é crucial para nosso sentido de

identidade (...) nossa continuidade depende inteiramente da memória” (:83). Mas como

distinguir, nesse trabalho da memória, a criação, a invenção, a imaginação? Para Huyssen (2000) não existe separação radical entre memória real e virtual, pois “qualquer coisa recordada – pela memória vivida ou imaginada – é virtual por sua

própria natureza” (:37).

No caso analisado por Gonçalves, há uma clara relação entre identidade e memória, que funciona como um mecanismo de legitimação: mais do que lembrar, a memória serve para reforçar um passado idealizado e participar da construção de um devir em aberto. O conceito de memória discursiva, central no estudo de Gonçalves, é também fundamental na análise da nação jurunense, posto que o reforço a uma memória pública (Huyssen, 2000) construída coletivamente e que circula ininterruptamente entre os sujeitos enunciadores, produzindo um campo discursivo onde a interdiscursividade e a intertextualidade, não apenas estão presentes, mas são condição fundamental das formas e sentidos atribuídos aos enunciados, muitos dos quais aparecem como pré- construídos, não percebidos conscientemente como tal, ou como já-ditos, repetidos exaustivamente a ponto de serem naturalizados por seus falantes e ouvintes.

Os discursos construídos pelos especialistas, produtores ou mediadores culturais incluem, portanto, um conjunto de narrativas ou enredos, nos quais a memória participa tanto como um elemento fundamental de afirmação de uma realidade vivida ou imaginada, intercalada por lembranças ou esquecimentos, presenças ou ausências que auxiliam na construção de uma história singular, de um enredo que eles contam e recontam, periodicamente, sobre si mesmos e a si mesmos. A busca de uma identidade comum se realiza então através de um conjunto de vivências e experiências mediadas pela linguagem, e expressas nas falas dos sujeitos, nos textos por eles produzidos e nas

performances rituais ou enredos, num processo incessante de produção e circulação de

sentidos, onde esses discursos se dinamizam e se transformam e, ao mesmo tempo, se cristalizam, renovando a tradição e reforçando o pertencimento ao grupo.

Nos dias atuais, a tradição recuperada, revisitada, presente nas composições dos sambas de exaltação, como visto anteriormente, trabalha incessantemente na fabricação da nação jurunense como uma comunidade imaginada (Anderson, 1989), num grande esforço de imaginação e fabulação que, se não resulta em ganhos sociais ou financeiros importantes, consegue obter ganhos políticos e simbólicos significativos para seus produtores e consumidores, dentre os quais a persistência da escola como o mais importante símbolo, ícone e signo do bairro.

A nação jurunense é então o termo que pretende fazer coincidir a noção de uma comunidade ideal e os valores e práticas experimentados na realidade cotidianamente vivida por seus participantes. Entre os diversos sentidos que recobre, inclui um sentimento de pertencimento, de fazer parte de uma história que, uma vez criada, tal como aparece no mito de origem de fundação da escola de samba jurunense, é contada e recontada, através de múltiplos discursos produzidos dentro e fora da escola e do bairro, através dos quais os membros da nação jurunense se constroem como sujeitos participantes de uma tradição comum, criada num passado nem tão distante e ainda presentificado nas práticas rituais elaboradas pelo grupo, e que vai sendo perpetuada particularmente pelos jurunenses, considerados os verdadeiros membros dessa nação, ainda que não-jurunenses simpatizantes da nação possam participar desse processo.

Em síntese, a nação jurunense tem sido produzida num esforço de

imaginação (Anderson), invenção (Hobsbawm) e narração (Bhabha). Num primeiro

plano, se refere ao bairro, à localidade, a um espaço reconhecido e vivido com lugar de sentido, fonte de conhecimento e experiência. Mas não se limita ao espaço físico ou geográfico que contém o bairro, pois envolve sentimentos de pertencimento (Cândido) que ultrapassam os limites ou fronteiras do bairro. Envolve especialmente o sentimento de pertencer a uma comunidade cultural (Weber, 1922), a uma tradição ao mesmo tempo instituída e instituinte e que é, paradoxalmente, uma invenção relativamente recente. A partir de algumas falas, localizamos a invenção dessa tradição, da qual participaram diversos produtores culturais, produzindo ou reproduzindo discursos identitários que articulam a memória e a história do bairro (o lugar) em um campo discursivo de disputas por prestígio e poder entre sujeitos e grupos que disputam a legitimidade e o direito de falar em nome da nação jurunense.

A idéia de nação jurunense circula hoje como um bem extremamente valorizado pelos moradores do bairro, como também entre ranchistas moradores de outros bairros de Belém e mesmo de outras cidades mais próximas ou mais distantes. Nesse sentido, a nação jurunense extrapola as fronteiras do bairro e se espalha por outros espaços da cidade e do interior do Estado. Essa idéia está presente na mídia, como aliás o signo Jurunas tem estado, desde o início do século XX, nos jornais e rádios da cidade, que alcançam também o interior e fazem circular esses valores entre efetivos participantes ou apenas simpatizantes do carnaval e da escola de samba, conforme vimos anteriormente.

Ao mesmo tempo, o próprio nome da escola – Rancho Não Posso me Amofiná – escolhido por seu fundador, possui uma grande força semântica. A expressão sintetiza, hoje mais do que nunca, para os que se afirmam jurunenses, os diversos sentidos que marcam a identidade do bairro e a agência do sujeito jurunense, diante de um horizonte pleno de expectativas e de dificuldades para realizá-las no contexto da vida cotidiana de moradores de um bairro de periferia, de origem ribeirinha e pobre, que lutam para conquistar o direito à cidade, a conquista desse lugar (o bairro) acontece todo dia, entre o trabalho e descanso, entre as festas e a violência, entre um carnaval bem ou mal performado e outro que está sendo gestado, entre as redes de sociabilidade lúdica e os conflitos diários, na disputa por prestígio ou lealdades pessoais, nesse grande território simbólico e espaço cultural, onde os signos Jurunas e Rancho estão indissoluvelmente ligados.

INTERTEXTO

Num domingo de janeiro de 1999 encontrei pela

primeira vez um grupo de compositores do Rancho Não Posso me Amofiná. Não que eles sejam ainda ou mesmo já tenham sido compositores exclusivos da escola. Tampouco são todos moradores do bairro ou freqüentadores exclusivos da quadra da escola, pois muitos deles trabalham como músicos profissionais, sendo que alguns trabalham em estúdios de gravações de autores ou produtores paraenses, sendo também atualmente responsáveis pela gravação dos discos das escolas e blocos que participam do carnaval oficial de Belém. Reunidos em torno de uma mesa, no espaço lateral da escola, que era usado nos fins de semana para as rodas de pagode freqüentadas por ranchistas e simpatizantes da escola, um grupo de compositores, todos autores ou co-autores de sambas-enredos ou sambas-exaltação bastante conhecidos pelos freqüentadores do local e agora - a partir da edição de um Cd recém-lançado, composto de sambas novos e antigos dedicados ao Rancho - conhecidos também pelo grande público simpatizante do carnaval e do seu estilo musical mais representativo – o samba.

Pedrinho do Cavaco, Nazareno “Coroca”, Meia- Noite (que naquele ano era também o chefe de bateria do Rancho), Batistinha (terceiro mestre de bateria), Carlinhos Sabiá (puxador oficial do samba) alternavam-se na compra da cerveja que era consumida por todos, já àquela altura substituindo ou pelo menos retardando o almoço de domingo. Revezavam-se também na apresentação de músicas de sua(s) autoria(s), acompanhados por violões e vozes, num coro cantado por quem conhecia todas as músicas, que iam sendo escolhidas ao fim de cada apresentação.

Em homenagem à produção do Cd, cantaram cada uma das músicas do repertório, incluindo o samba-enredo escolhido para aquele ano, cujo enredo era “Sou Rancho, sou professor”, e que tinha como mote inicial:

Jurunas é arte, é berço do samba É o meu estandarte, é terra de bamba...

Ao término das apresentações das músicas conhecidas por todos, Pedrinho do Cavaco apresentou seu novo samba, que estava acabando de compor, e que seria cantado no dia do desfile, antes da apresentação oficial, para “levantar a galera” e criar um clima favorável, uma disposição especial para “entrar na avenida com muita garra” e levar a escola à conquista de mais um título de campeão. A letra dizia:

O Rancho ‘tá na boca da avenida Boa noite pessoal

Vamos entrar com responsabilidade Fazer bonito na cidade

Pra nos é questão de moral. Estou feliz no Rancho

Com a minha escola toda bela Vou desfilar na passarela... A Apoteose é aqui...

... é aqui que o bicho vai pegar pois o ideal de um sonhador

é ver meu Rancho em primeiro lugar.

Imediatamente, o compositor foi auxiliado por Meia-Noite, que substituiu a palavra sonhador por jurunense, sendo seguido por todos, inclusive pelo autor do samba, que incorporou a mudança na letra da música. Após diversas rodadas de cerveja, não havendo mais dinheiro para a bebida, encerrou-se o encontro, talvez um dos últimos momentos de consenso vivido entre músicos e compositores ranchistas na sede da escola. Mas isso é outra história...

CAP. 5