• Nenhum resultado encontrado

identidades e culturas na modernidade

5. cidade, migrações e (novas) identidades

Não fique de boca aberta, ó Zé, em cidade que for chegando

tem que tomar cuidado, Zé, tem que tomar cuidado...” ( Siba, Cd Mestre Ambrósio)

“A cidade não pára a cidade só cresce o de cima sobe, o de baixo desce

a cidade se apresenta o centro das atenções para mendigos ou ricos

e outras armações coletivos, automóveis

motos e metrôs trabalhadores, patrões policiais, camelôs (...) (CIDADE, Cd Chico Science)

Mas eu fui num forró num pé duma serra

nunca nessa terra vi uma coisa igual mas eu fui num forró

num pé duma serra

cumê quente, baiano sensacional rebeca véia do pinho de arvoredo espalhava baiano no salão o pandeiro tremia a maquinada eu via a poeira subir do chão hoje eu faço forró em pé-de-calçada no meio da zoada, pela contramão

eu fui lá na mata e voltei pra cidade de caboco eu sei minha situação (...)

rebeca véia não me abandona zabumba treme - terra come o chão na hora que o tempo desaparece

transforma em pé-de-serra o calçadão” (Pé-de-calçada. Cd Mestre Ambrósio)

Entre as formas cotidianas de sociabilidade produzidas por migrantes rurais em bairros de periferia podemos destacar as festas populares. As festas brasileiras, como um modo próprio de expressão da nossa identidade (Amaral, 1998), articulam antigas e novas formas de sociabilidade entre diversos grupos religiosos, étnicos, culturais, migrantes ou não migrantes, urbanos ou rurais, que compartilham a experiência, mesmo que fragmentada, de viver a cidade. As festas brasileiras – nacionais, regionais ou locais – nos permitem colocar em questão algumas nuances do que pode significar, para os sujeitos, ser brasileiro, migrante, nordestino, nortista, gaúcho, caboclo, católico ou

filho-de-santo; colocar em cheque as ambigüidades e contradições desse processo de

construção da(s) identidade(s) brasileira(s) dentro da ambigüidade própria das tradições

híbridas e culturalmente mestiças (DaMatta, 1998: 81) que as grandes metrópoles

brasileiras não conseguem eliminar, e que se tornam cada vez mais recorrentes em espaço urbano.

As três citações acima são letras de músicas que têm como horizonte o universo dos migrantes rurais em direção à cidade, recém-chegados ou nela estabelecidos, mas claramente diferenciados dos citadinos em sua condição de outsiders ao mundo urbano. O primeiro refrão da música de Mestre Ambrósio coloca o dilema do encontro com a cidade: entre a perplexidade e o estranhamento iniciais, o imediato desejo de fazer parte (o ponto de chegada) e o receio diante da novidade (aqui sinônimo absoluto de modernidade), a incerteza acerca de como agir para ser bem-sucedido e conquistar a cidade.

Especialmente aos migrantes rurais, a cidade ao mesmo tempo fascina e assusta, pela mobilidade e velocidade dos signos sonoros e visuais. A letra da música

Cidade, de Chico Science, fala dessa mobilidade cotidiana do urbano que nunca pára de

crescer, e ao crescer nunca pára de produzir diversidade e aumentar as contradições e desigualdades entre seus habitantes, dos abastados moradores da avenida beira-mar aos habitantes dos mangues e das diversas favelas das periferias distantes do litoral.

A leitura ácida da cidade nordestina se enriquece através dos mais diversos sons e ritmos melódicos presentes na música contemporânea local, cotidianamente (re)criados, produtos de uma mistura híbrida que inclui desde o maracatu rural e urbano, o frevo e o mangue beat, o forró mais tradicional, de âmbito rural, em oposição ao forró de feição mais urbana, denominados por alguns, inclusive pelo autor da música gravada pelo grupo Mestre Ambrósio, de forró pé-de-serra e forró pé-de-calçada. A letra da terceira música fala dessa passagem através de um “momento paradigmático” de mudança de produção da música tradicional nordestina – o forró – tocado com instrumentos tradicionais e dançado de forma prazerosa, fazendo a poeira subir do

chão, numa autêntica festa de caboco, realizada num tempo e num espaço agora

perdidos (o meio rural, um mundo verdadeiro, em um tempo que existiu de fato no passado), para o mundo atual – a cidade – um mundo caótico, confuso, barulhento, cujas ruas pertencem aos carros em movimento, e não aos homens que tentam produzir sua música nas calçadas; um mundo que não pode ser possuído ou apropriado pelos migrantes, a não ser de um modo fragmentário e incompleto.

Entretanto, os dois momentos aparentemente separados se interpenetram – temporal e espacialmente – através dos sujeitos, de seus instrumentos musicais e de sua arte, através da qual o mundo rural e sua música são introduzidos, encenados, reproduzidos na cidade que será – quem sabe um dia – por eles conquistada.

“Os ares da cidade libertam!” O aforismo dos camponeses da Alemanha

pré-moderna, habitantes do lado leste rio Elba, 34 citado por Fortuna (1997), expressaria, segundo o autor,

“o desejo de romper os vínculos jurídico-comunitários, religiosos e de trabalho (...) quebrar tais vínculos e alcançar a cidade (...) era uma aspiração radical (...) Por ela se garantia a dava forma ao desejo de se tornar outro. Antecipava-se o tempo, mudava-se de lugar, enfim, construía-se uma nova identidade” (:127).

O desejo da cidade implicaria, por sua vez, em uma dupla radicalidade:

“por um lado decorre do fato de pressupor que a fuga para a cidade romperia por si os rígidos sistemas de construção de identidades típicos da era pré-moderna, quando as identidades e as respectivas cosmologias eram predeterminadas e impostas do exterior, a partir de sistemas de mitos e crenças orientados por princípios religiosos, políticos e de parentesco. Por outro lado (...) o ambiente sócio-político pré-industrial não contém a plasticidade que há de permitir à cidade da era moderna e industrial tornar-se um espaço de libertação pessoal e coletiva, no sentido de transfiguração das identidades de origem dos sujeitos... Para que os ares da cidade se tornassem libertadores foi preciso [o] despontar da modernidade e as correspondentes transformações civilizacionais” (:127-128).

Entretanto, a percepção da cidade por seus moradores não é abrangente, mas parcial e fragmentária; ao invés de “um objeto percebido (e desfrutado) por milhões de pessoas

de diversas classes sociais”, a cidade é o produto de muitos construtores que alteram o

tempo todo sua forma e sua estrutura que, mesmo relativamente estável, está sempre se modificando nos detalhes; os sujeitos têm consciência “da feiúra do mundo em que

vivem” e são bastante eloqüentes acerca “da sujeira, da fumaça, do calor, do congestionamento, do caos e da monotonia das cidades”, embora praticamente não

tenham “consciência do valor potencial de entornos harmoniosos da cidade, um mundo

relanceado de passagem, como turistas ou viajantes ocasionais”, de modo que

34

No século XIX, a estrutura agrária do lado oriental do rio Elba estava baseada em latifúndios de regime semifeudal, conforme estudos de Weber, que identificou, na passagem do século, a existência simultânea de estruturas arcaicas e formas modernas de organização. Cf. Silvio Sant’Anna: Introdução a “A Ética

“perder-se completamente pode ser uma experiência rara para a maioria das pessoas que vivem na cidade moderna (...) a cidade é um símbolo poderoso de uma sociedade complexa e uma cidade altamente imaginável deve ser evidente, legível ou visível (Lynch, 1999: 2). Metáforas modernas e pós-modernas da cidade, construídas nos séculos XIX e XX (para não recuarmos mais), são bastante elucidativas do medo e do fascínio que esta exerce sobre todos. A cidade, esse amontoado de bairros que se cortam, se recortam, se atravessam e que também marcam – como as nações – formas territoriais de identidade e de afirmação das diferenças, é o locus principal dos processos de etnicidade, de reivindicações de identidade. Como afirma Agier, determinados espaços da cidade funcionam como fontes de identidade. 35 Ao mesmo tempo, a metrópole pode não se limitar ao espaço local, territorial ou mesmo nacional de um país, podendo ser também um espaço extraterritorial, transnacional, espaço de cosmopolitismo e desenraizamento, lugar por excelência do cidadão do mundo.

O conceito de sociabilidade, como forma lúdica, igualitária e afetiva de associação, é um conceito extremamente útil para entender, no contexto da cidade, as redes de relações estabelecidas pelos migrantes, assim como os processos de construção das identidades em espaço urbano, com base na localidade do bairro. A presença cotidiana do sujeito migrante na cena urbana, de suas falas e modos de representação, nos leva à questão das identidades constituídas na relação com a cidade e seus habitantes.

A presença de migrantes na cidade é um fato dominante no mundo contemporâneo. A cidade representa o desejo, o destino, o devir dos migrantes rurais que

“atravessam a cidade em muitas direções e instalam, precisamente nos cruzamentos, suas barracas barrocas de doces regionais e rádios de contrabando, ervas medicinais e videocassetes. Como estudar os ardis com que a cidade tenta conciliar tudo que chega e prolifera..: a barganha do provincial com o transnacional, os engarrafamentos de carros diante das manifestações de protesto [ou diante de uma procissão], a expansão do consumo diante das demandas dos desempregados (...)?” (Canclini, 1997: 20).

35

“As pesquisas sobre as significações relativas dadas aos espaços da cidade nos informam sobre as identidades urbanas [assim como] o estudo das sociabilidades nos informa sobre as culturas que estão na base do apego aos lugares urbanos e, ao mesmo tempo, sobre a reprodução ou a reinvenção dos laços sociais nos universos densos, abertos e heterogêneos das sociedades contemporâneas” (Agier, 1998: 45).

Essa imagem evoca a descrição de Vargas Llosa (apud Polar, 2000) do itinerário do migrante na cidade de Lima, quando encontra (melhor seria: quando se depara e se choca), ao sair da Biblioteca Nacional (espaço de saber localizado no centro da cidade), com a “indomável desordem plebéia” de uma rua “abarrotada e andina (...)

convertida num enorme mercado de vendedores ambulantes” (:229-300).

Essa desordem contrapõe o espaço da escrita (a biblioteca) ao espaço da

voz (a vizinhança migrante, falando quéchua em lugar do espanhol). Como demonstra

Polar, esse espaço abarrotado e andino é a rua ocupada por

“migrantes serranos que parecem não ter perdido níveis básicos de identidade, língua, vestuário, comida, mas que ao mesmo tempo (...) não podem deixar de atuar de acordo com os vigorosos e inéditos condicionamentos que a cidade acumula sobre eles” (:300-301). A referência aos sujeitos migrantes serranos do Peru contemporâneo aplica-se a diversas cidades latino-americanas e também ao mundo amazônico. Migrantes ribeirinhos, que não abandonam seu “falar caboclo”, movendo-se constantemente entre as cidades

através dos rios, entre os lugares – aparentemente fixos – de origem e destino e os não- lugares (Augé, 1994) de circulação contínua, ao mesmo tempo inclusivos e excludentes,

sobrepostos e antagônicos, deslocam-se pelo espaço urbano, aceitando o desafio de percorrer os pedaços e trajetos da cidade (Magnani, 1992), de decifrar seus labirintos, misturar-se aos signos sonoros e visuais que se interpenetram e se sobrepõem na cidade

híbrida, tentando não se perder completamente entre os excessos de significantes e a

aparente ausência de sentidos.

Estudos enfatizando as relações entre cultura e identidade, lugar e território, apontam a constante circulação de migrantes entre suas aldeias de origem e os grandes centros urbanos, demonstrando que, para esses sujeitos, os mundos rural e urbano não são mundos separados, mas totalmente articulados e mutuamente dependentes.

No caso dos migrantes peruanos estudados por Paerregaard (1998), há uma contínua circulação de pessoas, bens e serviços ligando as cidades às aldeias do interior, especialmente por ocasião das grandes festas em homenagem aos santos padroeiros, quando os migrantes retornam aos lugares de origem para viver a festa e reforçar os laços de solidariedade com seus parentes e conterrâneos, especialmente os também migrantes.

De um lado, aldeões e migrantes não formam grupos mutuamente exclusivos, mas estes funcionam como pontes entre os dois mundos em contato. Do outro lado, migrantes vivendo na cidade compartilham entre si um forte sentimento de identidade, para o que contribui a reinvenção urbana da festa rural da Candelária, uma tradição híbrida e moderna, um modo pelo qual os migrantes reterritorializam seu lugar de origem no espaço urbano (:397-408).

Na Amazônia brasileira, diversos estudos comprovam a intensa circulação de migrantes entre os lugares de origem e de destino, especialmente por ocasião das grandes festas dos santos padroeiros de suas cidades de origem, quando participam ativamente desses eventos. Articulando antigas e novas redes de sociabilidade, os migrantes borram as fronteiras entre os mundos rural e urbano, estabelecendo pontes permanentes entre esses mundos em conexão, conformando suas múltiplas identidades de ribeirinhos e citadinos (Alves, 1993).

Nesse contexto, os migrantes podem reconhecer-se numa experiência singular de pertencer à cidade grande, de serem cidadãos urbanos, modernos, cosmopolitas, sem perder definitivamente os laços com seus lugares de origem, ao mesmo tempo em que fabricam novos sentidos aos lugares urbanos (Augé,1994; Agier, 1998) existenciais, simbólicos e sociais. Ao se estabelecerem na cidade, ocupam os bairros de periferia, onde moram, mas também se apossam das ruas centrais, de grande circulação de transeuntes, alterando a paisagem de forma definitiva, criando espaços de hibridismo, sincretismo e mescla, e abrindo espaço para a produção de novas (?) identidades culturais, como veremos no próximo Capítulo.

CAP. 2:

À BEIRA DO RIO GUAMÁ: