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a identidade jurunense e as festas

2. o signo Jurunas: entre a festa e a violência

“Tem pessoas que preferem dizer que moram na Batista Campos, porque é um bairro mais de elite, e eu digo: o Jurunas pra mim é uma grande festa, o Jurunas é a minha alegria, o Jurunas é a minha grande festa. A esquina da Roberto Camelier com Fernando Guilhon, se você parar alí sábado de tarde você vai ver que aquele pedaço é o coração da festa do Jurunas, porque é carro-som, é alegria, é gente. Então, sabe? pra mim, como eu conceituo o Jurunas: é uma grande festa. Eu nunca penso no Jurunas nas coisas ruins, no índice de criminalidade, porque isso eu não posso condenar o Jurunas que quando sai as pesquisas no jornal Liberal, como saiu a última, dizem que Ananindeua é mais perigoso que o Jurunas, que o Marco é mais perigoso que o Jurunas, então por que o Jurunas tem essa fama? o Jurunas não tem que ter essa fama. Em todos esses anos que eu vivo aqui, eu nunca fui assaltada no Jurunas, já me assaltaram em outros bairros, no Jurunas não, então eu não posso reclamar do Jurunas”

(Suely Russo, moradora na Caripunas).

O Jurunas é, como já visto, um dos bairros mais antigos de Belém. O mesmo é tenso, diverso do ponto de vista cultural e com uma população que não apenas segue as tradições mas também introduz inovações de modo muito criativo. Além da questão espacial/territorial definida no Capítulo 2, nesse bairro o tempo é o do evento, da festa, da alegria, das mobilizações em prol das tradições, mas também do barulho, das tensões e da violência.

O signo Jurunas condensa diversos significados, recortando diversas dimensões da realidade: em primeiro lugar, é um bairro localizado na zona sul de Belém, à beira do rio Guamá, bairro secular, de pobreza estabilizada, como o bairro da Liberdade, em Salvador, estudado por Agier (1998) e, como este, adquire diversos sentidos que vão sendo produzidos por seus moradores num espaço de mediações entre o bairro e a cidade, recortando as segmentações espaço-temporais, de classe, gênero, etnia/raça, lugar de origem, lugar de moradia, entre outros.

O bairro tem sua origem toponímica em um grupo indígena de lingua yudjá, que tem uma história antiga de migração e deslocamento pela região do baixo Amazonas. 100 Sua população é constituída em grande parte, como já vimos, de migrantes de origem ribeirinha, que foram se localizando principalmente nas áreas mais próximas ao rio Guamá, no sentido centro-leste, em direção aos bairros da Condor, Guamá e Terra Firme, mas também circulando nas diversas ruas do bairro, seguindo as redes de parentesco e/ou de acordo com as condições econômicas.

Diversas associações existentes no bairro, antigas ou mais recentes, reforçam padrões de sociabilidade próprios, como agremiações carnavalescas, associações esportivas e de lazer, irmandades católicas e associações comunitárias, muitas delas articulando-se em redes mais amplas que alcançam outros bairros. Como já mencionamos, jurunenses são católicos em sua grande maioria e muitos freqüentam semanalmente as igrejas do bairro, mas o número de evangélicos cresce continuamente e hoje existem cerca de trinta igrejas evangélicas (Ferreira, 2001). Muitos freqüentam, também, casas espíritas e terreiros, tendas e searas de Mina-Nagô, Umbanda e Jurema.

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A presença de relações muito antigas entre as festas – religiosas ou profanas – e a política local, negociadas através das redes pessoais ou grupais, muitas delas mediadas pelos meios de comunicação, permitiu construir, junto com o processo de ocupação do bairro, imagens poderosamente eficazes de um bairro festeiro, de gente

alegre e otimista, que em diversos momentos chegam a suplantar as imagens da

violência, também constantes nos jornais locais, até que estas retornam ao imaginário da cidade através de novas manchetes, de modo que as diversas representações produzidas sobre o bairro circulam freqüentemente entre as imagens da festa e da violência.

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Os Juruna são conhecidos através de notícia histórica desde o século XVII, quando habitavam as zonas mais próximas da foz do Amazonas, pelo qual foram subindo até chegar ao rio Xingu, por onde continuaram subindo até alcançar o alto Xingu (século XX), em terras que depois seriam transformadas no Parque Indígena do Xingu (1960), onde disputaram com outros grupos, novos e antigos na região, o espaço de sobrevivência e manutenção de sua formas de existência. Reconhecidos como hábeis canoeiros (homens) e grandes tecelãs (mulheres), foram aculturados e cristianizados desde o século XVII, vivendo em missões e/ou trabalhando para seringalistas e outros patrões, quando aprenderam a manejar armas de fogo com as quais combateram em guerras próprias e alheias (Galvão, 1979: 62-63; Oliveira, 1970). Quanto à língua por eles falada, não há consenso absoluto; considerando-se que falavam a língua geral, foram classificados como um grupo tupi pertencente à família Yuruna (Rodrigues, 1986: 46).

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Registrados oficialmente junto à Federação Espírita, Umbandista e dos Cultos Afro-Brasileiros do Pará, encontramos um total de 50 terreiros, tendas e searas de Umbanda, Mina e Jurema no bairro do Jurunas.

Diversas imagens do bairro circularam e ainda circulam na mídia, reproduzidas em contextos específicos: bairro comunitário, onde vivem e convivem em contatos diuturnos, parentes, vizinhos e chegados, compadres e conterrâneos, através de extensas e intensas redes de relações pessoais; bairro perigoso, de vadios e desocupados, de bandidos e gangues, onde a violência está presente na vida cotidiana, e espreita a todos os moradores e visitantes; 102 bairro de trabalhadores de baixa qualificação, de vendedores autônomos, de mão-de-obra barata que pode ser aproveitada a baixo custo;

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bairro de ocupantes-invasores sem-teto, que enfrentam a polícia, desrespeitando as leis e o direito constituído; bairro de eleitores-cidadãos, cujas vozes e votos têm um peso considerável na política local; bairro de antigas tradições festivas, de batuques e bumbás, do carnaval e festas juninas. 104

Mas o bairro é também um grande mercado de trocas de bens materiais e simbólicos, um espaço de circulação de pessoas, saberes, dádivas e dívidas, enfim, um espaço de circulação de capital social e simbólico (Bourdieu, 1999: 67-69;73-79), um espaço de “encenação da vida cotidiana”, espaço público onde a vida cotidiana acontece (de Certeau, 1996: 38). O Jurunas é, ao mesmo tempo, um bairro cultural, de espaços de inovação e criatividade (Costa, 2000) e um território cultural, onde se produzem estilos de vida próprios (Lull, 1998), de sociabilidades e tradições festivas (Costa, 2002), que permitiram atribuir ao bairro um ethos festeiro, ao lado das imagens de violência que têm estado freqüentemente associadas ao bairro em seu processo de ocupação e urbanização.

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PIVETES INFERNIZAM O JURUNAS. Uma quadrilha de pivetes, cujo mais velho tem 16 anos, está semeando o terror no Jurunas. A polícia já não sabe que tática usar para por fim à ação dos pequenos bandidos. Ninguém escapa da investida do bando e muitos moradores, com medo, colocam à venda suas casas”. O Estado do Pará, 01.02.1980, p. 1.

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UM BAIRRO INTEIRO EM FESTAS RECEBE JUBILOSAMENTE A PRESENÇA DO CHEFE DE ESTADO. Sua Excia. o Sr. Interventor Magalhães Barata fala aos jurunenses: Iremos todos trabalhar, eu preciso de braços, eu preciso de trabalhadores. Este bairro precisa de concorrer com os seus braços, precisamos de gente para dar desembarque às mercadorias atulhadas nos porões dos nossos navios (...) É por isso que vou encarregar em cada bairro uma pessoa destinada a recrutar trabalhadores, cada um na sua especialidade”. O Estado do Pará, 16.03.1943.

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“JURUNAS. BAIRRO DOS BATUQUES, DOS “BUMBÁS”, DOS CORDÕES, DOS CASEBRES E VIELAS, DAS MATAS E IGAPÓS. Assim é o populoso bairro do Jurunas, à margem do rio Guamá onde, apezar do capim e da lama, vive um povo alegre e otimista. Falta tudo, menos a batucada...”. A Província do Pará, 1947.

Essa imagem de violência associada ao bairro foi construída de forma lenta mas contínua, ao longo do século XX, através dos destaques dados pelos jornais, a casos de brigas, agressões, queixas-crime de assaltos, roubos, furtos etc., com reforço para alguns espaços mais perigosos dentro do bairro. Um desses espaços perigosos era, como já visto, o perímetro localizado ao longo da rua dos Tamoios, da travessa do Jurunas até a margem do rio Guamá, espaço de fronteira com o bairro da Cidade Velha. De fato, conhecido no início do século XX como bairro do Ladrão, era também chamado de

trilho do carvão, termo associado à linha que transportava o carvão do rio Guamá para o

Gasômetro da cidade. Era, segundo um jornal local,

“um bairro de vida à parte dentro do Jurunas (...) Ainda hoje, no seio da geração que já não arregaça até os joelhos as calças pelo inverno, no trânsito daquele pedaço da rua dos Tamoyos que vai da travessa do Jurunas à beira-rio, é assim chamada a velha artéria que tem uma história interessante, movimentada, vivendo mesmo, em tempos que vão distantes, vida absolutamente sua, perfeitamente à parte na existência do bairro do Jurunas. Eleita naqueles tempos metrópole de uma parte hoje populosíssima da cidade, o bairro do Ladrão, à rua dos Tamoyos, a partir daquelas fronteiras que seus ‘donos’ lhe delimitaram, era o logar de Belém onde, malgrado sua pequena distância de Baptista Campos, pouca gente de outros bairros se aventuraria, isto ainda há cousa de 30 e poucos anos (...) O trilho do carvão, no descaso em que permanecia por aquelas eras, se transformara em valhacouto de vadios e desordeiros, pousada preferida de navalhistas temíveis até para os bambas do próprio Jurunas, que ali não se atreviam a penetrar (...). Nesses tempos (...) a meninada nascia e se criava crescendo sem preocupação de escola na sua maioria, corrompendo-se no exemplo cotidiano da malandragem, da rasteira, do gongo, da navalhada ou do cacete...”. 105

Essa imagem de violência foi reforçada na década de 1940, com destaque dado pelos jornais a outro desses espaços perigosos, a Estrada Nova – antiga Estrada do SESP –, 106 e consolidou-se na década de 1960, quando ocorreu intenso crescimento populacional da cidade de Belém, através de crescentes fluxos de migrantes, oriundos tanto do interior do Pará quanto de outros estados e regiões do país, como já vimos anteriormente.

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LUZ PARA A INFÂNCIA NO TRILHO DO CARVÃO. O Estado do Pará, 25.12.1940, p. 22.

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A partir da construção do dique da Estrada Nova, que represou as águas do Rio Guamá, houve um acelerado processo de ocupação dessa área, referida muitas vezes no jornal como “zona pobre” da cidade, com registros de brigas, agressões, assaltos e crimes de morte.

De 1960 até 1980, quando a população do bairro cresceu quase cem por cento, o estigma de bairro violento consolidou-se em definitivo. Na década de 1980, quando os jornais dedicaram-se acentuadamente à discussão da questão da violência urbana, as notícias sobre o bairro eram constantes e alarmantes, como nos casos abaixo citados:

“Os bandidos mostraram ontem, primeiro dia do ano, que estão com a mesma disposição do ano passado (...) fizeram 10 assaltos (...) o bairro do Jurunas caprichou para liderar a onda de assaltos:

1. na avenida Pedro Miranda (Pedreira)

2. na rua Conceição, próximo à Roberto Camelier (Jurunas)