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À BEIRA DO RIO GUAMÁ: um bairro em movimento

2. à beira do rio Guamá

Como um bairro que se desenvolveu à beira do rio Guamá, o Jurunas tornou-se desde o início de sua ocupação um espaço de estabelecimento e circulação e moradores das áreas ribeirinhas situadas próximas a Belém, especialmente cidades e localidades estabelecidas nos rios Guamá e Tocantins e seus afluentes, embora tenha atraído também moradores do baixo e médio Amazonas, do rio Pará e baía do Marajó. Migrantes vindos diretamente do interior, ou estabelecidos inicialmente no bairro da

Cidade Velha, participaram diretamente da construção do bairro, contribuindo em

grande parte para sua feição atual.

Em sua configuração atual, o bairro do Jurunas situa-se, ao mesmo tempo, próximo e distante do centro da cidade. Ao mesmo tempo em que não é caminho ou passagem obrigatória ligando o centro aos demais bairros de Belém, a não ser para alguns bairros também periféricos e contíguos (Guamá, Condor, Cremação), 56 comunica-se facilmente com os bairros mais centrais, através de amplas ruas asfaltadas, pelas quais pode-se chegar com certa facilidade, mesmo em um percurso a pé. Mas o acesso por via rodoviária não é o único e nem sempre foi o principal. Como uma cidade surgida entre as águas dos rios Pará e Guamá, ao longo de suas duas faces banhadas pelas águas, Belém possui uma estrutura formidável de portos, empresas e empresas- portos, estatais e privados, que tiveram uma importância crucial na dinâmica econômico-espacial da cidade e na vida de muitos moradores, especialmente na vida dos migrantes que foram se fixando próximo a essas áreas durante o processo de urbanização da cidade, no século XX, quando a cidade cresceu expressivamente pela migração.

Quem chega a Belém por via rodoviária não vê a cidade ribeirinha e quem mora em Belém e nunca visitou a orla, não faz idéia do mundo que aí pulsa em movimento constante, dorme e acorda, num vaivém ininterrupto de canoas e barcos, nos diversos portos em atividade. Esse relativo desconhecimento deve-se, em parte, à localização geográfica do bairro, no extremo sul da cidade, não sendo portanto passagem obrigatória para os bairros mais centrais, de tal modo que suas ruas ainda são pouco conhecidas por não-moradores. Só passam pelo bairro para chegar ao centro da cidade os viajantes chegados através dos portos localizados no bairro (do Açaí, da Casa Silva, Custódio, Pureza, Comercial, Boa Viagem, São Benedito e Mundurucus), que usam as ruas transversais ao rio (Conceição, Caripunas, Pariquis, Mundurucus,

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Para estes, o Jurunas funciona como passagem de acesso ao antigo centro comercial, através de dois caminhos principais: a avenida Bernardo Sayão (antiga Estrada Nova, paralela ao rio Guamá) e a travessa Roberto Camelier, corredor central e mais importante do bairro, que faz a comunicação com os bairros mais centrais (Batista Campos, Nazaré, São Brás), através de ruas transversais (Mundurucus, Pariquis, Caripunas) que atravessam a cidade do rio Guamá até o bairro de São Brás, onde se localiza a Estação Rodoviária, no início da avenida Almirante Barroso, a principal entrada e saída da cidade por via terrestre. Uma saída alternativa liga a avenida Bernardo Sayão à avenida Perimetral, do Forte do Castelo (ponto inicial da cidade) à UFPA e a outras agências institucionais localizadas nesta última avenida, cuja extensão deverá ligar, futuramente, a cidade à BR-316, rodovia federal que representa a única via de acesso à cidade de Belém.

Tamoios) para chegar aos outros bairros. A proximidade dos portos localizados no rio Guamá, ao longo da linha que acompanha a Estrada Nova, da Cidade Velha ao bairro do Guamá, garante ainda hoje aos moradores – migrantes ou não – as entradas e saídas por via fluvial, a mais antiga da cidade.

À circulação restrita de não-moradores do bairro sobrepõe-se a intensa circulação interna de moradores: a pé, em bicicletas, em carroças puxadas por animais, ou em veículos automotores novos ou usados, de todas as marcas e modelos, os jurunenses circulam nas diversas ruas, travessas e passagens diuturnamente; em direção aos mercados, feiras e supermercados do bairro e adjacências; à casa de parentes, amigos e vizinhos. Para as escolas, o movimento é contínuo, a cada turno escolar, de meninos e meninas. À noite, igrejas e bares ficam cheios, enquanto parte dos moradores dedica-se a gastar horas seguidas sentados à porta da casa, observando o movimento e conversando com os transeuntes conhecidos. De madrugada, antes do dia chegar, já estão apinhados os trapiches de viajantes, nos portos abarrotados de canoas e barcos, que chegam e saem lotados de pessoas e gêneros de todo tipo.

Destacam-se, nesse contexto, as atividades desenvolvidas nos inúmeros portos que existem ao longo da orla ribeirinha, sendo alguns deles portos de circulação comercial de passageiros e de produtos, outros de circulação de navios de grande calado, outros ainda de barcos de pequeno calado, para os mais diversos itinerários. Grandes empresas industriais e casas comerciais estão ligadas, através dos produtos que vendem e dos serviços que prestam, com as regiões do interior do estado, cujo comércio é facilitado pela circulação de produtos trazidos e levados das pequenas cidades para Belém ou de Belém para as pequenas cidades.

A avenida Bernardo Sayão, como já vimos, liga o centro antigo de Belém (Cidade Velha) aos bairros da Condor e Guamá e ao Campus da UFPA, num percurso de cerca de 7 km. 57 Ao longo desse percurso existem diversos portos, muitos deles pertencentes a estabelecimentos comerciais e industriais localizados na orla ribeirinha, que compram ou vendem produtos dos mais diversos tipos, que circulam entre a capital e as cidades do interior. Entre estes, destacam-se o Porto do Sal, na Cidade Velha, o

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A Estrada Nova, hoje avenida Bernardo Sayão, ligava a Cidade Velha ao bairro do Guamá, acompanhando um dique de concreto construído nos anos 40, para conter as águas do rio. Todo o pequeno espaço paralelo ao seu traçado, de ambos os lados da rua, foi rapidamente tomado por palafitas de madeira, ocupadas em parte por migrantes recém-chegados à cidade, como única opção de instalação definitiva ou mesmo temporária, em parte por moradores mais antigos que ainda não dispunham de espaço para morar.

Porto do Açaí, no Jurunas (Foto 1) e o Porto da Palha, no bairro da Condor, que

transportam passageiros e mercadorias. 58

Alguns desses produtos são comercializados em barracas de madeira, cobertas de telhas ou mesmo de lonas, nos espaços disponíveis do porto. Entre eles o açaí (Euterpe oleracea Mart.) é um dos mais importantes e chega, diariamente, à cidade para abastecer cerca de 50 pontos de vendas no bairro, em sua maior parte localizados ao sul, nas ruas mais próximas à beira do rio. Próximo a esses portos, existem diversos espaços de lazer e sociabilidade, constituindo um circuito de bares e casas de diversão, como o localizado ao lado do porto do Açaí, onde se destaca o Dancing Club Day and

Night, o setor de diversões noturnas que atrai moradores e visitantes oriundos das áreas

ribeirinhas próximas.

Em sua grande maioria, a população do bairro é formada por migrantes ou filhos de migrantes, oriundos do baixo e médio Amazonas ou das áreas ribeirinhas próximas a Belém: do rio Guamá e seus afluentes Acará, Moju e Capim (cidades de Acará, Bujaru, Igarapé-Miri, Moju, São Domingos do Capim); do rio Tocantins e seu afluente Pará (cidades de Abaetetuba, Barcarena, Baião, Cametá, Portel); da ilha do

Marajó (cidades de Soure, Breves, Chaves, Afuá, Muaná); de ilhas localizadas às

proximidades da foz do rio Amazonas (Caviana, Mexiana, ilha da Preguiça, ilha dos Macacos, ilha dos Papagaios), assim como do médio Amazonas (Alenquer, Gurupá, Monte Alegre, Óbidos, Oriximiná, Santarém).

Mesmo sendo, em sua grande maioria, migrantes ou descendentes de migrantes, 59 os pesquisados residem há muito tempo no bairro. Segundo dados obtidos através do Projeto Entender Belém, mais da metade dos migrantes chegou ao bairro entre as décadas de 50 e 80, período que corresponde, segundo o IBGE, ao momento de grande incremento populacional do bairro. 60

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Em geral, frutas regionais, carvão e madeiras, produtos procedentes do interior do estado. Cf. Chaves, 2000.

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Em cerca de 100 formulários aplicados junto aos estudantes da rede pública no bairro, obtivemos os seguintes dados acerca da origem dos alunos e dos pais: Filhos: nascidos em Belém – 46%; nascidos no interior – 53%; outros – 1%. Pais: nascidos em Belém – 20%; nascidos no interior – 76%; outros – 4%.

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Segundo dados oficiais, a população do Jurunas aumentou em 100% de 1950 a 1960, passando de 15.000 para 30.000 habitantes. De 1960 a 1970, cresceu quase na mesma proporção, passando de 30.000 para cerca de 50.000 pessoas e, em 1980, os 60.000 habitantes, população que permanece estável nos dias atuais. Atualmente é o 4º bairro mais populoso de Belém, com 66.823 moradores em 13.397 domicílios, e o 2º mais densamente povoado, com 29,28 hab/km², sendo o 1º o bairro da Condor, com 30,38 hab/km² (Anuário Estatístico do Município de Belém, 1998. v. 5. Belém: Secretaria Municipal de Coordenação Geral do Planejamento e Gestão, 1999, p. 39, 40, 45.

Especialmente a área mais baixa e próxima ao rio apresenta grande concentração de migrantes originários das cidades e localidades ribeirinhas citadas acima, enquanto nas áreas mais centrais do bairro, atualmente os espaços mais urbanizados e bem estruturados, com a presença de edifícios e um grande e variado comércio local, a presença de migrantes interioranos é equivalente à presença de migrantes de outros bairros, nascidos na capital ou em outras cidades da Amazônia ou de outras regiões do país.

Um survey realizado na avenida Bernardo Sayão, da Cesário Alvim ao Porto do Açaí, revelou uma estrutura complexa que inclui atividades comerciais, industriais, portuárias e residenciais, em um espaço exíguo paralelo à rua, ocupado, do lado da cidade, por pequenas casas de madeira que se comprimiam entre a estrada e um valão e, do lado do rio, por pequenos, médios ou grandes estabelecimentos comerciais, com a aquiescência ou simples indiferença dos poderes públicos quanto ao uso e apropriação do espaço próximo ao rio. Hoje, após intensa ocupação da área, os dois lados da avenida estão igualmente tomados por estabelecimentos comerciais, em muitos casos em espaços contíguos às residências ou mesmo compartilhando as funções residenciais e comerciais.

Destacam-se, entre outros: bares, lanchonetes, mercearias e restaurantes; salões de beleza, bancas de venda de açaí, frango, carne, verduras, farinha e carvão; sucatarias, armarinhos, bancas de apostas (jogo do bicho), pontos de venda de gás de cozinha; oficinas de sapatos, de vidros, de móveis, de baterias para carros e de eletro- eletrônicos; lojas de materiais de construção, madeiras, redes, confecções, produtos náuticos (cordoaria), produtos de umbanda, ração para animais, depósitos de bebidas, farmácias e igrejas pentecostais. As atividades portuárias estão presentes através de portos diretamente vinculados aos estabelecimentos comerciais, usados para receber ou escoar seus produtos, ou voltados exclusivamente ao transporte de produtos e passageiros.

A partir do Projeto Entender Belém, obtivemos dados gerais sobre condições de vida e trabalho, renda e lazer dos moradores do bairro. Segundo dados do Projeto, mais da metade (52,5%) dos moradores do bairro vive há mais de 20 anos no bairro, enquanto 12,3% vive há mais de 10 anos e apenas 20,9% há menos de 10 anos.

De modo geral, os moradores mais antigos e de origem migrante, apresentam baixa qualificação escolar e profissional, enquanto seus filhos adultos possuem maior nível de estudo, o que nem sempre corresponde a melhores condições de emprego/renda, embora em alguns casos específicos essa qualificação seja fundamental para o crescimento do nível de renda e para a melhoria das condições de consumo e reprodução do grupo doméstico.

Entre as atividades de trabalho declaradas, predominam aquelas ligadas a vendas de bens ou serviços, ou através do assalariamento dentro ou fora do bairro, recobrindo um leque variado de profissões masculinas/femininas, como segue:

Homens: açougueiro, autônomo, balconista, cabeleireiro, cobrador, comerciante, comerciário, eletricista, embalador, estivador, garçon, marceneiro, motoboy, motorista (ônibus, táxi), peixeiro, pescador, pintor, professor, segurança, servente, vendedor.

Mulheres: autônoma, balconista, cobradora, comerciante, comerciária, corretora de imóveis, costureira, doméstica, enfermeira, professora, promotora de vendas. A categoria vendedor/a apresenta o maior leque de opções: ambulante, de carros, de cosméticos, de churrasco, de peixe, de picolé, de produtos farmacêuticos, de açaí.

Apesar do predomínio de práticas de trabalho autônomas e de baixo rendimento sobre as atividades assalariadas e de remuneração mais elevadas, não podemos afirmar a existência de uma homogeneidade absoluta no bairro em termos de pertencimento a uma classe social específica, pois o bairro pode ser melhor descrito como um espaço heterogêneo, com áreas diferenciadas, algumas delas muito valorizadas por sua proximidade em relação ao centro da cidade, onde predominam modernos edifícios cujos moradores apresentam níveis de trabalho e renda mais elevadas que a média do bairro, e reproduzem práticas de circulação, consumo e lazer completamente separadas das práticas de consumo e lazer mais localizadas e identificadas com a maioria que vive no bairro.

Para os que declararam renda, mais da metade (51%) possui renda familiar de até quatro salários mínimos, 68% até seis salários, enquanto somente 7% ganham mais de dez salários, mas essa diferença aumenta quando relacionamos a renda familiar dos moradores à sua localização espacial. Comparando moradores da rua principal do bairro, a Roberto Camelier, com a rua mais próxima ao rio Guamá, a Bernardo Sayão, os dados são reveladores: das 18 unidades familiares residentes na Bernardo Sayão que declararam renda, nenhuma delas tem renda acima de seis salários, enquanto a metade tem renda interior a dois salários, 27% ganha até quatro salários e apenas 22% ganha até seis salários; na Roberto Camelier, das 20 unidades que declararam renda, 6 (30%) recebem mais de oito salários mínimos, enquanto a maioria (8) recebe quatro salários por mês.

Considerando-se o número de moradores por residência, verifica-se um predomínio de unidades domésticas compostas de até 5 pessoas (140 unidades, 63,6%), enquanto 74 unidades (33,6%) têm de 6 a 10 pessoas e apenas 6 casas (2,8%) tem mais de 10 moradores. Esse padrão se repete em outros bairros, assim como em diferentes classes sociais, confirmando uma tendência progressiva de nuclearização da família, independentemente da classe social. Entretanto, quando olhamos mais de perto, encontramos uma ampla variedade de categorias de residentes, de acordo com o tempo de residência, o tipo de organização familiar e as diversas fases do grupo doméstico.

Os moradores, em sua grande maioria, se afirmam católicos, embora com diferentes matizes e graus de participação e freqüência às práticas rituais das igrejas católicas (católico praticante, freqüente, assíduo, não-assíduo). Mas cresce cada vez mais o número de adeptos de diversas igrejas pentecostais, especialmente na parte mais próxima ao rio Guamá. Enquanto na área mais central do bairro (travessa Roberto Camelier e entorno), há um predomínio absoluto de católicos, na avenida Bernardo Sayão, a mais próxima ao rio Guamá, cerca de 50 % dos entrevistados se declararam católicos, enquanto os outros 50% se declararam crentes. Alguns afirmaram gostar de freqüentar tanto igrejas católicas quanto templos protestantes. Alguns, embora se declarem católicos, costumam freqüentar tanto igrejas católicas quanto terreiros de