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À BEIRA DO RIO GUAMÁ: um bairro em movimento

3. um bairro em movimento

O Jurunas é, como já vimos, um dos bairros mais antigos de Belém. A Câmara Municipal de Belém, através da Lei Municipal 7806/96, estabeleceu as fronteiras e limites dos atuais 71 bairros de Belém, entre os quais o do Jurunas, que

(...) compreende a área envolvida pela poligonal que tem início na intersecção da margem direita do Rio Guamá com a projeção da Rua Cesário Alvim, segue por esta até a Rua Tupinambás, flete à direita e segue por esta até a Travessa Quintino Bocaiúva, flete à direita e segue por esta e por seu prolongamento até a margem direita do Rio Guamá, flete à direita por esta até o início da poligonal. 61

Esses limites oficiais misturam-se aos marcadores reconhecidos pelos moradores, dos quais os mais importantes são: a avenida Roberto Camelier, rua tipicamente jurunense, além da qual, para cima, começa a zona de fronteira com o bairro chic de Batista Campos. As ruas dos Tamoios e dos Mundurucus, importantes transversais que levam diretamente à “praça da fronteira” 62 e às proximidades do shopping Iguatemi (para o qual se vai também seguindo em linha reta pela Roberto Camelier, até o seu início, subindo depois a rua Conselheiro Furtado até a rua Padre Eutíquio).

Para o exterior, muitos se identificam como moradores do bairro do Jurunas, bairro alegre, festeiro, popular, em oposição a outros bairros como o de Batista Campos, de gente rica e orgulhosa. No interior dessa identificação geral, aparecem diversas fronteiras imaginárias, dadas pelos nomes e limites de certas ruas, lugares, setores ou sub-bairros (Limoeiro, Laranjeiras, Radional, Vietnã, Coréia). Esses setores localizam- se em áreas mais periféricas ou intersticiais, e se opõem estruturalmente à área mais central, onde se localiza a avenida Roberto Camelier, antiga travessa dos Jurunas, considerada a avenida Paulista dos jurunenses, onde se destacam diversos signos da modernidade urbana: a Chefia de Polícia, o Mercado Central do bairro, a principal escola pública do bairro (Camilo Salgado), a igreja-matriz (Santa Terezinha), edifícios e lojas comerciais.

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Lei 7806/1996. In: Diário Oficial do Município de Belém, Belém: Câmara Municipal, v. XIX, n. 8325, 7.08.1996. p. 1.

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Praça Batista Campos, um dos mais centrais e mais valorizados logradouros públicos da cidade, pela ótica de um morador do bairro do Jurunas, o que é corroborado inclusive pela mídia local.

Seguindo pela Roberto Camelier, agora em sentido contrário e para baixo, através da rua Conceição (hoje Fernando Guilhon), chega-se à área considerada menos nobre pelos moradores “de cima”, e referida por alguns deles como a “mais perigosa do

bairro”, embora seja uma das mais freqüentadas e movimentadas, tanto em dias comuns

quando nos fins de semana. Especialmente os moradores das áreas mais centrais do bairro referem-se à rua Conceição com uma rua muito agitada e perigosa, cheia de pessoas circulando a pé ou em bicicletas, em meio à bagunça generalizada da rua. Perguntados se costumam freqüentar esse trecho, ou se já foram ao Complexo do Jurunas, o Feirão, responderam que: “não conheço, nunca fui, não me aventuro por lá,

só vou até a igreja [Santa Terezinha], de lá não passo, pra dentro do Jurunas não entro de jeito nenhum”.

Para os moradores dessas áreas mais próximas ao Guamá, assim como para os viajantes que circulam através dos portos do Açaí, São Benedito e Mundurucus, entre outros, a rua Conceição é uma das mais importantes do bairro, por possuir “um grande

comércio onde tudo se vende e se compra, todo dia da semana”. As imagens

depreciativas são então substituídas por imagens de vida em movimento, de circulação dinâmica de pessoas em um grande mercado que inclui a rua e seus cruzamentos principais, onde se localizam supermercados, grandes lojas e pequenas vendas de alimentos e armarinhos.

Nela se localizam o Posto de Saúde, duas escolas públicas (Arthur Porto e Gonçalo Duarte), além de clubes sociais (Imperial, Florentina) e arenas de futebol muito freqüentados pelos moradores. No final da rua, no cruzamento com a Bernardo Sayão, localiza-se o Complexo de Abastecimento do Jurunas (Foto 2), freqüentado quase diariamente pela maioria dos moradores das áreas próximas. Logo depois, já na Bernardo Sayão, existem diversas casas comerciais muito antigas e conhecidas no bairro, entre elas a Casa Silva e a Casa Moreira, que vendem grande parte de seus produtos para clientes ou revendedores do interior, e que ostentam em suas fachadas os dizeres: Esta é jurunense (Casa Moreira) e A Pioneira do Jurunas (Casa Silva; foto 3), além de uma variedade impressionante de atividades comerciais e portuárias com cerca de quarenta portos comerciais, além de outros que são privativos de empresas estabelecidas à beira do rio Guamá.

As qualificações depreciativas dos moradores do bairro em relação a certas áreas ou setores considerados mais perigosos cruzam-se permanentemente, não havendo unanimidade absoluta sobre esses espaços, mas avaliações diferenciadas e mesmo opostas, de acordo com os lugares onde moram e costumam circular. Assim, as avaliações negativas dos moradores da Roberto Camelier, em sua área central e mais valorizada (do início até a rua Conceição, incluindo seus entornos), podem atingir a própria rua em que moram, já no seu trecho final, que começa – segundo a sinalização social e simbólica dos espaços pelos moradores – na rua Conceição e termina na junção com a Bernardo Sayão, em frente ao Iate Clube do Pará. 63

De acordo com a Lei Municipal 7806/96, já citada, esse trecho final da rua, recortado por travessas e becos estreitos e tortuosos, constitui hoje o bairro da Condor,

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que surgiu a partir da ocupação de terrenos alagadiços, nos anos 40 e 50, sendo grande parte de seus moradores migrantes oriundos do próprio bairro do Jurunas, que então se expandia até os limites da orla ribeirinha, tanto para baixo (direção sul) quanto para leste.

A maioria dos moradores da área nobre do bairro distingue claramente os dois trechos da rua como espaços separados, diferenciados e opostos. Entretanto, muitos moradores do segundo trecho (bairro da Condor), incluindo suas transversais, quando entrevistados, se declararam jurunenses e, quando perguntados sobre os limites oficiais do bairro, afirmavam que “[o bairro da] Condor também é Jurunas”, pois

“Sinceramente, eu não me considero condista (acho até difícil de dizer), eu tenho um pouco de tendência desse nome (Jurunas), de amor por essas coisas, até porque eu sou descendente de uma tribo do Amazonas (Parintintins), sou muito indígena também, então eu me considero jurunense” (Zezinho, 50 anos, morador na pass. Alan Kardec).

“foi só quando tivemos uma questão pra resolver na Polícia, fomos à Delegacia (localizada na Roberto Camelier) e ficamos sabendo que aqui não é Jurunas, é Condor” (Raimundo, 40 anos, morador na rua Nova).

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Clube de classe média fundado nos anos sessenta, hoje é alugado para a realização de festas de

tecnobrega, assim como outras casas localizadas na avenida Bernardo Sayão, como Corsário e Nabalada.

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O nome desse bairro deriva da presença, nos anos 20 e 30, de uma companhia aérea alemã instalada às margens do rio Guamá, no espaço onde hoje se localiza a praça Princesa Isabel (ver mapa 4).

“viemos de lá, meus pais tinham um comércio na [travessa de] Breves, e quando o comércio faliu, minha mãe comprou uma barraca aqui nesta rua, e construímos a casa. Aqui os terrenos eram mais baratos, mas ainda estávamos no mesmo bairro” (Dilma, 50 anos, moradora da rua Nova).

Diversas marcas espaciais se destacam como signos visuais da identidade jurunense no bairro da Condor, como por exemplo, pequenos restaurantes e lojas que ostentam os adjetivos jurunense em seguida ao nome do estabelecimento (como por exemplo o restaurante Sabor Jurunense, na rua Tambés). Entretanto, mesmo se afirmando jurunenses, os moradores do bairro da Condor também reconhecem a existência de espaços segmentados no bairro, dentre os quais o próprio bairro da Condor é classificado como um sub-bairro do Jurunas, contendo por sua vez outros setores ou sub-setores, alguns dos quais são vistos como mais perigosos, como o setor da Radional, o entorno do Iate Clube e o trecho não-asfaltado da travessa Honório José dos Santos, por serem muito recortados por becos e travessas, e considerados territórios de

gangues.

Voltando aos moradores das áreas mais centrais do bairro, todas as transversais que cortam a Roberto Camelier, a partir da Conceição, são vistas, sem exceção, como perigosas, especialmente a rua Quintino Bocaiúva, cortada por um canal que se estende do rio Guamá até o bairro de Nazaré, um dos mais valorizados da cidade. Mas quando solicitados a explicar porque temem esse trecho, se já passaram por alguma situação de perigo ou violência, os entrevistados referiram-se a casos de que ouviram

falar ou leram no jornal.

Passando para o outro lado da fronteira, os moradores das áreas consideradas mais perigosas também apresentam avaliações diferenciadas, ambíguas ou contraditórias sobre a questão da violência. Muitos falam da violência como algo concreto, que está presente e muito próximo, nas ruas onde moram e nos caminhos por onde passam todo dia, envolvendo brigas de gangues com troca de tiros, batidas policiais e prisões, especialmente nos horários noturnos e em finais de semana. Mas ao mesmo tempo em que descrevem casos reais de violência acontecidos no bairro, afastam a possibilidade da violência para fora da rua onde moram ou do entorno onde costumam circular e se relacionar com seus parentes, vizinhos, amigos ou chegados.

Se o medo generalizado da violência está presente nas falas de muitos entrevistados, pois “ninguém está seguro em sua própria casa [e] quando alguém tem

que sair de casa para trabalhar ou fazer qualquer obrigação, nunca sabe se vai voltar”

(Dilma, 50 anos), vários entrevistados afirmam não ter medo algum. É o caso de João Batista que afirmou que “já moro aqui há muito tempo, todos me conhecem e eu

conheço todos os malandros”, enquanto outro afirmou que “não existem garantias contra a violência [mas ] é preciso ter fé em Deus acima de tudo” [e também] ter amigos e ser conhecido no bairro (José, 62 anos).

Perguntados sobre quais seriam os lugares mais perigosos do bairro, os moradores das ruas que foram indicadas por outros como perigosas excluíram a sua rua dessa indicação e, muitas vezes, apontaram os limites do bairro mais distantes do seu

pedaço como os mais perigosos, indicando uma posição relacional e perspectiva na

construção das imagens e representações que circulam, de fora para dentro ou de dentro para fora, acerca da violência no bairro. Para os que olham de fora, (como alguns moradores da fronteira Batista Campos/Jurunas) “os bandidos estão à solta” em todo o bairro; para os moradores, há diferentes tipos de violência, inclusive aquela que resulta da ação da polícia, cujos métodos de combate à violência podem ser vistos como corretos, pois “já prendeu muitos dos bandidos e assaltantes mais perigosos do bairro” (João, 60 anos) mas costuma exagerar e também ser violenta contra qualquer pessoa:

“agora está um pouco melhor, pois os bandidos (da rua) estão presos, estão na cadeia, era bem pior quando estavam soltos, faziam o que queriam, não respeitavam ninguém, nem os próprios vizinhos” (João). “a polícia também é perigosa, se a gente tá no lugar errado na hora errada, como vai provar que não é bandido? Pode apanhar até morrer ou levar um tiro, que ninguém vai te socorrer...” (Jean, 28 anos). Segundo a maioria dos entrevistados, as ruas ou lugares mais perigosos do bairro são:

Timbiras e Caripunas, em seus trechos finais, próximos ao rio Guamá (ruas sem

asfaltamento e que alagam quando chove, inseguras pela presença de bandidos e gangues e pela ausência de policiamento); Conceição, em toda a sua extensão e especialmente no trecho próximo ao Guamá (muito trânsito e muitos ladrões); o canal

da Quintino (Foto 4), na fronteira Jurunas/Condor (territórios de gangues e bandidos); Estrada Nova ou Bernardo Sayão (perigosa por conta do trânsito e das gangues), cujo

canal foi totalmente ocupado por residências às quais se chega através de estivas (pontes de madeira). Foto 5.

Entretanto os moradores dessas ruas, quando entrevistados, sempre procuram ressaltar as vantagens de morar no bairro, independente do lugar onde moram ou apesar das dificuldades que tiveram no passado, pois, segundo eles, hoje “tudo

melhorou”. Com a urbanização crescente no bairro nos últimos anos, muitos dos lugares

antes considerados perigosos tornaram-se mais seguros para os moradores e transeuntes, como afirma um morador da rua Honório Santos:

“Antigamente ninguém podia parar de carro nesta rua que era logo assaltado, agora não, agora a senhora pode andar com segurança, porque os bandidos fugiram aí pra dentro [da Condor]” (Olivaldo, 41 anos).

Nas entrevistas realizadas, muitos se declararam moradores muito antigos, com mais de 50 anos no local. Essa antigüidade é evocada, na maioria das vezes, para falar de uma identidade de bairro. Morar há muito tempo no bairro, mais do que ter nascido nele, garante aos moradores, por suas vivências e experiências do passado aos dias atuais, a legitimidade de falar de dentro, isto é, como alguém que veio para o bairro “quando

nada existia” e participou das conquistas do lugar, lentas, difíceis, mas claramente

reconhecíveis e identificadas nas falas dos moradores, como nos casos abaixo citados: “O bairro hoje é melhor, quando viemos do [sic] Caripunas isso aqui era uma mata fechada, a companhia dos americanos abriu essa vala e abriu a rua, nos anos 40. Eu tirei esse pedaço aqui, fizemos uma barraquinha de açaizeiro, depois construímos essa [casa] aqui, já é a 5ª casa (Emiliana, 86 anos, moradora da rua dos Timbiras).

“Quando eu vim pra cá, aqui no [sic] Caripunas era um braço de rio e a mata, não era de ninguém, cada um que chegava demarcava seu lote e limpava o terreno; meu pai veio primeiro e limpou esse terreno que depois foi dividido entre irmãos e primos (...) meu pai limpou um pedaço de terra e fez uma casinha de madeira (...) aqui nada tinha dono, era só chegá e alimpá o terreno (...) o rio chegava até aqui, as canoa atracavam aqui mesmo, traziam peixe, verdura, açaí...” (Marciano Santos, 90 anos).

“Isso aqui foi o que caiu do céu, porque era capim, água, lama, tudo, num tinha rua, agora eu digo que tem tudo, eu falo porque eu vi, aqui entrava canoa, andava tudo por cima de ponte, aqui era lama, quem te conta sou eu, que moro aqui há muito tempo, nesse pedaço da Pariquis a mais antiga sou eu, pra nós que vivia aqui melhorou tudo, a Pariquis hoje é a melhor rua pra mim, só o que atrasa um pouco é que tem muito ladrão” (Neusa, 80 anos).

“Quando eu cheguei pra cá [Timbiras] isso aqui era ponte, e a gente a bom lutá, lutá, quando chovia enchia a vala, a gente deixava secá pra tirá água porque com a maré grande ninguém achava o cano da torneira pra tirá água, o cano era dentro da vala. Agora só tem essa vala, tirando a vala fica uma rua. Esta rua não vai pra frente porque o pessoal é muito escondido, Eu posso me mudá daqui pro interior, mas eu não troco meu bairro por nada” (Martinha, 91 anos).

Nesse conjunto heterogêneo de percepções, o Jurunas aparece, ao mesmo tempo, como um bairro diverso e único, com espaços diferenciados, muitos deles cindidos: entre os centros e os interstícios; entre os entornos das áreas nobres, mais verticalizadas e valorizadas, e as áreas mais periféricas, situadas nas fronteiras dos bairros ou sub- bairros mais afastados (Condor, Cremação); entre os moradores das casas e dos edifícios; entre os moradores das casas da frente e os moradores das casas dos fundos, os moradores das ruas e avenidas e os moradores das vilas, passagens ou becos, os moradores das áreas nobres e os moradores das zonas mais pobres, desenha-se um

gradiente espacial que, ao mesmo tempo em que inclui os mais diversos setores ou sub-

setores do bairro, também exclui esses espaços e seus moradores através de qualificações valorativas.

De acordo com as percepções dos moradores, dividimos o bairro em três grandes áreas ou setores, que chamaremos aqui de:

1. área mais valorizada (+ +): inclui a avenida Roberto Camelier, desde o seu início