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identidades e culturas na modernidade

2. hibridismos, sincretismos, mestiçagens

“Localizar-se epistemologicamente na zona de contato é localizar-se no terreno do que Fernando Ortiz (1940) chamou de transculturação, para desafiar os modelos simplistas da difusão cultural (...) a transculturação é inevitável (...) e imprevisível – ninguém pode controlar totalmente os signos” (Mary Louise Pratt, 1999: 33). As mestiçagens nunca são uma panacéia: elas expressam combates jamais ganhos e sempre recomeçados. Mas fornecem o privilégio de se pertencer a vários mundos numa só vida: Sou um tupi tangendo um alaúde...” (Serge Gruzinski, 2001: 320).

O termo hibridismo deriva do grego hybris = desmedida, significando a ultrapassagem dos limites entre o humano e não-humano e a conseqüente mistura entre diferentes espécies, violando as leis da natureza. O híbrido participa, ao mesmo tempo, de dois ou mais conjuntos, gêneros ou estilos (Bernd, s/d). O termo tem sido utilizado pela crítica pós-moderna, como também pelas ciências sociais, às vezes com uma certa equivalência a termos como mestiçagem, sincretismo e mescla cultural, às vezes tentando distinguir-se deles.

Segundo Victor Chanady a “mestiçagem funcionou como paradigma da

modernidade graças principalmente à obra de Gilberto Freire (Casa Grande e Senzala) que advogou a causa de uma América mestiça, mas predominantemente branca”, de

modo que o conceito de mestiçagem funcionou como uma cilada da modernidade posto que “sob a aparência do múltiplo se encobriu um projeto racista que previa a mistura

de raças, mas com a predominância da raça branca, e o branqueamento progressivo da população”. Assim, sob aparência de uma certa igualdade, o paradigma da mestiçagem

preservava seu conteúdo etnocêntrico da “desigualdade entre as raças” enquanto a pós- modernidade, ao optar pelo conceito de híbrido, estaria enfatizando “o respeito à

O termo foi consagrado na obra de Garcia Canclini (1997) para falar de processos de mistura produzidos na América Latina onde “as tradições ainda não se

foram e a modernidade não terminou de chegar” (:17). Para enfrentar a questão

principal que o autor se coloca, a da relação entre culturas híbridas e poderes oblíquos, o mesmo parte de três hipóteses:

a) a incerteza em relação ao sentido e valor da modernidade deriva não apenas do que separa nações, etnias e classes, mas também dos cruzamentos sócio-culturais em que o tradicional e o moderno se misturam; esses cruzamentos pressupõem estratégias de “reestruturação econômica e simbólica com que os migrantes do campo adaptam seus saberes para viver na cidade e seu artesanato para atrair os interesses dos consumidores urbanos, [com que] operários reformulam sua cultura de trabalho frente às novas tecnologias de produção sem abandonar crenças antigas e [com que] os movimentos populares inserem suas reivindicações no rádio e na televisão”;

b) a necessidade de ciências sociais nômades, cujo trabalho conjunto permitiria a circulação entre as diversas esferas ou camadas da cultura (massiva, popular, culta), com um novo olhar, que prepararia para enxergar melhor o contexto da modernização latino-americana e seus processos de hibridação;

c) esse novo olhar transdisciplinar sobre os circuitos híbridos pode iluminar processos políticos como a questão da coexistência de formas arcaicas e modernas de poder e permite, partindo da análise da heterogeneidade cultural, teorizar sobre os “poderes oblíquos” que misturam instituições liberais e hábitos autoritários, movimentos sociais democráticos e regimes paternalistas (:18-19).

Para entender a hibridação cultural das cidades latino-americanas, intensificada pela migração e outros processos de expansão urbana, Canclini aponta as formas sincréticas “que brotam de seus cruzamentos ou em suas margens”, em suas

zonas fronteiriças, passando pela arquitetura urbana (casas, museus, monumentos em

praças públicas), pela cultura visual dos signos (letreiros e placas luminosas) e demais formas de expressão das vanguardas estéticas e artísticas como sendo processos de “desterritorialização e hibridez pós-modernos” (:284; 328), e conclui que:

“hoje todas as culturas são de fronteiras (...) o artesanato migra do campo para a cidade; os filmes, os vídeos e canções que narram acontecimentos de um povo são intercambiados com outros. Assim, as culturas perdem a relação exclusiva com seu território, mas ganham em comunicação e conhecimento” (1997: 348).

A noção de hibridismo usada por Canclini recebeu diversas críticas, entre as quais a de que o autor estaria vendo na migração uma “celebração quase apoteótica da

desterritorialização” (Polar, 2002: 304) ou nivelando as profundas desigualdades

sociais a uma questão de simples diferença (Moreiras, 2001: 314). Segundo este autor, o uso da noção de hibridismo por Canclini como um “conceito mestre para o pensamento

social latino-americano e âncora epistemológica” para políticas culturais de defesa

contra “múltiplos processos trans-estatais que a nova configuração do capital

(capitalismo financeiro) tornou inevitáveis”, acabaria se transformando em um

programa político, no sentido de que expressava também o “desejo das novas elites

intelectuais de tomar o controle do presente” (:314). 20

Afirmando que as “reificações ou essencializações da etnia e reificações

que envolvem gênero ou identidade nacional não são boas do ponto de vista político porque parecem depender de uma inversão das posições hegemônicas contra as quais lutam”, Moreiras conclui que o conceito de hibridismo não pode ser usado “contra a reificação de identidades culturais, [pois] pode também produzir uma forma de reificação conceitual” (:313; 316).

Entretanto, para escritores contemporâneos como Rushdie (1998) e Bhabha (1998), que vivenciaram a situação diaspórica de estar nos entrelugares e de falar da fronteira, o hibridismo pode ser performativo, transgressivo, “uma força criativa, capaz

de abalar, desnaturalizar e mesmo derrubar as formações culturais hegemônicas”

(Friedman, 2001: 12).

20

Nos termos de Canclini “talvez o tema central da política cultural de hoje seja como construir sociedades como projetos democráticos (...) em que a desintegração seja elevada à diversidade e as desigualdades (entre classes, grupos étnicos ou outros grupos) sejam reduzidas às diferenças” (apud Moreiras, 2001: 314). Segundo Moreiras, Kraniaukas (1992) também criticou o caráter ideológico da noção de hibridismo, no sentido de que os “processos de territorialização (desterritorialização e reterritorialização) que estabelecem os parâmetros de hibridização cultural” podem funcionar como um “disfarce ideológico para a reterritorialização capitalista” e mesmo um “processo de naturalização da exclusão do subalterno” (apud Moreiras, 2001: 315-16).

Outros conceitos foram usados na tentativa de explicar as sociedades latino- americanas, como transculturação e heterogeneidade. O conceito de transculturação foi um neologismo criado por Fernando Ortiz na década de 1930 para falar dos contatos entre índios americanos, imigrantes europeus e africanos, de diversas etnias e culturas, transplantados ao Novo Mundo, onde se estabeleceram através de relações hegemônicas e subalternas. Segundo o autor

“o vocábulo transculturação expressa melhor o processo de transição de uma cultura para outra porque não implica somente em adquirir uma cultura diferente (vocábulo aculturação) mas implica necessariamente na perda, no desenraizamento de uma cultura anterior [e] significa a criação conseqüente de novos fenômenos culturais” (Ortiz, 1973).

Criticado por Moreiras como um “conceito-chave de uma ideologia de integração

social cujo objetivo principal era oferecer uma base imaginária para a construção do estado nacional-populista (...) que prevaleceu, na América Latina, de 1930 a 1980”, o

conceito de transculturação foi recentemente recuperado por Pratt (1999). Segundo a autora

“Localizar-se epistemologicamente na zona de contato é localizar-se no terreno do que Fernando Ortiz chamou de transculturação, para desafiar os modelos simplistas da difusão cultural. Grupos subordinados ou marginais não são simplesmente assimilados às culturas dominantes ou metropolitanas, dizia ele, mas fazem uma transculturação a partir das mesmas. Enquanto os povos periféricos não podem facilmente controlar tudo que emana dos centros decisórios, eles de fato determinam, em graus variáveis, o que vão absorver e com qual finalidade, quer se trate de objetos materiais ou idéias. A transculturação é inevitável – está na natureza do colonialismo que a colônia jamais possa reproduzir a pátria mãe – e imprevisível – ninguém pode controlar totalmente os signos” (:33-34). O conceito de heterogeneidade foi desenvolvido por Polar no final da década de 70 “em

dupla relação de antagonismo e suplementaridade com a transculturação” com a

função estratégica de realizar “a crítica da ideologia nacional-populista”. Para o autor, “do ponto de vista do que era heterogêneo em relação à articulação social dominante

(as etnias indígenas no Peru), a transculturação era um instrumento de subordinação social poderosamente ameaçador, e não de redenção” (cf. Moreiras, 2001: 313-314).

“se constrói através de vários eixos assimétricos, incompatíveis e contraditórios, de uma forma não-dialética. Acolhe não menos de duas experiências de vida, que a migração, ao contrário do que supõe o uso da categoria mestiçagem e em algum sentido do conceito de transculturação, não tenciona sintetizar num espaço de resolução harmônica (...) Contra certas tendências que querem ver na migração a celebração quase apoteótica da desterritorialização (...) o deslocamento migratório duplica (ou mais) o território do sujeito e lhe oferece a oportunidade de falar a partir de mais de um lugar ou o condena a essa fala. É um discurso duplo ou multiplamente situado” (2000: 304).

As inúmeras, recorrentes e válidas críticas aos conceitos de mestiçagem, hibridismo e transculturação não podem, entretanto, apagar a presença de mundos mestiços, visíveis na cena contemporânea, posto que a modernidade ocidental (para não falarmos em outras) construiu-se nessa relação histórica e geográfica de mundos em contato. Glissant (1996) retomou o conceito de mestiçagem, usado para pensar a interpenetração das culturas como formas híbridas e mestiças, para construir o conceito de crioulização, que ele distingue da mestiçagem no sentido de que a crioulização é um processo onde interagem o cultural e o lingüístico, com elementos heterogêneos e ambíguos e resultados imprevisíveis.

Imprevisíveis foram também para Gruzinski (2001) os resultados dos contatos culturais entre índios e civilizados que contaminaram o coração da empresa colonial européia. O autor usa o conceito de mestiçagem cultural para entender a aceleração e a intensificação das misturas no(s) mundo(o) contemporâneo(s), “a mistura

dos seres humanos e dos imaginários”, como um conceito capaz de dar conta das

ambivalências e ambigüidades resultantes de “séculos de enfrentamento entre invasores

europeus e sociedades indígenas, nos quais se misturaram colonização, resistências e mestiçagens” (: 42;15).

Cobrindo os cinco séculos de contato e luta entre europeus e ameríndios, com guerras e destruição de grande parte das culturas primitivas, o autor demonstra que esse contato produziu diversas formas de resistência ao colonizador, mas também diversas misturas ou mesclas culturais, de modo que a contaminação ou transformação das crenças indígenas gerou hibridações e mestiçagens, dando a feição do mundo atual.

Nesse sentido, em pleno processo de globalização ou ocidentalização, vivemos em

mundos mesclados e entre culturas mestiças. 21

Para entender como se produzem essas mestiçagens, é preciso ir além das categorias fixas de pensamento, para enxergar as zonas de fronteira, zonas de contato (Pratt, 1999: 27;31), zonas de penumbra, zonas estranhas, “emblemáticas dos mundos

intermediários” em questão (Gruzinski, 2001: 50). Essa postura exige abandonar as

concepções há muito estabelecidas de cultura e identidade, como categorias fixas que não deixam margem para perceber os espaços intermediários, os sujeitos multifacetados e as identidades e culturas em transformação (:51-52).

Do contexto da situação colonial ao contexto atual de mundialização da cultura, podem ser exaustivos os exemplos de mestiçagens culturais de todo tipo. Entretanto, nem sempre os seus diversos sentidos foram completa ou mesmo parcialmente esclarecidos pelos agentes envolvidos, apreendidos pelos autores dos diversos textos que os retrataram, interpretados pelos analistas que se debruçaram sobre eles. Como afirma Ginzburg (1987), há sempre um “resíduo de indecifrabilidade [em um registro escrito do mundo passado] que resiste a qualquer tentativa de análise” (:31). Mas isso não deve paralisar o trabalho da interpretação ou neutralizar o esforço analítico de dar sentido aos dados disponíveis, mesmo quando incompletos e refratários à análise.

Essa interpretação deve permitir, ao lado ou além dos limites conceituais fixados na tradição científica, que se considere tanto os eventos quanto os conceitos produzidos nas margens, nos interstícios, nas fronteiras das disciplinas acadêmicas rigorosa e poderosamente constituídas.

21

Indo além, o autor defende a tese de que “vários traços característicos das sociedades indígenas da

América provêm da península ibérica e não do distante passado pré-hispânico...” (2001: 26). No Brasil,

exemplos de sincretismos religiosos analisados por Mello e Souza (1995) e Vainfas (1992, 1995, 1999) enquadram-se no conceito mais amplo de mestiçagem cultural de crenças e ritos, conforme analisamos no Capítulo 5.