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PARTE I FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

CAPÍTULO 5 Educação Multicultural

3.2 A necessidade de mudança

Vivemos hoje num mundo complexo e plural, onde temos que aprender a viver e conviver numa sociedade multicultural em que a diversidade étnica, linguística, cultural e social é uma realidade. Não estamos apenas em pre- sença de diversidades individuais, mas de diversidades sistémicas, sociais e culturais emergentes das sociedades pluralistas que traduzem diferentes expectativas face à Escola e ao saber, ao mundo e ao futuro e no meio das quais teremos que viver. Devemos ter claro que, uma coisa é uma sociedade na qual existem diferentes culturas, e outra muito distinta, uma sociedade multicultural.

Em Portugal existe hoje, uma realidade social na qual estão presentes, fun- damentalmente, como consequência da imigração, uma disparidade de cultu- ras, mas tal não quer dizer que seja uma sociedade multicultural uma vez que só esta, a maioritária, tem a hegemonia na política, nos meios de comunica- ção, na economia e no ensino, sendo maioritária mas não a única.

É urgente aprender a apreciar essa diversidade, ou seja, “o outro”, não como objecto de educação, mas como um interlocutor no processo de comunicação e um parceiro de negociação e convivência. Neste sentido será longo o cami- nho que teremos a percorrer.

A Escola deve, então, ser um lugar de encontro onde se cruzam e se enrique- cem os diversos modelos culturais. Esta instituição é um espaço privilegiado

onde, frente às desigualdades exteriores como o trabalho, as relações sociais, entre outros factores, que esta não pode solucionar, nem intervir, mas pelo menos pode e deve proporcionar um ambiente de razoável igualdade prati- cando relações de intercâmbio e de enriquecimento cultural. Desta forma, deverá mais do que preocupar-se com a reprodução da cultura maioritária, ser a geradora da construção cultural.

Assim:

•o conhecimento das outras culturas torna-nos conscientes da nossa própria cultura, mas também da existência de um património comum ao conjunto da humanidade;

•compreender os outros faz com que cada um se conheça melhor a si mesmo;

• devemos cultivar, como utopia orientadora, o propósito de encaminhar o mundo para uma maior compreensão mútua, mais sentido de responsabilidade e mais solidariedade na aceitação das nossas diferenças espirituais e culturais” (Delors,1996, pp.42-44).

O conhecimento de outros modelos culturais contribuirá, assim, para o rompi- mento de falsas imagens que temos sobre determinadas culturas, etnias e gru- pos. Estas falsas imagens aparecem quando valorizamos unicamente a parte

superficial da cultura como costumes, comportamentos individuais, característi-

cas físicas e não a sua parte essencial como valores, crenças, linguagem e estrutura organizativa.

Não podemos esquecer que a escola, embora privilegiada, não é o único lugar de intervenção do interculturalismo o qual devemos entender como uma prática social vivida, o que obriga a pensar as relações culturais, dentro de um projecto pedagógico, mas também, dentro de um projecto social.

Constatamos que, hoje em dia, os organismos internacionais tais como ONU, UNESCO, OCDE, OIT; Conselho da Europa, as ONGs e os movimentos de renovação pedagógica, têm desempenhado um papel importante em relação às diferentes perspectivas de educação inter e multicultural.

Encontramo-nos envolvidos, tanto a nível nacional como a nível internacional, em processos de reforma educativa. Multiplicam-se “edifícios legislativos” um pouco por todo o mundo, de forma a dar resposta à complexidade crescente do ensino e da educação.

Fala-se da educação para os valores, para os direitos humanos e igualdade de oportunidades, tolerância e convivência, para a paz, educação inter/multicultural, educação ambiental e educação anti-racista, porém, todos os dias nos confrontamos com manifestações de intolerância, marginalização, estereótipos, preconceitos, racismo e xenofobia, na escola e na sociedade.

Isto leva-nos a questionar: como conciliar este viver social, complexo e plural, com a educação que se desenvolve na Escola? Como deverá gerir a Escola a diversidade?

Perante estas e outras interrogações, o desafio que temos que enfrentar torna- se cada vez maior e urgente reconciliar a Escola com as diversidades culturais existentes.

A interculturalidade é um processo em (re) construção que exige paz, habita- ção, alimentação, igualdade, justiça, liberdade, responsabilidade, sendo uma viagem em direcção ao outro que só acontece quando aprendemos a gostar de nós e superamos as barreiras entre o “nós” e o “outro”.

O interculturalismo deve atender às seguintes condições:

• reconhecimento explícito do direito à diferença; • reconhecimento de diversas culturas;

• relações e intercâmbios entre os indivíduos, grupos e insti- tuições das várias culturas;

• reconstrução de linguagens comuns e normas compartilha- das que permitam intercâmbios;

• estabelecimento de fronteiras entre códigos e normas comuns e específicas, mediante negociação;

• necessidade para os grupos minoritários de adquirirem meios técnicos próprios de comunicação e negociação para poderem afirmar-se e resistir à assimilação.

Embora existam algumas semelhanças, o interculturalismo diferencia-se do multiculturalismo por algumas variantes de interpretação.

Segundo Paulo Freire (1992), a multiculturalidade não se constitui na justaposi- ção de culturas, muito menos no poder de uma sobre as outras, mas na liber- dade conquistada, no direito assegurado de mover-se cada cultura no respeito da outra, correndo livremente o risco de ser diferente sem medo de ser diferen- te, de ser cada uma “para si”, como se fosse possível crescerem juntas e não na experiência da tensão constante, provocada pelo todo poderosíssimo de uma sobre os demais, proibidas de ser.

A finalidade da educação é formar o homem, formar todos os homens, reco- nhecer e valorizar, sem danificar, o projecto do outro. A escola tem que com- preender que a cultura dominante não é a única – a cultura culta. Cabe-lhe implementar uma educação que abra um leque diversificado de aprendizagens, não reprodutoras, onde todos possam expressar, de um modo igual a sua cul- tura de origem.

Paulo Freire (1992) em Pedagogia de Esperança: Um Reencontro com a

Pedagogia do Oprimido, diz-nos que “ (...) é preciso que o(a) educador(a) saiba que o seu “aqui” e o seu “agora” são quase sempre “lá” do educando. Mesmo que o sonho do(a) educador(a) seja somente tornar o seu “aqui-agora”, o seu saber, acessível ao educando, mas ir mais além do seu “aqui-agora” com ele, ou compreender, feliz, que o educando ultrapasse o seu “aqui” para que este sonho se realize tem que partir do “aqui” do educando e não do seu. No mínimo, tem que levar em consideração a existência do “aqui” do educando e respeitá-lo. No fundo, ninguém chega “lá” partindo do “lá”, mas de um certo “aqui”. Isto significa, em última análise, que não é possível ao (à) educador (a) desconhecer, subestimar ou negar os “saberes de experiências feitos” com que os educandos chegam à escola...” É urgente ter a coragem de sermos nós

através do outro, descobrindo-nos na identidade, utilizar “a nossa estética da existência” e sabendo que a identidade é um risco para nós e para os outros.”

A Escola deve transmitir a necessidade que a educação apresenta de integra- ção de diversos saberes, valores e metodologias e que estes só se tornam sig- nificantes se trabalhados na prática.

Segundo o relatório da UNESCO organizado por Jacques Delors (2001, p. 48) “O respeito pela diversidade e pela especificidade dos indivíduos, constitui, de

facto, um princípio fundamental, que deve levar à exclusão de qualquer forma de ensino estandardizado.”

Segundo Carlinda Leite (2000) “Uma escola “para todos” e em que “todos são

diferentes” exige dos professores a capacidade e a flexibilidade para inovar na linha de um paradigma que proporcione o êxito e a mudança, sem despersona- lizar e aculturar”.

Uma escola que se proponha educar para a diversidade, é uma escola que estará exercendo a sua função “transformadora” para optimizar a qualidade de vida dos alunos. Esta instituição estará fundamentada em princípios de igual- dade, equidade, justiça e liberdade e terá como meta o desenvolvimento inte- gral dos alunos, partindo pelo aceitar a “diferença” como um valor e um referen- te positivo para mudar. A escola que assuma este postulado deve estar con- vencida de que os alunos provêem de diferentes culturas, o que os torna porta- dores de ideias, crenças e valores diferentes. De tal modo que os seus pontos de partida são também diferentes, no momento de tentar construir a cultura crítica. Este efeito deve ser interpretado como diversidade e não como desi- gualdade: “A diversidade não é um delito mas apenas uma riqueza” (Rendo, 1999, p.120).

O desafio da educação intercultural é o de corresponder às idiossincrasias do local e do universalismo global, a um só tempo. Para tanto, segundo Edgar Morin, é preciso que o objectivo maior de todo o ensino seja a condição huma-

na (Morin, 2001, p.15). Desta forma, o foco pedagógico não se concretiza no

sujeito histórico de uma nação ou grupo, mas investe naquilo que estabelece a igualdade na diferença. A condição humana não corresponde, assim, ao relato

da razão unificadora como no iluminismo, mas na condição bio-antropo-social que considera a diversidade e as diferenças na própria humanidade. É uma espécie de eco-humanismo.

Edgar Morin chama a atenção, também, para a importância do ensino da com- preensão mútua entre os seres humanos, “quer próximos, quer estranhos”. Disso, de facto, decorre a necessidade de “estudar a incompreensão a partir de suas raízes, suas modalidades e seus efeitos. Este estudo é tanto mais neces- sário porque enfocaria, não os sintomas, mas as causas do racismo, da xeno- fobia, do desprezo” (Morin, 2001, p.17).

Segundo o mesmo autor, estes saberes (aponta sete), no seu conjunto promo- veriam uma antropo-ética, segundo a qual a humanidade deveria ser pensada a partir de uma cidadania terrena, como habitantes de um mesmo espaço, a terra-pátria.

Desta forma, a educação intercultural depende da construção de uma outra narrativa, distanciada das estratégias identitárias e atenta à igualdade na diver- sidade. Assim, é necessário estabelecer um novo “contracto social”, baseado não na igualdade (no sentido moderno), mas na alteridade, cujo sentido seja afirmado na ideia do outro e não no eu.

O desafio não é fácil e está posto na complexa tarefa de articular valores a par- tir de diferentes temporalidades que coabitam o espaço planetário, que articu- lam, num só movimento, o local e o global.