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PARTE I FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

CAPÍTULO 5 Educação Multicultural

5.1. Origens do fenómeno multicultural

5.1.3. Educação intercultural e multicultural

As expressões “educação multicultural” e “educação intercultural” têm significa- dos diferentes e são usadas com diferentes sentidos por diversos autores. A palavra educação multicultural é usada por Banks (1991) para referir progra- mas e práticas concebidas no sentido de contribuírem para a melhoria do ren- dimento académico dos grupos étnicos ou de migrantes e/ou instruir os estu- dantes dos grupos maioritários sobre as culturas e experiências dos grupos étnicos minoritários. Estão, portanto, subjacentes a esta concepção princípios educativos que:

•reconhecem a existência de uma experiência social diversificada; •procuram que a escola seja um lugar de sucesso para todos;

•consideram que este tipo de educação se deve dirigir a todos os alunos e não apenas aos que pertencem às ditas minorias;

•reconhecem a importância de um conhecimento mútuo das culturas em presença.

Estes princípios apontam para dois tipos de posturas diferentes entre si: uma que tem como objectivo principal melhorar o rendimento escolar dos grupos sociais, étnicos e culturais minoritários e outra que tem como objectivo fomen- tar, através da obtenção de conhecimentos sobre outras culturas, a compreen- são e a tolerância entre grupos diversos. Alguns autores anglo-saxónicos, tais como. J. Lynch. M. Gollnick & P. C. Chinn, M. Leicester, entre outros, têm tam- bém usado a expressão Educação Multicultural para mencionar a abertura à diversidade cultural, a promoção do respeito pelo diferente e o desenvolvimen- to da solidariedade entre grupos sócio culturais distintos. Por exemplo Gollnick & Chinn (1990, p. 31) alegam que a Educação Multicultural deve impregnar o meio escolar total, dirigindo-se a todos os estudantes desde os que pertencem aos grupos dominantes até aos grupos dominados e ter como objectivo:

•promover os direitos humanos e o respeito por aqueles que são diferen- tes de nós;

•promover alternativas de escolha de vida para as pessoas; •promover a justiça social e igualdade para todas as pessoas;

•promover a equidade na distribuição do poder e das rendas entre gru- pos.

Estes objectivos indiciam, como intenção deste tipo de educação, uma forma- ção para o viver e conviver com os outros e, simultaneamente, um meio que permita o acesso de todos ao exercício pleno de uma cidadania assente na oportunidade de usufruto das ofertas materiais e profissionais existentes na sociedade.

Quando recorremos a autores francófonos, e tal como tem sido apontado em trabalhos vários (Cortesão & Pacheco, 1991; Leite & Pacheco, 1992; Stoer, 1994), a expressão “multicultural” é usada para referir a aceitação passiva da diversidade, recorrendo-se à designação “educação intercultural” quando se quer realçar a interacção e o intercâmbio entre as culturas ou subculturas. Camilleri (1993, p. 44), relativamente ao emprego do termo “multiculturalidade” refere: “a simples pluralidade dos elementos em jogo, as situações de coexis-

tência de facto entre culturas ou subculturas diversas, assim como o estudo dos efeitos espontâneos desta coexistência”, e reserva a utilização da palavra

“intercultural”, “a partir do momento em que se preocupa com os obstáculos à

comunicação entre os portadores destas culturas, desde o reparar e o analisar destes impedimentos, até às tentativas para os fazer desaparecer”.

Trata-se, portanto, neste entendimento do multiculturalismo, não só de reco- nhecimento de modos de vida e valores diferenciados, mas também da exis- tência de um diálogo onde cada sujeito portador de uma cultura e que se valo- rize através de um conhecimento e reconhecimento cada vez maior de si e dos outros e que ajude a construir uma articulação entre todos.

Na nossa opinião, justifica-se assim, a utilização do prefixo “inter” como forma de realçar os aspectos interactivos, interpessoais e inter-grupais inerentes a esta atitude em educação. Secundamos uma posição semelhante à de M. Rey (1984, p. 13) quando afirma: “quem diz intercultural diz dando todo o seu senti-

do ao prefixo “inter”: interacção, mudança, abertura, reciprocidade, solidarieda- de objectiva. E di-lo também dando o seu sentido pleno ao termo cultura: reco- nhecimento dos valores, dos modos de vida das suas representações simbóli- cas às quais se referem os seres humanos, indivíduos ou sociedades, nas suas relações com os outros e na sua apreensão do mundo”. Também para Clanet

(1990, p.21), “o termo “intercultural” introduz as noções de reciprocidade nas

trocas e de complexidade nas relações entre culturas”. E nesta óptica, afirma,

que “podemos conceber “a interculturalidade” como o conjunto dos processos físicos, relacionais, grupais e institucionais gerados pelas interacções de cultu- ras, num quadro de trocas recíprocas e numa perspectiva de salvaguarda de uma relativa identidade cultural dos parceiros em relação”. Nesta interpretação, a educação intercultural pressupõe um processo de diálogo interactivo entre as diferentes culturas, que acreditamos ter efeitos, ao nível do respeito de cada sujeito, quer pelas suas raízes, quer pelas dos outros.

Nas linhas dos princípios que nos orientam, tomamos ainda, para o intercultu- ral, posições que secundam as teses de Camilleri e Perotti quando argumen- tam que o intercultural, bem conduzido, obriga os indivíduos a reflectirem sobre a sua cultura e impede-os de ficarem ‘imersos’ nela, levando-os a tomar uma atitude ‘emersa’ (Camilleri, 1992, p.44) e que esta educação visa “identificar o outro”, mas sobretudo “conhecer o outro na sua diferença e complexidade “ (Perotti, 1992, p.61). Consideramos, portanto, que a coexistência, nas escolas e nas salas de aula, de alunos portadores de culturas diversas, em vez de construir um obstáculo para o ensino, pode ser um factor de enriquecimento, pela reciprocidade que esta situação acarreta. Por outro lado, consideramos que a “educação intercultural não é somente o ensino de culturas, mas a aqui- sição de competência cultural” (Ouellet, 1991, p.119).

O que estamos a dizer é próximo da posição de McCarthy (1994, pp.55-68) quando analisa os discursos políticos em torno do multiculturalismo e neles identifica três perspectivas:

• a compreensão cultural – entendida como “a sensibilidade e o apreço pelas diferentes culturas (harmonia racial)”.

• a competência cultural – que espera que os estudantes das mino- rias desenvolvam a sua competência na “cultura pública” e nas “des- trezas e atitudes da sociedade branca dominante” sem rejeitar a herança cultural;

• a emancipação cultural – que propõe um currículo multicultural reformista capaz de gerar um efeito positivo nos auto conceitos dos alunos das minorias e impulsionar o seu futuro económico.

Esta última perspectiva, que se situa na postura curricular reconstrucionista e de um multiculturalismo crítico e de resistência, baseia-se entre outras, nas seguintes premissas: “ existe um desajuste entre o currículo escolar e as expe- riências vitais e origens culturais dos jovens, das minorias”; “as escolas desempenham um papel crítico na produção de oportunidades educativas e vitais diferenciadas”; “os educadores devem ajudar a modificar esta situação de desigualdade empreendendo uma reforma curricular multicultural” (McCarthy, 1994, p.65).

É pois, esta concepção de educação intercultural que merece a nossa atenção, por permitir não só uma compreensão das culturas em presença, como a aqui- sição de uma competência geradora de uma emancipação cultural. No fundo, não se trata de mais um tipo de educação, entre outros, mas também da sua contribuição para uma sociedade multicultural. É um entendimento do currículo que não faz dele o que Húsen (1998, p.149) designa por “currículo de turistas”, no sentido em que trabalha esporadicamente e de forma fragmentada temas da diversidade cultural, mas que, ao contrário, contextualiza essas especificidades culturais recorrendo a processos que permitam aprender a viver e conviver com os outros, um dos quatro pilares da educação para que aponta o relatório para a UNESCO para o século XXI (Delors, J, & al, 1996).

Estamos de acordo com os que alertam para a reflexão de uma pedagogia cen- trada apenas nas diferenças culturais poder gerar efeitos perversos e contribuir para a guetização.

Ouellet (1988) fala também do risco para a unidade nacional que pode advir das políticas de educação multicultural “as democracias ocidentais não podem

mais ignorar o facto do pluralismo conter germes de competição e mesmo de conflito relativos ao acesso ao estatuto social e aos recursos económicos pelo viés da educação” (Ouellet, 1988, p.113).

No entanto, situando-se o interculturalismo no espírito de uma democracia, onde não cabem a intransigência, o racismo e a xenofobia, ele não pode con- fundir-se, em nossa opinião, com o relativismo cultural absoluto, nem pode ignorar que as relações sociais sejam acompanhadas por situações de conflito. Segundo J. Sarramona (1994, p.12), se aceitássemos um relativismo cultural absoluto, a educação poderia resultar impossível quando colidisse com valores sociais de liberdade, de igualdade de toda a pessoa perante a lei, de não dis- criminação em função da crença, sexo e origem social, entre outros. Todos estes valores têm de ser fermentados na escola, ainda que possam chocar com algumas tradições culturais, como é o caso dos direitos da mulher, mas a forma de o fazer deverá ser a de respeitar cada contexto cultural”.

Em nossa opinião, o relativismo cultural puro, dentro do sistema escolar é ingénuo pois, como afirma Gimeno Sacristán (1990, p.146) “a escolaridade não deixa de ser um meio de aquisição de competências para participar na vida social, económica e cultural dominante”. Esta é, também, a posição que toma- mos quando secundamos opiniões que defendem o “bilinguismo cultural”, ou seja, o domínio da cultura de origem e da cultura de estatuto social mais reco- nhecido. É uma opinião próxima da de Banks (1986) quando considera que as crianças e os jovens dos grupos das minorias devem adquirir conhecimentos e desenvolver competências que lhes permitam participar na cultura nacional, regendo-se por ideias democráticas de justiça e igualdade social e quando, a este propósito, afirma ser necessário, muitas vezes, as crianças assimilarem componentes culturais que não faziam parte das suas culturas de origem, sem necessitarem, no entanto, de abandonarem as suas identidades culturais.

Nem sempre é pacífico optar por uma qualquer das designações que foram referidas (multi ou intercultural), pois embora alguns autores as usem como sinónimas, outros traduzem com elas entendimentos diferentes das posturas educativas e ideológicas, face às especificidades de ordem cultural. Pelas razões apresentadas, parece-nos importante referir que o conceito intercultural se encontra mais adequado para os tempos de mudança e de abertura que atravessamos, na medida em que implica “reciprocidade” e “troca na aprendi- zagem” na comunicação e nas relações humanas. As acções estruturam-se num diálogo intra-cultural e num diálogo entre-culturas, recorrendo por isso, ao desenvolvimento da capacidade de comunicação interpessoal e entre pessoas de culturas e de origem diversas. Acreditamos ser esta situação dialéctica, de comunicação, que gera a aquisição de um melhor conhecimento do “outro”, mas também de “si”.

Apesar desta clarificação conceptual, é importante ressalvarmos o alerta de Banks (1988) quando diz que muitos educadores utilizam estes conceitos num sentido tão amplo que a dificuldade reside em saber que grupos culturais são o foco primário de atenção, afirmando que há mesmo alguns onde o conceito é tão global que pode esvaziar ou desenfatizar preocupações orientadas para o problema do racismo e da discriminação racial.

Embora, subscrevendo as preocupações de Banks, pensamos que a educação intercultural encerra características que a tornam, simultaneamente, geradora de uma formação anti-racista, isto é, também o que se infere quando Lynch – ao definir este tipo de educação aponta como a “iniciação das crianças à acei- tação crítica-racional da diversidade cultural e à afirmação criativa de uma dife- rença individual e colectiva no seio de uma comunidade humana” (1988, p.15).

No entanto, para que tal ocorra, é necessário desenvolver práticas de um mul- ticulturalismo de resistência onde a diversidade, em si mesma, não seja vista como uma meta, mas sim afirmada como uma política de crítica cultural e de num compromisso de justiça social (Mclaren, 1997, p.155).

Esta parece ser a lógica urgente a incrementar nos sistemas educativos modernos, como consequência da crescente multiculturalidade que não pode

excluir-se mutuamente, sob pena de se transformarem os direitos de se ser diferente em enclaves culturais. “No terreno estritamente antropológico, assis-

te-se ao reconhecimento do tão falado direito à diferença, isto é, do direito que têm as pessoas de seguirem e de se construírem – sobre as suas afinidades específicas sócio-bio-psicológicas – caminhos divergentes de acordo com os ideais que perfilham” (Carvalho, 1998, p.151). Por isso é preciso uma formação

de professores interculturais, professores que possam contribuir para a cons- trução de crianças interculturais que, podendo ser diferentes, possam, no entanto, comunicar-se e respeitar-se. Professores que sejam capazes de pôr em prática pedagogias de divergência e não apenas de convergência.