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Parte II – Estudo Empírico

CAPÍTULO 6 Contextualização do Estudo

6.1. Caracterização do meio

A população que integra este estudo faz parte de uma comunidade, o tão conhecido “Tarrafal” – inserido no Bairro S. João de Deus, no Porto. Este bairro localiza-se no extremo norte da freguesia de Campanhã, a mais extensa em área e a segunda mais populosa com cerca de 45 000 residentes (dados de 1996).

Em termos geográficos Campanhã encontra-se delimitada, a norte pelo conce- lho da Maia, a sul pelo Rio Douro, a poente pelas freguesias de Paranhos e Bonfim e a nascente pelo concelho de Gondomar.

Cerca de um quinto da habitação social, existente no concelho do Porto, foi edificada nesta freguesia, principalmente no decurso dos anos sessenta e setenta, entre os quais se destaca o bairro de S. João de Deus, sendo esta freguesia considerada como “parente pobre” da cidade. Na verdade, e de acor- do com o Estudo da Incidência da Pobreza nos bairros de habitação social, realizado em 1999, pela Câmara Municipal do Porto, as freguesias onde a pobreza atingia valores mais elevados eram as da Foz do Douro, Aldoar e Campanhã, com taxas de incidência que rondam os 50% (Pimenta, 2001, pp 22-74).

É o bairro de habitação social mais antigo (1944), dos nove existentes na fre- guesia de Campanhã, sendo também um dos que apresenta maior densidade populacional (Pimenta e al, 2001, p.16). Em 2001, podemos encontrar num tes- temunho dado por um grupo de estudiosos da etnia cigana, que o agregado populacional que constituía o Bairro S. João de Deus era muito heterogéneo e multiétnico, contando com “cerca de 5000 pessoas, sendo a etnia cigana, a mais numerosa (delas), com cerca de 3500 pessoas” (Sousa, 2001, p.41). A sua edificação resultou de sucessivas intervenções construtivas que, obede- cendo a filosofias de construção e políticas de realojamento diversas, contribuí- ram para a diversidade, actualmente visível, ao nível da sua estrutura habita- cional.

Habitações unifamiliares constituem o núcleo habitacional mais antigo (bairro velho), tendo sido edificadas em 1944, de acordo com a filosofia que presidiu à construção de casas de habitação social, durante o Estado Novo, para alojar populações de baixo rendimento económico, provenientes de zonas degrada- das da cidade do Porto. Estas casas, ocupam uma pequena parte da área total do bairro – Ruas 1, 2, 3, 4, 5, 6 – aquela que, dada a configuração e distribui- ção das habitações, apresenta menor concentração populacional, revelando um melhor estado de conservação.

As construções em bloco, predominantes em número e área ocupada, foram construídas por fases: 1956, 1965, 1968, 1976, 1991,e 1994, de acordo com duas tipologias distintas de habitação social. Em 1956 ocorreu a transferência de responsabilidades, ao nível das políticas de habitação social, para o poder camarário. Desta forma, foram construídos os três primeiros blocos 1, 2, e 3, de 3 ou 4 pisos, sem áreas verdes, nem acessos privados, devido à necessidade de rentabilizar custos de construção, através da maximização do número de população alojada, a qual, na sua maioria, correspondia a famílias ciganas pro- venientes da localidade próxima do bairro – Areosa, onde estas se encontra- vam vivendo em barracas de pedra e tendas, em terreno cedido por uma enti- dade particular. Estas famílias tiveram de ser realojadas, neste bairro, devido à desapropriação do terreno em que se encontravam instaladas, para possibilitar a construção da Avenida Fernão de Magalhães (Meireles e Rodrigues, 1991, pp. 20-64).

A fixação destas famílias, naquela zona, encontra-se relacionada com a proxi- midade de vias de comunicação que ligam o Porto aos principais centros urba- nos do norte do país, bem como a Espanha, pela Galiza, facto que facilitava o acesso aos lugares de concentração de unidades industriais dos ramos têxtil, vestuário e calçado, produtos estes que permitiam ser adquiridos, pelos ciga- nos, e se destinam ao comércio ambulante e aos mercados de escoamento dos mesmos, dada a importância das feiras na economia de alguns concelhos da região norte.

Existe ainda, no bairro, uma estrada de 1895, que abre a possibilidade de comunicação com as diversas zonas da cidade e outra artéria, tipo travessa,

muito estreita e praticamente desconhecida, que une o bairro ao exterior e que é muito utilizada por traficantes de droga e toxicodependentes vulgarmente conhecida pela “Via do Calvário”.

As comunicações, entre o bairro e as restantes zonas da cidade, fazem-se através de transporte público rodoviário.

Numa das entradas do bairro deparamo-nos com uma linha de comboio activa, sem qualquer protecção, um largo e um muro onde se podem ver crianças e adolescentes a deambular, sem estarem a desenvolver nenhuma actividade concreta a não ser incomodarem os transeuntes, uma grande parte deles toxi- codependentes que ali se dirigem para ter acesso a estupefacientes que ali se comercializam.

As fases subsequentes de construção, até 1976, mantiveram a mesma tipolo- gia de construção, o modelo característico da generalidade dos programas de habitação social então postos em prática pela Câmara Municipal do Porto e destinavam-se, prioritariamente, a famílias desalojadas das “ilhas”, proporcio- nando o acolhimento, mas seguindo padrões de baixa qualidade, inseridos num sistema provisório de ocupação, por parte de realojados (Meireles e Rodrigues, 1991, pp. 43-54).

De acordo com versões de alguns moradores, o bairro seria ainda utilizado pela autarquia no quadro das medidas de repressão e controle social acciona- das relativamente aos moradores dos bairros degradados ou de habitação social, sendo apresentado como o local para onde eram coercivamente transfe- ridos aqueles que apresentavam comportamentos socialmente reprovados. Daí terão resultado as designações do bairro vulgarmente conhecidas como o ”Tar- rafal do Porto”, sendo o bloco H conhecido como o “bloco dos condenados”, no qual, segundo diversas versões, seriam alojados de forma compulsiva e a título primitivo os moradores que, nos bairros sociais de onde provinham, tinham infringido as normas que regulam o funcionamento dos vários bairros camará- rios da cidade.

Os edifícios construídos na década de 90, denominados “rosto novo” revela- vam já algumas preocupações com a qualidade dos acabamentos e materiais e

com o recurso a aspectos arquitectónicos favorecedores de maior privacidade. Cada apartamento já dispunha então de uma varanda própria, contrariamente ao que acontecia com os anteriores em que as varandas eram exteriores, ser- vindo de acesso comum às habitações dos prédios, tal como os corredores e escadas exteriores.

Em resultado dos sucessivos processos de realojamento e fixação, coexistem actualmente, neste bairro, três grandes grupos populacionais: um grupo forma- do por um conjunto populacional de origem nacional, não referenciado etnica- mente que corresponde ao grupo mais numeroso, distribuído entre o “bloco velho” e a área dos blocos de habitação;outro grupo de população cigana que, embora também possua nacionalidade portuguesa, é sobretudo identificado pela sua origem étnica e encontra-se maioritariamente concentrada na zona nordeste do bairro, nomeadamente nos blocos 1,2 e 3; e por último um grupo de população, de origem africana, na sua maioria cabo-verdiana, a qual cor- responde ao grupo menos numeroso e mais recente, em grande parte concen- trado nos blocos habitacionais denominados “rosto novo” (Meireles e Rodri- gues, 1991, pp-25-74).

O primeiro grupo é normalmente identificado pelos outros dois por recurso a designações como “portugueses” ou “senhores”.

Ao longo das várias ampliações este bairro acolheu uma população cada vez mais heterogénea de recursos económicos e culturais escassos. Tal contribuiu para a formação de guetos provocando estigmas sociais difíceis de transpor para aqueles que lá coabitam. Tal depreende-se facilmente quando se faz uma visita, sendo fácil constatarmos os motivos que o definem como o bairro mais problemático da cidade do Porto.

Dado o seu estado de degradação, a Câmara Municipal do Porto considerou prioritário a reabilitação urbana deste bairro. O plano de intervenção “arrancou” em Abril de 2002 e segundo o Vereador do Urbanismo Dr. Paulo Morais, a requalificação/reabilitação do bairro passa pela (…) demolição de alguns blo- cos de casas, a diminuição da densidade demográfica e a construção de novas vias de comunicação e equipamentos colectivos (…); existindo ainda a possibi-

lidade de (…) mudar o nome do Bairro” (Pinto, 2002, p.43). Desde o ano de 2004 está a ser alvo de intervenção, no âmbito do Projecto de Desenvolvimen- to Integrado Urban II, aprovado pela Comissão Europeia. O objectivo desta intervenção, não é apenas melhorar o aspecto do bairro, mas também torná-lo mais aberto e proporcionar à população residente, a tão desejada e esperada qualidade de vida.

Seria lógico dizermos que após o processo de reconversão tivéssemos um bairro com melhor aspecto, no entanto ao visitarmos o bairro de S. João de Deus, continuamos a deparar-nos com uma realidade indigna para um país civilizado. Apesar de uma parte das habitações já ter sido demolida, as que se encontram, ainda de pé, estão completamente degradadas, ao ponto de nas entradas existir uma linha de tijolos que parece indicar que ali já não devia morar ninguém. As escadas encontram-se sujas e sem iluminação, as portas partidas, sem janelas em muitas habitações. As paredes sem tintas com peda- ços de cal a caírem onde se vislumbram marcas de armas outrora utilizadas, salpicadas de “graffitis” e inscrições insultuosas à polícia. As caixas do correio são inexistentes, sendo visível apenas uma estrutura em madeira oca comple- tamente vandalizada. Tudo isto confere ao local um aspecto demasiado assus- tador que não parece pertencer à nossa realidade.

Os jardins são montes de entulho, bocados de betão partido, carros esmurra- dos (quase uma sucata), seringas e pratas no chão. O ar que se respira não cheira a flores, mas sim a água estagnada e esgotos que correm nas ruas, atravessando o bairro, devido à falta de saneamento. Também não existem espaços verdes e o lixo aglomera-se nas ruas.

Podemos ainda encontrar animais como, porcos, galinhas, ovelhas e cavalos a passear pelo bairro, morando em conjunto com as pessoas, dentro das casas, situação que nos causou alguma estranheza quando realizámos, “in loco” a recolha de elementos para a concretização deste estudo

Como não bastasse o cenário que atrás foi descrito, as crianças e jovens têm ainda que coexistir com inúmeros toxicodependentes, num estado muito degradante, que passam o dia a deambular pelas ruas tentando arranjar mais

um comprador para o dealer X ou Y (os capinadores), para que este lhes dêem, como recompensa pelo seu trabalho mais uma dose e, como há muito desistiram de viver, moram em barracas de zinco que eles próprios construíram em certas zonas do bairro, para não terem de se deslocar. A tudo isto só nos resta atribuir a classificação de cenário “aterrador”.