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A noção de escala (espacial e temporal) e o conceito de sistema

Altitude, exposição

3. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

3.3 A noção de escala (espacial e temporal) e o conceito de sistema

A leitura das obras mencionadas, na primeira parte deste capítulo, mostrou que a capacidade da cidade modificar as características da camada de ar que a envolve e interpenetra constitui-se num fato. Por outro lado, é outra questão se essas modificações constituem-se num problema a ponto de interferir na organização do homem nesse espaço. Daí a necessidade de tentar compreender o clima à luz dos dados levantados em campo e com o auxílio de ferramentas teóricas associadas aos conceitos de escala (espacial e temporal) e sistema, enquanto modelo de organização complexa.

Fundamentalmente, uma bacia hidrográfica é um sistema. Guerra (1993, p.48) a definiu como [...] “um conjunto de terras drenadas por um rio principal e seus afluentes”. Chama este autor, ainda, a atenção para os aspectos ligados à hierarquia das bacias (bacias principais, secundárias e terciárias) e o dinamismo dos processos erosivos, ligado às “modificações que ocorrem nas linhas divisoras de água sob o efeito dos agentes erosivos, alargando ou diminuindo a área da bacia”.

Coelho Neto (1995, p.95), assinala que

[...] As rotas preferenciais dos fluxos superficiais ou subsuperficiais definem os mecanismos erosivo-deposicionais preponderantes e resultam da interação dos diversos fatores bióticos (flora e fauna), abióticos (clima, rocha, solo e posição topográfica) e antrópicos (uso do solo), que compõem o respectivo ambiente de drenagem. Alterações na composição desses fatores podem induzir a modificações significativas na dinâmica espaço temporal dos processos hidrológicos atuantes nas encostas e, conseqüentemente, no trabalho geomorfológico [...]

Ressalta, ainda, a natureza interdisciplinar dos estudos hidrológicos diante da [...] “necessidade de buscar as bases para a previsão não apenas dos processos hidrológicos, mas também de outros fenômenos associados, como, por exemplo, a ciclagem de nutrientes, estabilidade de encostas e qualidade da água” [...].

As “modificações” no ambiente de drenagem, decorrentes das “alterações na composição dos fatores” conforme coloca a autora, corresponde a aquilo que para o clima Tarifa (1981) assinala como responsável pelas variações de temperatura e umidade nos ambientes investigados. De uma definição para outra, percebe-se um salto qualitativo imenso. A primeira traduz um caráter iminentemente hidrológico enquanto que a segunda, além desse aspecto, evidentemente,

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deixa transparecer a característica de totalidade, ou de um “todo” integrado, mais próximo da noção de sistema adotada aqui e discutida adiante.

Essas mesmas “modificações” levaram Botelho e Silva (2004) a estabelecer algumas distinções, entre bacias florestais, agrícolas e urbanas, notadamente naquilo que diz respeito ao ciclo hidrológico terrestre, após o contato da água com a superfície. As perdas de água numa bacia florestal, quando comparadas à outra recoberta por gramíneas, são iguais. Embora as perdas de solo sejam dez vezes maiores na segunda. Apontam, também, a baixa taxa de infiltração da água em solos após vários anos de cultivo, equivalente, em alguns casos, a 4,5% daquela verificada em área florestal sobre o mesmo tipo de solo. Nas áreas urbanas destacam o componente ligado ao escoamento superficial, e as possibilidades de enchentes, associada à ausência (ou quase) de infiltração da água, decorrente da impermeabilização da superfície por edificações e ruas e mudanças no traçado dos rios, como a sua retificação e diminuição da seção transversal, com a finalidade de livrar mais espaços para ocupação e escoar rapidamente o grande volume d’água.

Apesar dos aspectos negativos associados à intensa impermeabilização do solo, os autores apontam que [...] “Quando o grau de pavimentação aproxima-se dos 100%, esta passa a ter um efeito benéfico, já que não haverá mais solo exposto para atuação dos processos erosivos” [...]. Entretanto, dentro da proposta de bacia hidrográfica apresentada pelos autores (idem, p. 157) enquanto “unidade de análise e planejamento ambientais” onde [...] “é possível avaliar de forma integrada36 as ações humanas sobre o ambiente e seus desdobramentos sobre o equilíbrio hidrológico” [...], deixam de lado as implicações disso no balanço de radiação, tanto em áreas urbanas quanto rurais, a favor de uma maior disponibilidade de calor sensível e, portanto, de aquecimento do ar.

Casseti (1995, p.33) discute as implicações sistêmicas presentes no meio ambiente a partir da leitura do relevo enquanto suporte das derivações ambientais:

[...] tudo começa a partir da necessidade de ele (o homem) ocupar determinada área, que se evidencia pelo relevo [...] Assim, a ocupação de determinada vertente ou parcela do relevo, seja como suporte ou mesmo como recurso, conseqüentemente responde por transformações do estado primitivo, envolvendo desmatamento, cortes e demais atividades que provocam as alterações da exploração biológica e se refletem diretamente no potencial ecológico.

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Mais adiante (idem, p. 54) [...] “É, portanto na vertente que se materializam as relações das forças produtivas, ou seja, onde ficam impregnadas as transformações que compõem a paisagem.” Ao propor a vertente como categoria de análise, e pelo que se pôde apreender da leitura da obra a preocupação do autor vai além da geomorfologia, dois pontos merecem destaque: além das implicações sistêmicas nos estudos ambientais e/ou em bacias hidrográficas, há um claro referencial escalar espacial. A vertente corresponderia àquilo que Bertrand (1972) definiu como a menor unidade distinguível no terreno, ou algo próximo disso, correspondente às unidades de paisagem no nível do “geótopo”.

Monteiro (1975, p.136) também coloca como um problema por resolver essa questão que envolve a escala do objeto ou “nível de associação geoecológica”: [...] “Um geossistema, definido em grande extensão, pressupõe geofácies maiores que muitos geossistemas contidos em outros espaços geográficos” [...]. Ainda segundo o referido autor, os conceitos atribuídos por Bertrand (1972) aos diversos níveis de organização espacial (zona, domínio, região natural, geossistema, geofácie e geótopo), a partir de observações nos Pireneus, podem ser encontrados aqui no Brasil na forma de unidades espaciais consideravelmente maiores.

Nesse mesmo trabalho (Monteiro, 1975, p.137), o autor esboça um quadro, com base nas ordens de grandeza escalar de Cailleux e Tricart, das categorias taxonômicas do clima e, ao mesmo tempo, insere o clima urbano. Da leitura do referido quadro, percebe-se que o clima urbano define-se a partir da escala sub-regional e local, em direção ao microclima, que é a menor unidade perceptível no terreno, numa escala (em metros lineares) de alguns metros a poucas centenas de metros.

Em ordem decrescente, os espaços climáticos zonais responderiam pelas maiores unidades, definidas fundamentalmente pela latitude; o nível regional, pelos sistemas atmosféricos; o nível sub-regional responderia pelas diferentes fácies dos climas regionais, ou seja, fácies oceânica ou continental de um sistema atmosférico, condizente com a sua trajetória, desde o local de origem, ou pela imposição de uma macro-forma de relevo, como a cordilheira dos Andes; o nível local responde pelo espaço das metrópoles; o mesoclima por uma feição de relevo de maior vulto dentro da cidade, como o divisor de águas entre o rio Pinheiros e o Tamanduateí na cidade de São Paulo, ou mesmo bairros situados em metrópoles, cidades médias

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ou grandes, embora não atinjam o status de metrópole, definem-se nessa escala; no topoclima incluem-se as cidades pequenas e/ou o traço de relevo dentro de uma feição maior (uma vertente ou segmento de vertente com declividade ou exposição diferenciada), como naquele exemplo do divisor de águas entre o Pinheiros e o Tamanduateí; e, finalmente, o nível microclimático, onde se define a habitação em particular.

O mesmo quadro deixa claro que, ao passar de um nível escalar para outro, muda-se as “estratégias de abordagem”: os “meios de observação”, que incluem as imagens de satélite e cartas sinóticas, até baterias de aparelhos especiais no caso dos microclimas; os “fatores de organização”, relativo aos fatores (ou controles) de organização climática37; e as técnicas de análise.

Sobre a importância desse conceito para os estudos geográficos, Ribeiro (1993, p.288) destaca a necessidade de [...] “uma referência de valor arbitrada segundo critérios que interessam à compreensão de um fenômeno.”. Opinião também compartilhada por Conti (1995), ou seja, a adoção de determinados procedimentos é função da escala e das características do fenômeno a ser compreendido: [...] “a cada uma dessas ampliações, redefinimos não apenas as escalas do estudo, mas também os elementos ou fatores ou, em outras palavras, alteram-se os atributos e as propriedades de cada um desses sistemas espaciais do clima” [...]. Ribeiro (Idem, 1993) defende, também, que os [...] “estudos dos fenômenos relacionados com o comportamento da atmosfera são orientados no sentido da compreensão de sua extensão (espaço) e de sua duração (tempo). A definição da intensidade, freqüência e, finalmente, de uma tipologia climática dependerá, basicamente, da adequação da abordagem espaço-temporal com o conjunto de técnicas analíticas empregadas no processo da pesquisa e comunicação dos seus resultados”.

Isso conduz a uma proposta ligeiramente diferente daquela de Monteiro (1975), apoiada nas “ordens de grandeza”, subdividida em três níveis interativos: macroclimatologia, mesoclimatologia e microclimatologia. A nomenclatura clássica (zonal, regional, local, topoclima e microclima) não foi descartada e aparece diluída nesses três níveis.

37 É interessante notar que, quando se fala em organização, deve-se estar atento que não é só a

dimensão do objeto que muda, mas, principalmente, as relações dentro das quais se encontra envolvido esse objeto. A seguinte passagem, extraída de Paese e Santos (2004, p.7) ilustra bem isso: [...]

“estudando as relações entre a riqueza de grupos funcionais de espécies arbóreas e a estrutura da paisagem em 11 fragmentos de florestais no interior do Estado de São Paulo, verificou que, em escala menor, os padrões observados estavam relacionados à dispersão das espécies pelo vento e, em escala maior, à dispersão de sementes por animais, especialmente aves.” [...].

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As “regras” na definição dessa nomenclatura esboçam, também, a preocupação no sentido de definir o que seriam as “escalas superiores” e “escalas inferiores38”:

a) São consideradas escalas superiores àquelas mais próximas ao nível planetário e escalas inferiores aquelas mais próximas dos indivíduos habitantes da superfície da Terra; b) As combinações de processos físicos interativos numa escala superior resultam em modificações sucessivas no comportamento da atmosfera nas escalas inferiores; c) As combinações particulares de processos físicos nas escalas inferiores possuem limitada repercussão nas escalas superiores; d) O grau de dependência de radiação extraterrestre na definição climática é maior nas escalas superiores, enquanto que a influência dos elementos da superfície, inclusive a ação antrópica, vai-se tornando mais pronunciada na medida em que se atingem as escalas inferiores;

e) Quanto mais extenso o resultado de determinada combinação, maior será o tempo de sua permanência, sendo o inverso igualmente verdadeiro; f) A extensão de uma determinada combinação na atmosfera resulta num atributo tridimensional sendo, portanto, volumétrica a noção de extensão, em climatologia, e tendo como limite superior o próprio limite da atmosfera terrestre.

Retornando ao conceito de sistema, Gutjahr (1993, p. 5), embora traga em sua dissertação um título bastante sugestivo para a discussão que aqui se desenvolve ( “Critérios relacionados à compartimentação climática de bacias hidrográficas”), faz apenas uma breve menção quando toca na questão do clima como um sistema, ao considerar a [...] “importância de tomar-se a bacia como um todo” [...] e [...] “considerada unitariamente, apresenta inúmeras características fundamentais das quais podem ser destacadas as interações entre seus principais componentes” [...]. Mas quais as características e a natureza dessas interações? De que maneira elas intervém na estruturação do clima?

Armani (2004), cuja contribuição remete às questões associadas ao “ritmo” e à relação “controle-atributo” na definição de espaços micro e topoclimáticos numa bacia hidrográfica florestal (bacia B do núcleo Cunha do Instituto Florestal), não traz nenhuma discussão do que seria ou justificasse a utilização da bacia hidrográfica como unidade de análise. Evidentemente, no caso do referido trabalho, não se tratou de uma questão de escolha, já que a referida bacia é monitorada pelo Instituto Florestal e conta com uma série de instalações (o que, por sinal, facilita muito a vida de qualquer pesquisador).

Entretanto, a ausência dessa discussão leva a pensar se não poderia ter sido adotada uma vertente, o segmento de uma vertente, ou qualquer outra unidade de superfície para o desenvolvimento da pesquisa. Será que a escolha do “recorte espacial” também não guarda

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relação com aquilo que se quer demonstrar? Opinião compartilhada por Nunes (1998) ao apontar que [...] “A escala de abordagem é um dos aspectos mais importantes das ciências atmosféricas, definindo numa pesquisa não apenas a área39 e o período de abrangência, mas também as técnicas e os métodos a serem empregados em busca de seus objetivos”. Opinião também compartilhada por Conti (1995).

Ainda em relação ao trabalho de Armani (2004), deve-se destacar a metodologia, já que foi semelhante àquela utilizada por Jardim (2002) naquilo que diz respeito aos instrumentos utilizados (os mesmos tipos de sensores de temperatura e umidade - data-loggers), o período e o intervalo de monitoramento (de forma contínua, sem interrupção, em intervalos de ½ h, ao longo de semanas e/ou meses) e a construção dos abrigos (embora o modelo seja diferente daquele adotado por Jardim (2002), a construção dos abrigos é uma etapa importante nos trabalhos de micro e topoclimatologia).

Um dos aspectos, senão o principal, que cabe reter das obras mencionadas, continuação de uma discussão iniciada em trabalho anterior (JARDIM e PEREZ FILHO, 2004), diz respeito ao conceito de sistema. O próprio conceito de escala é fundamental para compreender a hierarquia dos sistemas, já que a natureza está estruturada em sistemas de sistemas, organizações menores contidas em organizações maiores e assim por diante.

Para Tricart (1977, p.19) o conceito de sistema é um instrumento lógico [...] “para estudar os problemas do meio ambiente. Ele permite adotar uma atitude dialética entre a necessidade da análise – que resulta do próprio progresso da ciência e das técnicas de investigação – e a necessidade, contrária, de uma visão de conjunto, capaz de ensejar uma atuação eficaz sobre esse meio ambiente.” [...].

De acordo com Morin (2002), um sistema corresponde a uma unidade complexa de um todo inter-relacionado. A organização contida num sistema assegura a solidez das ligações ao conferir certa possibilidade de duração apesar das perturbações aleatórias.

Essas “perturbações” correspondem aos componentes de “desordem” contidos em qualquer sistema, já que, quando se fala em “natureza” não se tratam de sistemas isolados. A “desordem” (descontinuidade espaço-temporal dos fenômenos, rupturas, catástrofes, acaso etc.) constitui o ingrediente básico das mudanças ou transformações num sistema. A “ordem”

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(recorrência ou freqüência dos fenômenos no tempo e espaço, padrões de arranjo espacial dos objetos etc.), por outro lado, confere uma relativa estabilidade ao sistema, ou seja, tempo suficiente para que possa absorver essas mudanças e, assim, reajustar-se às novas circunstâncias impostas pelo meio. À medida que as desordens são corrigidas, através de uma série de retroações, o sistema abre caminho para a sua continuidade e transformação (ajustes, evolução, adaptação etc.). Um sistema constitui-se para continuar existindo (essa é a sua função básica). A sua destruição virá mais cedo ou mais tarde. No entanto, a sua “destruição”, no mais das vezes, significa uma mudança de “configuração”, ou seja, o sistema inicial deixa de existir à medida que cede espaço, em meio às sucessivas transformações, para outros sistemas e para sistemas cada vez mais complexos.

Segundo Christofoletti (1979), os sistemas devem ter: elementos (partes ou componentes), atributos (qualidade ou propriedades dos elementos), inter-relação entre esses elementos, permeada por mecanismos de retroação positiva e negativa, e entrada e saída de matéria e energia. O produto das transformações ocorridos no interior do sistema (“output”) depende das características dos elementos que o compõem e o que ele recebe como “input” inicial.

Além desses aspectos básicos, Frontier (2001, p.15) acrescenta como essencial na constituição de um sistema (enfatizando os ecossistemas) o que ele chama de “três princípios da sistêmica”: (1) a “dependência interativa”, (2) a “emergência de uma entidade global” e o (3) “efeito de retorno do todo sobre as partes”. No primeiro caso, um determinado efeito pode ser resultante de efeitos intermediários (eventos em cascata motivados por mecanismos de “feed- back”). No segundo, os elementos que põem em funcionamento o sistema, não se resumem aos elementos isolados, mas são eles, também, sistemas: [...] “um meio químico reage à presença da molécula H2O e não aos átomos de H e O” [...]. No terceiro caso, partindo do princípio de que um elemento não existe de forma isolada, a potencialidade de um elemento é contida pela dinâmica do conjunto a fim de que ele possa atender às finalidades daquele sistema (perda de propriedades individuais e ganho em propriedades de conjunto).

Um exemplo são os milhares de genes contidos em cada um dos cromossomos dos organismos vivos. Grande parte deles permanece inativa ou é desacelerado com o passar do tempo, como acontecem com os genes por trás das características de primatas nos seres humanos.

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Gould (1987), ironicamente, define os seres humanos enquanto “fetos de chimpanzé”. Nesse sentido, um organismo vivo só poderia ser considerado um sistema, a partir do momento em que se consideram as relações entre as partes que o compõem. Por outro lado, um organismo dissecado, decomposto em cada uma de suas partes, deixa de ser um organismo ou sistema, uma vez que perdeu justamente a propriedade de relação ou inter-relação. Da mesma forma que uma máquina decomposta ao nível dos seus constituintes deixa de ser um sistema para tornar-se um amontoado de peças. É bom frisar que não se tratam apenas de simples ligações, mas de relações, que, fatalmente, levam à transformações no conjunto: as ligações são aleatórias, enquanto as relações levam à mudanças nas características e comportamento dos elementos e, conseqüentemente, do objeto. Da mesma forma que uma floresta participa ativamente na formação de solo, nas mudanças das características hídricas desse ambiente e na manutenção de outros organismos, organizados em sistemas de sistemas, estes mesmos elementos (solo, água e organismos vivos), por sua vez, ajudam a criar condições para que essa mesma floresta sobreviva e cresça. O produto dessas transformações, fruto de uma série de retroações, modifica o seu comportamento e constituem-se nas propriedades emergentes, ou qualidades novas, até então ausentes nesse sistema.

Isso ocorre porque a vegetação não está sobreposta ao solo, mas integrada a ele. A mesma coisa pode-se dizer da atmosfera em relação à superfície. O ar integra-se à superfície na medida em que a modifica e é modificado por ela. E, da mesma forma, essa superfície modifica o comportamento dos elementos climáticos, ao alterar a trajetória dos ventos, na retirada ou adição de material particulado no ar, na modificação das suas características de temperatura e umidade etc. A diversidade de climas sobre a superfície terrestre surge como propriedade emergente, produto das relações entre os controles de superfície com os elementos atmosféricos, em diferentes tempos e grandezas ao longo da evolução da Terra.

No quadro climático e da vegetação na América do Sul, por ocasião do auge do último glacial, entre 12 e 18 mil anos A.P., formações florestais como a Amazônia e a Mata Atlântica, até então restritas aos fundos de vale na forma de extensas matas galerias e enclaves (matas orográficas, brejos etc.), de acordo com Ab’Saber (1977), adquirem as dimensões atuais graças, não apenas ao fato do clima ter se tornado mais úmido (além do “input” inicial, o clima permanece presente durante toda a evolução desse sistema na forma de “transput”) mas, também,

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ao trabalho de “transformação” associados aos mecanismos de retroações do solo e do próprio clima, levado adiante para os setores mais elevados das vertentes e distantes da dinâmica fluvial. O avanço da vegetação, numa fase marcadamente “biostásica”, favorece a pedogênese. Solos mais profundos propiciam melhores condições de armazenamento de água e elevação do lençol freático e, conseqüentemente, numa maior oferta de água para a vegetação, capaz de supri-las mesmo nos períodos mais secos.

As relações de interdependência e de transformações vão além do espaço amazônico. Segundo Tarifa (1994, p.19), naquilo que diz respeito ao potencial humano de transformação da natureza, ao caracterizar o clima do centro-oeste brasileiro, mostra que o mesmo depende de fatores associados à circulação geral da atmosfera e que

[...] a contribuição do processo de ocupação agropecuária na região dos Cerrados, para provocar uma alteração climática à nível regional é praticamente inexistente. Uma das maiores preocupações dos climatólogos, é de que a área do Brasil Central possa sofrer uma diminuição das chuvas (à longo prazo) em função das mudanças que venham ocorrer na Amazônia” [...] “uma parte considerável da umidade atmosférica do Brasil Central, é geneticamente formada na Amazônia Centro-Ocidental [...]