• Nenhum resultado encontrado

Capítulo I QUESTÕES FUNDAMENTAIS NO LIVRO DO PROFETA

1.4 A Obra Historiográfica Deuteronomista no livro de Jeremias

Os livros que apresentam um estilo deuteronomista e que fazem parte da chamada OHD (Obra Historiográfica Deuteronomista), são os livros que vão desde Josué até 2Reis. Um dos pesquisadores que levantou a hipótese de que nestes livros não havia somente uma redação deuteronomista, mas, de uma obra historiográfica bem planejada, foi Martin Noth136:

Segundo NOTH, Dtr (em NOTH, esta sigla denomina a obra e seu autor) colocou no início de sua obra o Deuteronômio e deu-lhe, para este fim, uma nova introdução (Dt 1-3 bem como o cap.4). Assim, ao mesmo tempo, criou as condições, a partir das quais ele podia modelar e interpretar a história que seguia. “Neste procedimento, em geral, o Dtr simplesmente deu expressão... às fontes que estavam à sua disposição e apenas conectou os fragmentos distintos por um texto que fez as conexões”. Neste procedimento, contudo, ele “fez uma seleção bem projetada do material encontrado”, um fato que se mostra, entre outros, pelas suas referências aos “anais”. No restante, Dtr deu expressão à sua própria disposição do material inteiro e à sua interpretação teológica “em todos os pontos importantes do desenvolvimento da história” por meio de discursos dos protagonistas (Js 1; 23; 1Sm 12; 1Rs 8,14ss) ou em resumos próprios (Js 12; Jz

131 Cf. WESTERMANN, Claus. Comentario al Profeta Jeremias. Madrid: Ediciones Fax, 1980, p. 25. 132 Cf. HOLLADAY, L., 1986, p. 54.

133 Cf. NOTH, Martin., 1988, p. 286. 134 Cf. BRIGHT, John., 2010, p. 179. 135 Cf. MOWINCKEL, S., 1990, p. 80.

2,11ss; 2Rs 17,7ss (5s)). Por isso, é aqui que podemos perceber da melhor maneira seus “pensamentos chaves e teológicos137”.

Portanto, as concepções de Noth encontraram uma ampla aceitação naquilo que é básico, e, desde então, ele determina a discussão em relação ao termo da “Obra Historiográfica Deuteronomista” como denominação dos livros de Josué até 2Reis. Houve um ganho firme na ciência vétero-testamentária, todavia, em diversos aspectos foi alegado que a hipótese de Noth simplificava por demais os problemas destes livros, e que não fazia merecer às muitas camadas e à complexidade das tradições em suas redações.

Independente de NOTH, JEPSEN já desenvolvera a teoria de que nos livros dos Reis podiam ser reconhecidas várias redações: uma sacerdotal, uma nebiista (isto é, profética) e uma levita (à qual ele atribuiu, no entanto, pouca importância). Ele identificou seu segundo autor, o profético, explicitamente com o Dtr de NOTH. Também CROSS supõe duas “edições” da Obra Historiográfica Deuteronomista, porém, ele identifica a primeira com o Dtr de NOTH. Isso leva a uma diferença fundamental na questão da datação: NOTH e JEPSEN138 datam o Dtr após o último evento mencionado em 2 Reis, a anistia do rei Joaquim (2Rs 25,27-30) e chegam assim a datar a toda obra (NOTH) ou sua redação decisiva depois de 562/1. Em comparação, CROSS139 data a primeira redação, a decisiva, na época de Josias e apenas a segunda na época do exílio. Esta diferença na datação tem uma influência essencial para a compreensão geral da obra.

Para Braulik140 o autor Noth considera que os redatores deuteronomistas até então são entendidos como colecionadores e compiladores. E num segundo momento, situa-se a “Obra Historiográfica Deuteronomista” (Dt 1 – 2Rs 25).

Obviamente, criada por esse autor, na Judéia, no tempo do exílio, pouco depois do indulto ao rei Joaquim no ano 562/1 a.C, relatado no final. “O autor teria elaborado, com a apresentação da permanente desobediência e revolta contra Javé, uma etiologia da destruição do estado e do templo. Ela seria um tipo de justificação teológica de Deus, que termina com a ira dele e sem esperança de futuro”.

137 Cf. RENDTORFF, Rolf. Antigo Testamento – Uma Itrodução. Santo André: Academia Cristã, 2009,

p.267-268.

138 Cf. JEPSEN, A. Die Quellen des Königsbuches. 2º ed. 1956, p.174.

139 Cf. CROSS, M. The Themes of the Books of Kings and the Structure of the Deuteronomistic History,

in: Canaanite Myth the Hebrew Epic, 1973, p. 274-289.

140 Cf. BRAULIK, Georg; ZENGER, Erich (Org). Introdução ao Antigo Testamento – As Teorias Sobre a

Braulik nos descreve que Noth explica as desarmonias relativamente numerosas dentro da obra deuteronomista como discrepâncias no material utilizado como fonte ou como adendos posteriores. A pesquisa subsequente começa preferencialmente por essas discordâncias e são analisadas com mais frequência nos livros de 1 e 2 Reis, e depois também nos livros de 1 e 2 Samuel.

Após o desenvolvimento da teoria de Noth surgiram outros pesquisadores refutando a sua teoria. A princípio, Von Rad141 vem logo após Noth corrigindo o querigma da desesperança do autor. Von Rad apresenta que na obra deuteronomista a palavra de Javé não age apenas julgando e aniquilando, mas, pela promessa a David que se cumpre incessantemente no (oráculo de Natan em 2Sm 7 – não relatado por Noth como integrante do corpo de discursos da obra deuteronomista).

Todavia, o messianismo contido no livro se estende além da ruína de Jerusalém até a notícia final sobre o decreto a Joaquim (2Rs 25,27-30). Zenger142 descreve que este texto trata-se até de sua readmissão à condição de vassalo.

Essa perspectiva do funcionamento da promessa a David apoia-se, numa forma textual no livro de 2Rs 8,19, o Texto Massorético (TM). Lohfink143 comprovou como

não sendo original esta forma textual e representa a visão posterior dos livros de 1 e 2 Crônicas. A teoria dos livros de 1 e 2 Reis é complicada, no entanto, persiste uma visão positiva do reinado até Josias, se bem que sobre uma base teológica diferente.

Wolff144 não considera o decreto a Joaquim com uma perspectiva esperançosa para a reconstrução da dinastia davídica. Apesar disso, o verdadeiro querigma da obra Deuteronomista não seria o juízo de Deus, mas um chamado ao “arrependimento” no exílio, que provém de uma “segunda mão do círculo da obra deuteronomista” em Dt 4,29-31; 30,1-10. Com essa visão Wolff desencadeou um processo de diferenciação de múltiplas camadas na obra deuteronomista.

Schwantes145 por sua vez, nos apresenta que a obra historiográfica deuteronomista certamente não foi composta a partir de várias fontes146 contínuas, como

141 Cf. VON RAD, Gerhard. Teologia do Antigo Testamento (volumes 1 e 2). 2º ed. São Paulo:

ASTE/TARGUMIM, 2006, p.299-344.

142 Cf. ZENGER, Erich. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003, p. 368-372.

143 Cf. LOHFINK, N. Das Deuteronomium. Entstehung, Gestalt und Botschaft (BEThL 68). Leuven,

1985, p, 357-362.

144 Cf. WOLLF, Walter Hans. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 1975, p. 121-123. 145 Cf. SCHWANTES, Milton. Teologia do Antigo Testamento (Vol. 2). 2º ed. São Leopoldo: Escola

as que se pretende afirmar para a formação da Torá. Em sua maior parte está obra é a adição de diversas complexidades maiores de fontes já concluídas bem antes do exílio. Quando os grupos deuteronomísticos compuseram sua obra.

O material literário da Obra Historiográfica Deuteronomística, no geral, é avaliado nas historias de Israel; é usado como fonte histórica para a época de Moisés até Joaquim. Não se pode dizer que este material ocupa lugar de destaque nos esboços de teologia vétero- testamentária. A meu ver, é um empreendimento valioso e gratificante reacentuar as qualidades teológicas da Obra Deuteronomística. Consequentemente, também a teologia desta obra não é unitária. Não há nela uma só linha ou um só padrão teológico. Os deuteronomistas mantiveram os acentos peculiares de cada um dos conjuntos, integrados na unidade maior. Isso é significativo, pois os compiladores deuteronomísticos fizeram questão de manter as afirmações das gerações passadas. Não obsolutizaram sua própria ótica e situação. Mantiveram tradições anteriores. Aqui e em outros tantos textos da Escritura podemos perceber que os autores bíblicos tinham a tradição e o passado como elementos significativos. Ainda que a Obra Deuteronomística inclua e valide afirmações teológicas do passado, seus autores não deixam de ter sua situação e sua perspectiva peculiares. Encontram-se na época do exílio (após 587 a.C) e em meio às devastações causadas pelos babilônios na Palestina. Reelem o passado a partir da experiência de aniquilamento do templo e do estado, da deportação da elite e do sofrimento dos remanescentes palestinenses. Está releitura do passado permite-lhes constatar que a situação presente está diretamente relacionada com as estruturas políticas vigentes até 587 a.C (os estados monárquicos de Israel e Judá147).

Enfim, a obra historiográfica deuteronomista nos depõe, portanto, do mesmo Deus libertador do qual a Torá nos apresenta. Ainda que para Schwantes a teologia desta obra não seja unitária, Fohrer148 defende que a teologia deuteronomista se baseia em três fundamentos: a noção de divindade, a centralização de culto e por último, o zelo de YHWH para com Israel.

A primeira descrição diz respeito às noções de divindade e de local de culto, este fato contrapõe à existência de diversas representações divinas e de santuários no reino

146 Cf. SCHWANTES, Milton. Teologia do Antigo Testamento (Vol. 1). 2º ed. São Leopoldo: Escola

Superior de Teologia, 1986, p.19-26. As fontes que o autor se refere são: A obra historiográfica Javista, Eloísta, O escrito sacerdotal, e a obra historiográfica deuteronomista. Na década de 90 o bíblista utilizava da teoria das fontes para analisar o Pentateuco, porém, no desenrolar de suas pesquisas Milton Schwantes abandonou a teoria das fontes, pelo método sociológico no qual o utilizou até findar a sua caminhada como biblista na América Latina.

147 Cf. Ibid., 1986, p.128.

de Judá, o que levou a uma centralização do culto a YHWH, em Jerusalém. E isto promoveu um aumento no significado dado a Jerusalém e ao templo, por toda a população local.

Para Braulik149 a linguagem e a teologia deuteronomista estavam à disposição geral desde um tempo relativamente prematuro. Portanto, se afirmou que quase todos os livros proféticos, muitos Salmos e os livros de 1 e 2 Crônicas sofreram uma reelaboração, ou uma redação deuteronomista. Às vezes isso conduziu a uma “definição extensiva do deuteronomismo”. Seja como for, não se pode estabelecer em nenhuma época a existência de um movimento ou uma escola deuteronomista.

Lohfink150 retrata que os textos de “Jeremias” são considerados por muitos biblistas como deuteronomistas, porém o autor o distingue claramente da obra deuteronomista. Assim, se os textos não forem da autoria do próprio profeta, poderão ser atribuídos a uma fonte específica ou até mesmo ser considerada obra do redator do livro, no caso, Baruque. Vários destes textos se encontram apenas no estágio proto- massorético, posterior à ramificação da qual surgiu à versão da Septuaginta (LXX).

Schwantes151 é de opinião contrária à de Lofink152, e defende que Jeremias tem

muita semelhança com a Obra Historiográfica Deuteronomista. No entanto, os círculos que compuseram a “obra” são similares aos que deram ao livro do profeta sua redação final.

As distinções entre Jeremias e a obra residem nos seguintes pontos, primeiro ambos acreditam que o futuro do povo está assinalado pela vida na terra da promessa. E seguida na expectativa por um novo Davi. Portanto, ambos promovem severa crítica ao exercício do poder monárquico.

Schwantes nos apresenta que as diferenças entre Jeremias e a obra residem na posição quanto a Sião. O profeta promove uma crítica radical ao templo e inclusive percebe os limites para o efetivo cumprimento da lei. Entretanto, para ele a boa vontade não é suficiente para a prática da lei. É preciso um novo coração (Jr 31,31-34).

149 Cf. BRAULIK, Georg; ZENGER, Erich (Org). Introdução ao Antigo Testamento – As Teorias Sobre a

Obra Historiográfica Deuterononomista (“DtrG”). São Paulo: Loyola, 2003, p.169.

150 Cf. LOHFINK, N. Das Deuteronomium. Entstehung, Gestalt und Botschaft (BEThL 68). Leuven,

1985, p. 362.

151 Cf. SCHWANTES, Milton. Sofrimento e Esperança no Exílio – História e Teologia do povo de Deus

no século VI a.C. 3º ed. São Leopoldo: OIKOS, 2009, p.47.

Holladay153 acredita que ainda que nos falte subsídios sociológicos para

falarmos de um movimento deuteronomista, cujos círculos os redatores (ou o redator?) estivessem ambientados, haverá diversos aspectos a favor como aproximações linguísticas e teológicas no livro de Jeremias. Porém, com a literatura restante na esfera de influência do Deuteronômio deve ser constituída na conta dos editores uma versão exílica do livro.

Entretanto Holladay154 levanta a hipótese que se costuma a atribuir os contingentes mais novos do livro a uma redação pós-deuteronomista não tão fácil de identificar.

Considerações finais

Neste capítulo abordamos as questões fundamentais no livro de Jeremias. Os seus questionamentos, a estrutura do livro, do texto hebraico e do texto grego, as diferenças entre ambos os textos relacionando-os às sequencias dos capítulos apresentados em cada manuscrito.

A presença das três divisões dos blocos literários inseridos no livro de Jeremias foi de suma importância para detectarmos a localização da perícope em pesquisa. Mas precisamente no primeiro bloco literário (Jr 1-25), e dentro de um bloco menor dos capítulos 21-24 (oráculos contra os reis).

Tendo como consideração final a análise complementar das fontes, das datas, da autoria do livro de Jeremias, e também os questionamentos da teologia deuteronomista inserida em Jeremias. No capítulo seguinte, apresentaremos com precisão a exegese de Jeremias 22,13-19, relatando alguns grupos sociais inseridos na crítica de Jeremias contra o rei Jeoaquim.

153 Cf. HOLLADAY, L. A commentary on the Prophet Jeremiah Chapters 1-25, Philadelphia: Fortress

Press, vol. 2, 1986, p. 78-84. [Hermeneia – A Critical and Historical Commentary on the Bible].