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CAMPESINA NA AMÉRICA DO SUL

CAPÍTULO 04 TERRITORIALIZAÇÃO, ORGANIZAÇÃO E

4.2 Organização e Consciência: aproximações aos conceitos de Antonio Gramsc

4.2.3 A organização política como intelectual coletivo

Gramsci, desde a prisão e com a saúde debilitada, dedica todas as energias que lhe restavam a desdobrar sua concepção de partido como “intelectual coletivo”. A este tema o autor vincula a questão do: poder; da política (da macro e micro política); da organização desde o local de trabalho; de uma organização política mais ampla; e da necessidade de superação da luta espontânea.

Sobre o poder e a política, suas primeiras formulações mais sistematizadas se deram nas reflexões estabelecidas junto à obra de Maquiavel. Para compreender a concepção de poder em Gramsci, é necessário segundo Maria Lídia Silveira, destacar o componente de sua “natureza relacional”. Poder não é “algo em si mesmo”, mas se estabelece a partir das relações. “Relações de classe, relações de força, relações que se organizam no campo econômico e que se espraiam para o nível político e ideológico”. E, se pensado do ponto de vista dos “trabalhadores em geral”, poder está relacionado à necessidade de superar o “viés

corporativo - importante, mas insuficiente – na perspectiva de sua constituição como força política” para a construção da “luta hegemônica”. (SILVEIRA, 2012, p. 90).

Bianchi (2008) afirma que para o autor “toda a vida é política” e que “toda a práxis humana carrega em si uma dimensão política”. Assim, na luta dos trabalhadores como força política, seria necessário estabelecer as distinções entre a grande e a pequena política. A grande política para Gramsci se referia à luta pela defesa ou conservação de uma determinada estrutura, assim como a luta pela sua destruição. Já a pequena política poderia ser definida como a política do dia-a-dia e da intriga. Essa distinção entre a grande e a pequena política estava relacionada ao ato de “diferenciar a conjuntura da situação”, ou melhor, a necessidade de distinguir os “movimentos orgânicos (permanentes)” dos “conjunturais (ocasionais, imediatos, acidentais)”, fundamentais no propósito de esclarecer as diferenças entre as mudanças estruturais e as reformas. (BIANCHI, 2008, p.160)

A luta pelo poder, desde os trabalhadores organizados, deveria passar pela compreensão dos meandros existentes entre a pequena e a grande política, assim como passar pela aliança estratégica operário-camponesa na proposição de mudanças estruturais, para realização da grande política. E para isso era de fundamental importância a organização política, desde os conselhos de fábrica ao partido.

Para Gramsci inicialmente, as comissões internas das fábricas carregavam a capacidade de “serem órgãos reais de democracia operaria, espaços organizativos que ultrapassariam as lutas imediatas e teriam uma dimensão pedagógica”, ultrapassariam a pequena política para a grande política. O autor visualizava também um núcleo mais amplo às comissões de fábrica, denominado Comitês de Bairros, que teriam a função de “coordenar os trabalhadores não proletários sob a direção dos conselhos numa perspectiva de conexão das diferenciadas formas que compunham as classes trabalhadoras” (SILVEIRA, 2012, p.92).

Portanto, os conselhos operários, fruto das lutas de 1919 e 1920 foram, para Gramsci, a célula do exercício do poder e da democracia operária, similarmente o que foram os sovietes na revolução russa. Para o autor os trabalhadores só poderiam formar um Estado dos trabalhadores se fossem “capazes de reconstruir a si mesmas e, ao mesmo tempo, dar sentido e força política às instituições, especialmente neste tempo histórico, aos conselhos”. A organização destes conselhos implicava em atuar enormemente num processo de transformação cultural, liquidando a “disciplina capitalista na produção” e “instaurando uma nova forma de disciplina, uma nova forma de democracia, a democracia operaria”. (SILVEIRA, 2012, p. 93 e 94)

Secco (2006) afirma que os conselhos de fábrica surgiram antes mesmos dos sovietes e que eram “um órgão revolucionário”, pois assumia as “funções produtivas da fábrica” e retirava “do patronato o mito de sua necessidade técnica”. Num contexto de possível crise do imperialismo, os conselhos levariam camponeses e operários a uma luta mais organizada e não correria tanto o perigo eminente de um “espontaneísmo anarquizante”. Sua perspectiva era a da organização da classe desde seu local de trabalho, que despontaria desde as experiências concretas das massas.

Entretanto, Gruppi (1978) analisa que o conselho de fábrica não é concebido desde a diminuição do papel do sindicado e do partido, mas no papel de “regeneração do sindicato”. “A conquista do poder é resultado da capacidade dirigente da classe operaria, que deve amadurecer e começar a se expressar na fábrica. O que Gramsci possui é precisamente o sentido do processo” (GRUPPI, 1978, p. 54).

A criação do Estado novo então perpassa pela organização, pelo exercício real da democracia operária desde seus locais de trabalho, os conselhos de fábrica. Mas também perpassa por uma efetiva aliança entre operários e camponeses numa organização política mais ampla. Essa efetiva aliança entre camponeses, operários e intelectuais, em outros termos, possibilitaria condições de superação do caráter da luta econômica e imediata (espontaneísta), passando do momento corporativo da organização para a representação dos interesses mais amplos. Como afirmado anteriormente, superando sua condição de distintas profissões para sua emancipação enquanto classe. A isso, chamava catarse.

Pode-se empregar a expressão ‘catarsis’ para indicar a passagem do momento puramente econômica (ou egoísta passional) ao momento puramente ético-político, isto é, a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Isto significa, também, a passagem do ‘objetivo ao subjetivo’ e da ‘necessidade à liberdade’. A estrutura da força exterior que subjuga o homem, assimilando-o e o tornando passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma nova forma ético-política, em fonte de novas iniciativas. A fixação do momento ‘catártico’, torna-se assim, creio, o ponto de partida de toda a filosofia da práxis; o processo catártico coincide com a cadeia de sínteses que resulta do desenvolvimento dialético. (GRAMSCI, 1995, p. 53)

Como é na esfera político-ideológica, ou esfera das superestruturas, que se trava em ultima instancia as batalhas decisivas entre as classes sociais, Gramsci concebe a catarse como um conceito bastante peculiar ao processo de superação de interesses “econômico- corporativos” a uma dimensão universal. Seria o momento em que a classe trabalhadora deixava de ser um “puro fenômeno econômico para se converter em sujeito consciente da historia”, uma “passagem do determinismo à liberdade”, o que seria equivalente às análises de

Marx da superação da classe em si à classe para si, ou a elevação de uma “consciência meramente sindicalista à autentica consciência político-universal de classe” nos termos de Lênin. Este processo, a catarse, é fundante na conformação de uma classe social “nacional” que representaria os interesses de um “bloco social majoritário” que poderia conquistar a “a hegemonia na sociedade” (COUTINHO, 2012, p.25).

Gramsci, citando Engels, afirma que a “economia só em ultima instância é a mola da historia”, no entanto é nela que os seres humanos tomam consciência dos conflitos, no “terreno das ideologias”, e isto não é de “caráter psicológico ou moralista, mas tem um caráter orgânico gnosiológico” (GRAMSCI, 1976, p.34-37). É assim, no contexto da luta econômica, e por isso tamanha importância da organização a partir do local de trabalho (conselhos e comitês), que se forja certa consciência, entretanto ainda insuficiente para a construção de uma hegemonia dos trabalhadores, pois a luta econômica ou corporativa ainda é fracionada. A construção da hegemonia dos trabalhadores se daria através de uma organização que possibilitasse a catarse, a emancipação da luta corporativa para a luta em geral. Esta organização seria o partido.

O partido como um instrumento político-pedagógico deveria neste sentido continuar com suas raízes na fábrica e na experiência concreta dos trabalhadores. Gruppi afirma que o partido para Gramsci é um “elemento decisivo na formação da hegemonia da classe operária” por ser um instrumento que unifica a “ação e o pensamento”, configurando-se como a “inteligência e a vontade coletiva”, como o raciocínio da totalidade social em seus elementos políticos e culturais, construindo um “determinado bloco histórico, o qual se mantém coeso graças a essa direção”. Neste sentido, o partido tinha que ser formado de cima para baixo, partindo do “nível mais alto de consciência, da direção sobre o movimento espontâneo”. (GRUPPI, 1996, p. 86 e 87).

Para o autor sardo, o partido é constituído essencialmente por três forças:

 Aquele que adere à organização sem uma consciência crítica, movido pelo entusiasmo e pela vontade;

 Uma força altamente convicta, unificada e disciplina. O grupo de dirigentes. “[...] Aquele que realiza a síntese critica, o capitão que cria o exército” (GRUPPI, 1978, p. 75);

 Um extrato intermediário que liga núcleo dirigente com a base.

Apesar de o partido necessariamente ser uma relação orgânica entre estas forças, a segunda é de fundamental importância para sua vida. Entretanto, esta importância se deve essencialmente à atitude de preparação de seus sucessores. O partido deve ser capaz de criar

novos dirigentes, novos quadros, tanto em quantidade quanto em qualidade. Reside aí a concepção e o papel dos intelectuais orgânicos para o autor.

Se a relação entre intelectuais e povo-nação, entre dirigentes e dirigidos, entre os governantes e governados, se estabelece graças a uma adesão orgânica, na qual o sentimento-paixão torna-se compreensão e, desta forma, saber (não de uma maneira mecânica, mas vivencialmente), só então a relação é de representação, ocorrendo a troca de elementos individuais entre governantes e governados, entre dirigentes e dirigidos; isto é, realiza-se a vida do conjunto, a única que é força social; cria-se o bloco histórico. (GRAMSCI, 1995, p.139)

Para o militante sardo, o “elemento popular sente, mas nem sempre compreende ou sabe, o elemento intelectual sabe, mas nem sempre compreende e, menos ainda, sente”. Para Gramsci, o partido tinha uma função de “elevar a consciência das classes ao nível ético- político e, assim, interferir nas batalhas por hegemonia – do que por um tipo especifico de organização formal”. Neste sentido, Togliatti estava correto “quando afirmou que, para o pensador sardo, o partido revolucionário seria um intelectual coletivo”. (COUTINHO, 2012, p.36)

Gramsci afirma ainda que um partido nem sempre sabe adaptar-se às novas tarefas ou períodos históricos, e que ao analisar o desenvolvimento dos partidos é necessário observar entre outras questões, a burocracia como uma força conservadora perigosa: “se ela chega a constituir um corpo solidário, voltado para si e independente da massa, o partido acaba se tornando anacrônico, e nos momentos de crise aguda é esvaziado do seu conteúdo social” (GRAMSCI, 1976, p.56). A burocratização de um partido, de uma organização, não acompanha o movimento real, não sintoniza o mais profundo desejo das massas ao aparelho de direção, não leva em conta a realidade histórica e se enrijece mecanicamente.

Esse era o sentido do partido para Gramsci, um intelectual coletivo que possibilitaria a catarsis, da organização corporativa para a organização da classe em geral, no qual estabeleceria uma relação pedagógica entre dirigentes e dirigidos, entre intelectuais orgânicos e massa, entre a organização local do trabalho e a organização mais ampla dos trabalhadores na conformação de um bloco histórico com alianças de colaboração orgânica.

Neste sentido, o intelectual coletivo está vinculado diretamente à construção da hegemonia que por sua vez perpassa por esta colaboração orgânica, pela organização política da sociedade (e não apenas economicamente), o que requer também uma profunda transformação dos modos de ação e percepção, dos “modos de pensar, sobre as orientações ideológicas e inclusive sobre o modo de conhecer” (GRUPPI, 1978, p. 70). Construir hegemonia é desenvolver “paraleamente a formação da autoconsciência e autoorganização

das classes correspondentes”, e em certa medida a “passagem da classe em si à classe para si” (BIANCHI, 2008, p. 169).

[...] o fato da hegemonia pressupõe indubitavelmente que se deve levar em conta os interesses e as tendências dos grupos sobre os quais a hegemonia será exercida; que se forma certo equilíbrio de compromisso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa. Mas é também indubitável que os sacrifícios e o compromisso não se relacionam com o essencial, pois se a hegemonia é ético-política também é econômica; não pode deixar de se fundamentar na função decisiva que o grupo dirigente exerce no núcleo decisivo da atividade econômica. (GRAMSCI, Q.13 apud BIANCHI, 2008, p.169)

Hegemonia, portanto está na capacidade de unificar “através da ideologia e de conservar um bloco social que não é homogêneo”, mas marcado pelas contradições de classe. Está na capacidade de manter articuladas as forças heterogêneas. (GRUPPI, 1978, p.70). Aí reside também o papel do intelectual coletivo.

4.2.3.1 Partido: do movimento espontâneo à direção consciente

Segundo Gramsci, o movimento espontâneo não é um fenômeno puro, nele contém elementos de direção consciente de maneira múltipla. Ao se referir a espontaneidade como característica das classes subalternas, os elementos da direção consciente presentes são os da classe dominante. Os múltiplos elementos aparecem na ação espontânea de maneira fragmentada e nenhuma delas ultrapassa o “nível da ciência popular”, ou senso comum. A classe subalterna “nem mesmo suspeita que sua história possa ter alguma importância e que deixar traços documentados dela tenha algum valor” (GRAMSCI apud SADER, 1992, p. 124).

O fato da espontaneidade, ou movimento espontâneo ter relação de unidade com a direção consciente da classe dominante de maneira fragmentada, deve ser cuidado com especial atenção, pois ignorá-lo seria “renunciar a dar-lhes” outra direção consciente. Isso pode, dependendo das circunstancias históricas ocasionar em que um descontentamento das classes subalternas e movimentos espontâneos de massa possam vir acompanhados de movimentos reacionários de direita.

O fato de que em cada movimentos espontâneo exista um elemento primitivo de direção consciente, de disciplina, é demonstrado indiretamente pela existência de correntes e grupos que sustentam a espontaneidade como método. A propósito é preciso fazer uma distinção entre elementos puramente ideológicos e elementos de ação pratica, entre estudiosos que sustentam a espontaneidade como método