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1.2 Arquitetura Moderna em Porto Alegre: ideais e construções

1.2.1 A orientação estética da arquitetura moderna:

A idéia do artista como herói é tomada como tema central por Benjamin, como foi visto anteriormente. Mas existe uma realidade desse herói moderno, a miséria em que vive, que vem ao encontro da sua autonomia. Esse fato é importante por destacar o artista da realidade social anterior, ligado à aristocracia. Desta forma, é preciso colocá-lo como um ser cognoscente, que vive as dificuldades da modernidade, mas também expressa tal vivência como um indivíduo autônomo, pois se auto-gerencia. É claro que sua expressão, como a do poeta moderno, cujo exemplo é Baudelaire, é fruto de toda experiência de vida como reflexo de um momento de transformação evidenciado desde a Ilustração. É a respeito dessa relativa autonomia que vamos dissertar a seguir.

Marchán Fiz trata sobre A autonomia da estética na Ilustração107, e refere-

se à grande popularidade que a disciplina da Estética alcança. A Ilustração proclama para a natureza o que é inerente a si mesma. Essa é uma das premissas que possibilita a aceitação das diferentes esferas da atividade humana e das disciplinas resultantes: a Estética, a História da Arte, a Crítica de Arte e as Poéticas das Artes. A fundação da Estética se perfila como um dos vetores mais peculiares do aporte filosófico. Sua estrutura se baseia na reflexão sobre uma capacidade humana: a de adotar conduta estética, para legitimar a relativa autonomia que começa a alcançar nas diversas artes.

Desde meados do século XVIII, a Estética se converteu na disciplina filosófica da moda. A. G. Baumgarten batiza a disciplina em latim “Aesthetica” (1750), deixando a seus discípulos a tarefa de divulgar na Alemanha os seus

ensinamentos108. Assim, a Estética vai conquistando a sua autonomia como

disciplina ilustrada por autonomásia, como uma prática nascente do domínio do homem autônomo ilustrado sobre a realidade. Seu despertar e sua consolidação, ocorridos entre 1700 e 1830, coincidem com a primeira fase do moderno.

107MARCHÁN FIZ: 1996, p. 11-36.

108Marchán Fiz cita vários discípulos de Baumgarten em toda a Europa: na Alemanha, G. F. Méier e M.

A disciplina alcança grande popularidade, e isso ocorre através dos canais

da opinião pública. As revistas que surgiram primeiro na Inglaterra109 e logo se

difundiram em toda a Europa; os Salões, na França; a ensaística francesa e alemã

permitem constatar a aceitação da disciplina na sociedade como um todo110.

A popularidade da disciplina da Estética e a busca dos artistas em tornar públicas as novas regras artísticas que surgiam com a modernidade são fundamentais para a proposta do presente trabalho. Ressaltamos aqui a promoção dos Salões de Belas Artes do Rio Grande do Sul, a publicação da Revista do Globo, em Porto Alegre, e a constante e periódica presença de artigos sobre Arquitetura Moderna em um dos jornais mais importante do início e meados do século XX, o Correio do Povo.

Essa promoção da arquitetura não estava isolada. Fazia parte de um contexto

maior, ligado às artes. Kern111 cita que, no Rio Grande do Sul, coexistiam dois

sistemas de representação visual, aparentemente antagônicos:

Um divulgado e produzido pelos artistas ligados ao Instituto de Belas Artes (IBA); e outro, tendo à frente o escritor Manoelito de Ornellas, na época diretor do Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP). O campo de arte encontra-se predominantemente estruturado sob instituições como o IBA e o Salão Nacional de Belas Artes (promovido pelo IBA) e a crítica de arte.

O IBA e o Salão são modelados segundo a escola Nacional de Belas Artes (ENBA) e o Salão Nacional de Belas Artes (SNBA) do Rio de Janeiro e recebem apoio e auxílios financeiros do governo do Rio Grande do Sul, controlado por

interventores nacionais, e da Prefeitura de Porto Alegre.112

Os Salões de Belas Artes do Rio Grande do Sul foram eventos de significativa importância na história do IBA – Instituto de Belas Artes de Porto Alegre – e de todo

Estado. Fiori113 apresenta a seqüência desses salões detalhadamente, desde o

109The Spectator ou The Guardian. 110MARCHÁN FIZ: 1996, p. 11. 111 KERN, 1995, p. 34. 112KERN, 1995, p. 34.

113FIORI, Renato Holmer. Arquitetura moderna e ensino de arquitetura: os cursos em Porto Alegre de

seu surgimento, em 1939, e enfatiza a presença de arquitetos como José Lutzenberger, Ernani Corrêa, João Monteiro Neto e dos artistas e técnicos Fernando Corona e Duílio Bernardi. Pode-se apontar os Salões como um dos canais da opinião pública e de preocupação com a autocertificação dos trabalhos do artista e arquiteto da modernidade, de início ainda muito tradicionais, porém avançando progressivamente à Estética própria do sujeito moderno.

O segundo instrumento de divulgação da Estética em Porto Alegre, o qual atingiu o público no nível nacional, é a publicação da Revista do Globo. A publicação dos Bertaso, como era conhecida, chegou às bancas, quiosques e à vitrina da Livraria do Globo em 5 de janeiro de 1929. O quinzenário contava a história do Rio Grande do Sul, do Brasil e do mundo, lançando no território nacional as estórias de importantes autores do século XX.

A história da Revista de acordo com Nasi114, é a seguinte: José Bertaso

chegou a Porto Alegre ainda garoto, onde trabalhou em um fábrica de fumo, depois como quebra-galhos da empresa de Laudelino Barcellos e Saturnino Pinto. Aos poucos conquistou os empresários, tornando-se braço-direito de Laudelino, e em seguida tornou-se sócio da Barcellos, Bertaso & Cia. Dedicou-se à empresa e transformou a livraria em um centro de excelência no comércio livreiro de que resultou a casa editorial mais importante que o Estado conheceu. Há também as interferências políticas que devem ser referidas: a revista teria surgido por sugestão de Getúlio Vargas, por interesses políticos. Fato é que a Revista do Globo aparece como representação impressa de uma elite intelectual que girava em torno da livraria. A Revista do Globo caracteriza-se por apresentar uma mistura de reportagens, artigos, colunas sociais e literatura. Os temas praticamente nunca mudaram, somente a hierarquia de cada um se alterou ao longo do tempo, de acordo com o interesse de cada época. Cabe ressaltar que até aquele momento não existia a noção de “revista cultural”, de modo que uma publicação ou era literária, com artigos sobre literatura e publicação de poesias e narrativas, ou era social. O caso da Revista do Globo é caracterizado como revista social, pois a literatura só tem destaque porque é de interesse da “boa sociedade” e da editora, que a usava como veículo para divulgação de seus produtos.

Diferente dos Salões do IBA, a Revista do Globo atingia um público mais amplo, embora limitado à parcela intelectual e social da população de Porto Alegre e nacional. A Estética aqui nesse exemplo fica evidente na forma que a revista assume: desde os modelos gráficos tomados como referência, a Life americana e a Paris Match, até a expressão da linguagem das letras, das imagens, e dos temas das reportagens, artigos e propagandas – bailes, eventos sociais, concursos de misses, etc – demonstram a certeza de uma sociedade em expor suas novas diretrizes estéticas.

O terceiro instrumento de relevância é constituído pelas reportagens do jornal Correio do Povo. Mais especificamente sobre o tema proposto no presente trabalho salientamos uma coluna sobre arquitetura publicada a cada quinze dias, aproximadamente. A importância dessa fonte de dados é indiscutível, porém, o que ainda reforça mais a sua pertinência, é uma coletânea de recortes de jornais feita por Irineu Breitmann, um dos arquitetos modernos de grande relevância no período em estudo. Na coletânea aparecem colagens, às vezes fora de ordem, mas sempre com a referência da fonte de onde foram retiradas. Nesses recortes, é nítida a referência que os arquitetos locais buscavam nas obras de arquitetos americanos e europeus, como Frank Lloyd Wrigth, Mies van der Rohe, entre outros, e também a busca da referência nacional, como se vê na presença de artigos de Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Vllanova Artigas. Ainda são constantes as reportagens de arquitetos locais, como Miguel Pereira, Júlio de Curtis, Ari Mazzini Canarin, Celso Carneiro, Irineu Breitmann, Danilo Landó, para citar alguns importantes nomes. Essas tratavam de diferentes temas, sempre ligados à arquitetura, tais como as questões profissionais relativas à busca da independência profissional dos arquitetos; questões práticas como, por exemplo, a publicação de vários projetos de residências em bairros novos da cidade; questões ideológicas, expressas na busca de referenciais citados acima.

A década de 50 foi aberta com um instigante debate de idéias sobre arquitetura moderna. Arquitetos de Porto Alegre, especialmente Demétrio Ribeiro e Edgar Graeff, levantaram a questão que envolve a polêmica sobre a estética na arquitetura moderna brasileira.

Demétrio Ribeiro publicou, na Revista Horizonte, um artigo que citava as idéias de Lúcio Costa sobre o artificialismo que se manifestava na obra de alguns

arquitetos brasileiros107. O que Ribeiro pretendia, desde o início de seu texto era

apontar a necessidade de se desenvolver a prática da discussão autocrítica entre os arquitetos.

A atual arquitetura no Brasil caracteriza-se pelo uso de métodos artesanais e pelo objetivo exclusivo de satisfazer as necessidades da burguesia. A arquitetura de amanhã caracterizar-se-á, ao contrário, pelo uso de métodos industriais para satisfazer às necessidades práticas e estéticas das grandes massas trabalhadoras.108

Para apontar esses dados, Ribeiro indica que a crítica das obras de arquitetura pressupõe o conhecimento das condições em que elas se desenvolvem, abrangendo dois fatores: as necessidades que a arquitetura atende e os meios

que dispõe para atendê-las109. O arquiteto e sua clientela deveriam ter gostos

semelhantes para corresponder também às necessidades estéticas e estas, por sua vez, deveriam estar de acordo com as condições técnicas (rudimentares) existentes no momento. Neste sentido, o recurso construtivo que o concreto armado disponibilizou, ofereceu a novidade que tanto desejavam clientes e arquitetos na época. A preferência pelas formas livres, curvas ou irregulares era considerada por muitos como a plasticidade com valor estético permanente, possibilitada por esse material; quando, na verdade, estavam obedecendo às condições econômicas e sociais do meio.

Contudo, a arquitetura moderna era qualificada como “revolucionária” por muitos de seus partidários e, também, pelos seus adversários. Explica o arquiteto Demétrio Ribeiro os dois sentidos da expressão:

Uma coisa é arquitetura revolucionária no sentido de arquitetura nova, diferente, que produz obras de aparência estranha e desconhecida. Trata-se neste caso de uma arquitetura que revoluciona as formas, o aspecto das construções. Outra coisa muito diversa é arquitetura revolucionária de arte do povo revolucionário. Trata-se então de uma arte que traduz o gosto e os sentimentos do povo e que contribui para o progresso cultural das massas e a própria transformação da sociedade.110

107O artigo de Lúcio Costa, “Muita construção, algumas arquitetura e um milagre”, menciona a doença

latente pela formação empírica dos jovens arquitetos pela falta de professores orientados no espírito moderno. (RIBEIRO, 1951, p. 338).

108RIBEIRO, 1951, p. 338. 109RIBEIRO, 1951, p. 338. 110RIBEIRO, 1951, p. 145.

Edgar Graeff aceitou o debate, apontando prós e contras às idéias de Ribeiro. Na verdade, mais contras. Graeff se limitou a uma análise crítica do trabalho do colega, evidenciando uma questão importante: Demétrio Ribeiro estaria, consciente ou inconscientemente, preocupado em combater a própria arquitetura moderna, e

não somente as deficiências desta111.

Graeff critica todos os elementos que Ribeiro usa em sua argumentação: a arte de construir edifícios, como se falasse de pintura ou escultura, não considerando que ela é uma técnica e, até certo ponto, uma indústria; a arquitetura nova como sendo diferente, que produz obras de aparência estranha e desconhecida, esquecendo-se de que não se trata somente de aparências. Ainda critica o “amigo e colega”, como se refere a ele em todo o seu texto, pela orientação que, segundo Demétrio Ribeiro, teria indicado o nascimento da arquitetura moderna brasileira. Demétrio, em contrapartida, indica que, as soluções inteiramente novas seriam deduzidas do estudo aprofundado da função prática do edifício, das condições do clima e do uso dos materiais locais de acordo com a técnica moderna; e não como nasceram, em sua aparência completamente diferente da arquitetura do passado. Nesse sentido Graeff demonstra ao colega um maior conhecimento da obra de

Lúcio Costa112.

A participação de Nelson Souza, jovem estudante na época nesse debate, demonstra o envolvimento e maturidade do curso de Arquitetura, praticamente recém criado, nos ideais modernos. E mais, Souza instiga, incentiva e convida os demais estudantes e arquitetos a expressarem também as suas idéias.

Entre tantas considerações, baseadas nos pontos já levantados por Demétrio e Graeff, Nelson Souza traz à tona uma síntese do que Mao Tse Tung indica como sendo uma diretriz para a sociedade:

É preciso não esquecer que elevar o padrão dos operários, camponeses e soldados significa levá-los de seu atual estado primitivo de cultura não para os padrões da classe feudal, burguesa ou pequeno- burguesa, mas de acordo com a linha de desenvolvimento próprio deles mesmos.113

111 GRAEFF, 1951, p. 170. 112GRAEFF, 1951, p. 170. 113SOUZA, 1951, p. 207.

A reprodução dessas palavras no artigo mencionado (e aqui neste estudo) levam Nelson Souza a concluir que uma arquitetura é verdadeira se perseguir os ideais e necessidades acima citados. Tais necessidades materiais e espirituais é que dariam as indicações para as realizações artísticas, aqui se referindo mais

especificamente à Arquitetura114. Finaliza seu artigo dizendo que o papel da estética

da Arquitetura moderna brasileira é subestimado.

Sobre essa polêmica, temos dois pontos de vista, o de Amaral e o de Bittencourt, que se aproximam do tema de formas diferentes, um através da arte e do contexto de época; o outro, através da arquitetura, já com um afastamento temporal considerável, a ponto de traçar críticas e fazer relações entre o ideário e a

influência causada pelos ideais daqueles profissionais115.

Para a questão da habitação neste estudo, essa polêmica nos diz respeito, principalmente porque o universo enfocado baseia-se na arquitetura moderna para as elites. A polêmica como um todo é pertinente para entendermos os ideais que pairavam sobre os autores da arquitetura construída naquelas décadas. Dois aspectos interessam-nos particularmente. Para retomá-las, primeiro analisamos a afirmação de Demétrio Ribeiro de que a arquitetura nova é completamente diferente de todos os edifícios que o povo conhece. A crítica de Graeff diz respeito à falta de habitação para o povo, num sentido mais amplo do que somente o da estética e da aparência. Sobre essa carência, em especial, em torno da década de 50, já foram citadas algumas iniciativas, em diferentes níveis administrativos, para tentar diminuir o problema. Mas com relação ao conhecimento do povo, a verdade é que o povo conhece os edifícios feitos para os latifundiários e burgueses.

Por outro lado, Demétrio Ribeiro116 apresenta a preocupação de imitar os

hábitos, os costumes as modas e o gosto predominantes nos países imperialistas. De fato, essas cópias e imitações que as elites brasileiras almejam deveriam ser

114SOUZA, 1951, p. 207.

115Ler sobre esses pontos de vista em:

Aracy. Arte para quê?: a preocupação social na arte brasileira 1930 – 1970. São Paulo: Nobel, 1984, p. 279 - 282.

BITTENCOURT, Dóris Maria Machado de. Polêmica dos anos 50-60 no Rio Grande do Sul: uma

arquitetura para o povo ou uma arquitetura para as classes dominantes? In: Cadernos de Arquitetura

Ritter dos Reis. V.3, Jun de 2001. Porto Alegre: Editora Ritter dos Reis, 2001, p. 213-217.

dosadas e intermediadas pelo trabalho interpretativo dos profissionais, arquitetos e engenheiros, na busca de soluções próprias e novas. O mesmo raciocínio pode ser adotado para as demais classes.

Em segundo lugar é preciso lembrar que, a existência das duas correntes

principais dentro do curso do Instituto de Belas Artes117 – a orientação de Demétrio

Ribeiro e a posição de Edgar Graeff – marcaram presença forte, por conseqüência, na formação das gerações seguintes de profissionais. Interessa-nos esse dado porque são essas as gerações que darão continuidade ao debate, seja no campo das idéias, seja no ofício do projeto e execução dessa arquitetura moderna. A esse

respeito, Fiori118 relaciona as diretrizes da polêmica citada com o ensino da

arquitetura da época.

(...) Ribeiro revela que tem uma pretensão teórica no curso. Procura seguir a idéia de que a arquitetura não deve ser antagônica à bagagem cultural das pessoas, o que está ligado a importantes preocupações e convicções políticas de esquerda. (...) ao mesmo tempo em que a influência corbuseana em Graeff é evidenciada, quando ele menciona Le Corbusier e analisa a obra deste, parece haver também uma postura crítica importante. O mecanismo funcional, uma das importantes faces das propostas de Le Corbusier é criticado, pois pode tornar a obra estranha ao seu meio.119

Mas o que nos parece ainda mais abrangente é que a polêmica avança com respeito aos profissionais. Num outro nível de debate, agora enfocando uma única clientela, as elites, diferentes profissionais expõem, na radial em estudo, as obras executadas com diferentes vertentes: aquela que ainda era tida como estética tradicional, que reforça os estilos históricos; a que propõe o início de um moderno sem grandes pretensões estéticas; e ainda a vertente do movimento moderno apoiado em referências à arquitetura carioca.

Essas diferentes vertentes serão estudadas no quarto capítulo. Mas quem executou os edifícios para fomentar esse debate na radial das elites de Porto Alegre? Que subsídios bancaram essa provisão da arquitetura? Empreendedoras, as construtoras, vão encabeçar esse processo.

117Não se pode deixar de citar a presença indispensável, na formação dos arquitetos estudantes no

IBA, destas duas figuras, como professores, ilustres no panorama da arquitetura moderna do Rio Grande do Sul – Demétrio Ribeiro e Edgar Graeff.

118Ler sobre esses pontos em: FIORI, Renato Holmer. Arquitetura moderna e ensino de arquitetura: os

cursos em Porto Alegre de 1945 à 1951. Porto Alegre: PUC-RS, 1992. Dissertação de Mestrado. P. 245 – 268.