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3.1 O ESPAÇO PRIVADO: O APARTAMENTO NA HISTÓRIA

3.1.1 Antecedentes do apartamento moderno

3.1.1.1 As insulae

A origem propriamente dita dos prédios de apartamentos encontra-se, conforme referido acima, no período final do Império Romano, onde edificações de até cinco pavimentos de altura – as insulas - demonstravam o esplendor da vida urbana, especialmente nas cidades de Roma, Pompéia e Óstia. Contudo, à medida que este Império declinava e, por conseqüência, as cidades antigas se despovoavam,

tais edifícios foram, aos poucos, sendo abandonados15. Não se tem dúvida do caráter

de modernidade que as insulae representaram nestas cidades e dos serviços que prestavam. Mas, apesar desta urbanização intensa fascinar pela sua modernidade,

impõe-se naquele momento como excepcional, mesmo no Ocidente16.

Foi com o crescimento da população, a partir do século III a.C., que Roma atingiu um estilo de vida de grande cidade, que voltará a alcançar, somente em finais do século

XIX17. As conseqüências deste crescimento foram a formação de um proletariado urbano,

a especulação do solo, o aparecimento de subúrbios e uma escassez permanente de habitação. Para a massa da população carente de habitações, foi então criado um novo tipo de moradia: a casa de aluguel, constituída, sobretudo, de pequenos apartamentos

(Cenacula)18. As primeiras destas insulae surgem mediante transformações, elevações

e agrupamentos de casas de átrio19. O preço elevado dos aluguéis obriga numerosos

locatários a sub-alugar parte do seu apartamento, o que agrava a promiscuidade20.

A característica da insula em abrigar mais de uma função não era novidade para a tipologia da habitação unifamiliar. Em vários exemplos de domus, os compartimentos junto à fachada da frente, laterais ao vestíbulo de entrada, a fauces, eram espaços dedicados à prestação de serviços, normalmente constituído pelo comércio do próprio dono da habitação. Nas insulae, o térreo apresentava total ou parcialmente depósitos ou armazéns. Poderia também ser ocupado por lojas (tabernae) ou por um só apartamento que lembrava a casa unifamiliar, a domus,

15 RYKWERT, 2004, p. 100.

16 Mesmo no Ocidente, onde o modelo romano se desenvolveu sem contestação. As cidades provinciais,

submetidas ou não a um esquema de diretrizes, apresentam um habitat extensivo, fundado na habitação familiar. HOLTZMANN, p. 4.

17 A densidade da população da Roma Imperial se calcula em uns 80.000 habitantes/km², com cifras

muito superiores no centro da cidade. (MÜLLER, 1995, p. 225).

18 Por volta de 350, os quatorze bairros de Roma compreendem 46.602 “insulae” para 1.797 “domus”.

HOLTZMANN, p. 3.

19 MÜLLER, 1995, p. 225. 20 HOLTZMANN, p. 3.

enquanto que os andares superiores sempre eram divididos em apartamentos

menores21(Fig. 110).

Ainda, um grande número de janelas de grandes dimensões era característica da insula bem como a ausência de quartos de banho, cozinhas, chaminés ou latrinas identificáveis; e também o fato de que embora as ruas fossem servidas de água,

esta não chegava acima do piso térreo22. O conforto era rudimentar, sobretudo em

Roma: sem calefação nem água nos andares superiores, somente braseiros eram permitidos para a cozinha e aquecimento por causa da freqüência dos incêndios. Sem cozinhas nem instalações sanitárias estes imóveis de cinco andares são levados rapidamente a se transformarem em cortiços, pocilgas.

A verticalização se dava em habitações de múltiplos pavimentos,

provavelmente quatro ou cinco23, e cada pavimento reproduzia a planta dos

pavimentos inferiores, ou seja, sua estrutura e os materiais usados eram os mais Fig.110 - Casas Urbanas de vários pisos.

Fonte: MULLER, 1995, p. 224.

21 HOLTZMANN, p. 3.

22 ROBERTSON,1997, p. 365,366.

23 É possível deduzir com alguma segurança o número original de pavimentos a partir da espessura

das paredes que se conservaram, da altura dos pavimentos remanescentes e do limite legal de aproximadamente 21 m fixado por Augusto para Roma e reduzido por Trajano; é possível que Nero tenha renovado o primeiro ou antecipado o segundo depois do incêndio de 64 d.c. (ROBERTSON,1997, p. 365,366).

tradicionais possíveis. As casas formavam fileiras contínuas de plantas quase idênticas e presumivelmente altura idêntica, com estreitos becos cobertos localizados a determinados intervalos, apenas no nível térreo. Os diferentes pavimentos eram totalmente independentes, formando pisos muitas vezes subdivididos, eles próprios, em conjuntos separados, cada qual com um ou dois cômodos maiores que os restantes.

Pouco a pouco a oferta de vivendas deste tipo vai se diferenciando segundo os diversos grupos de inquilinos. As leis imperiais da construção tendem a regulamentar esse desenvolvimento. Entre outras coisas, se fixa em várias ocasiões a altura máxima das casas de aluguel e, finalmente, Trajano estabelece em 60 pés

romanos, equivalentes a 17, 60 m24. De quatro a cinco pisos poderia ser construído,

sete a oito já era considerado perigoso.

Se utilizar um edifício para mais de uma função não era tão inovador conforme referido antes, o conceito de habitação coletiva era sim uma grande novidade para a sociedade ocidental. Morar coletivamente significava dividir equipamentos, serviços e privacidade. Em contrapartida, a vida coletiva proporcionava muitas das necessidades domésticas. Usar a mesma fonte no centro do pátio, a latrina que se localizava no térreo, o lazer, os alimentos e as comodidades, faziam parte de um sistema coletivo, em que a comunidade urbana desenvolvia, fora de casa, a maior parte da vida social.

Também a relação destes edifícios – as insulae - com a paisagem urbana era inovadora, mas ao mesmo tempo preservava características já conhecidas das grandes casas unifamiliares das elites da sociedade romana, as já

mencionadas domus, tipologia que preservava o pátio central25. Uma das

inovações estava nos balcões. Os apartamentos menores abriam-se para as ruas por largas aberturas em balcão, criando uma animação urbana como nunca havia sido vivenciada. O balcão favorecia uma relação entre o espaço privado dos apartamentos e público das ruas, cujos traçados eram, muitas vezes, tortuosos. Outra relação nova entre a insula e a cidade se dava a partir dos acessos, as escadarias de pedras em intervalos regulares, que davam

24 MÜLLER, 1995, p. 225.

25 As insulae tinham, normalmente, uma fonte no pátio central, e no térreo se localizava uma latrina.

diretamente para a rua, na maioria das vezes ruelas, ligavam os pavimentos de

apartamentos diretamente ao espaço público (Fig. 111 e 112).

Estas ruelas não estavam presentes em Óstia, por exemplo. As insulae, inscritas num tecido urbano mais regular e menos denso, parecem ter sido mais salubres e agradáveis, mesmo alojando de cento e cinqüenta a trezentas pessoas. É que Óstia era uma cidade nova, planificada, destinada a descongestionar o porto do Tibre, que recebia cerca de dez milhões de sacas de trigo, necessárias a cada ano, para o abastecimento de Roma.

Algumas das melhores e mais antigas insulae foram encontradas em Pompéia, por vezes bastante alteradas. Algumas das ruas eram margeadas por arcadas de pilares, com colunatas abertas na parte superior. A impressão geral da cidade como um todo, segundo o parecer unânime dos observadores, é surpreendentemente moderna; se pensarmos em Roma, é evidente que a cidade do fim do período imperial diferia muito menos, em termos de aparência externa, de uma cidade do século XX do que normalmente se presume.