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3.4 O espaço privado das elites em Porto Alegre

3.4.2 Funcionalidade no apartamento

Na Revista do Globo, edição especial de 1958, há um capítulo inteiro dedicado à casa, mobiliário e organização interna, com o título: ‘A casa: sua organização – seu arranjo’. Ocupa-se em ensinar o modo de usar as máquinas e dispor os móveis, utilizando como exemplo uma das casas que é referência do Movimento Moderno no Brasil: a Casa de Vidro da arquiteta Lina Bo Bardi (Fig. 150 e 151). Tanto o seu exterior como interior são usados como exemplos, na sua forma e sua funcionalidade. Também é apresentada a casa do Dr. B., de autoria do arquiteto Villanova Artigas, representante do modernismo em São Paulo.

114Folha da Tarde, 03/03/1954. 115Folha da Tarde, 11/02/1954.

150 151 Fig.150 - Casa de vidro, arquiteta Lima Bo Bardi, São Paulo. Fonte: Enciclopédia da Mulher, 1958, p. 86.

Fig.151 - Interior da casa de vidro. Fonte: Enciclopédia da Mulher, 1958, p. 86.

O vidro é largamente empregado nas casas modernas; hoje em dia o conceito de casa é muito diferente do adotado a alguns anos atrás, o ar e a luz nela devem entrar, a fim de fazer com que atmosfera seja alegre. (...) Essa casa (Lina Bo Bardi), em cimento armado e aço, mostra claramente o caráter da arquitetura contemporânea: vidro e claridade. A parte completamente envidraçada é a sala de estar, de um amplidão especial. Um pátio aéreo assegura um sistema de ventilação cruzada. (...) As cores são o branco, o cinzento e o vermelho- fogo para as partes metálicas.116

O interessante é que estas Revistas ou Enciclopédias eram dedicadas ao público feminino e tinham o objetivo semelhante a um manual, buscando ensinar as mulheres a serem donas de casas cultas, nos assuntos que eram pertinentes a seus afazeres, modernas, atualizadas e femininas. O tom do texto reflete exatamente essa forma de organizar a casa e o modo de viver em família. Era característico da época dar um teor moderno à dona de casa. Isso se verifica no despojamento dos mobiliários indicados para serem usados, nas vestimentas das mulheres e na maneira de desaconselhar o uso de móveis e acessórios, como cortinas, muito decoradas ou que demonstrassem algum estilo do passado (Fig. 152 e 153).

A escolha de objetos de adorno é também capital: nada de mulheres, coelhinhos, animaizinhos de péssimo gosto. É muito melhor terem- se cerâmicas populares, esculturas de madeira ou vasos de barro. A produção popular tem caráter artístico, e vale muito mais uma vaca

152 153 Fig.152 - Indicação da cortina a ser usada na habitação moderna.

Fonte: Enciclopédia da Mulher, 1958, p. 89.

Fig.153 - Indicação da cortina a ser usada na habitação moderna. Fonte: Enciclopédia da Mulher, 1958, p. 89.

pintada de vermelho de Pernambuco, do que uma dama vestida de rendas, das fabricadas em serie pelas manufaturas européias, cuja produção não tem mais valor a um século. (...) Se não tiver meios para comprar uma cerâmica de Picasso, recorra a um vaso de barro daqueles em que o povo guarda gordura, ou uma bilha em que se guarda leite. Como valor estético, estarão no mesmo plano da primeira, enquanto isso não acontecerá com o cachorro, ou o elefante de porcelana alemã ou da tchecoslováquia cujo preço atingirá quase o da cerâmica de Picasso.117

Os equipamentos e eletrodomésticos para a moradia moderna são oferecidos especialmente para o setor da habitação que mais se envolve com o serviço: a cozinha. As tarefas de armazenamento, lavagem, preparo e cocção são agilizados com novas e cada vez mais eficientes máquinas que utilizam tecnologias inovadoras para a modernização do trabalho doméstico. A cozinha é o maior exemplo, pois cada equipamento é detalhado o seu uso, e seu manuseio. A mecanização é fundamental na cozinha contemporânea, facilitando o trabalho domestico e a manutenção da higiene. O balcão contínuo de aço inoxidável, a máquina de lavar pratos e copos, armários com portas movediças, e a iluminação feita por refletores, são alguns dos

predicados obrigatórios à cozinha118(Fig. 154, 155 e 156).

117ENCICLOPÉDIA DA MULHER, 1958, p. 86.

118Na verdade, a preocupação com uma organização mais racional do espaço de cozinha em

apartamentos parisienses encontra-se presente desde o início do século XX. Assim, a diminuição efetiva de domésticas (por motivos que não cabe analisar aqui) e a possibilidade da crescente racionalização em equipamentos colocam o planejamento do espaço da cozinha como um elemento central da preocupação dos arquitetos. Ver, a respeito: ELEB, Monique; DEBARRE, Anne. L’invention

de l’habitation moderne. Paris 1880-1914. Paris: Hazan/Archives d’architecturemoderne, 1995, p.

125 e seguintes. A respeito da penetração intensiva de equipamentos mecanizados em residências e apartamentos europeus e norte-americanos, ver: GIEDION, S. La mecanizacion au pouvoir. Vol. 3:

Fig.154 - Imagem de uma cozinha moderna. Fonte: Enciclopédia da Mulher, 1958, p. 91.

Fig.155 - Exemplo de uma cozinha moderna com comedor. Fonte: Enciclopédia da Mulher, 1958, p. 91.

Fig.156 - Imagem de uma cozinha moderna com dimensões reduzidas. Fonte: Enciclopédia da Mulher, 1958, p. 91.

155 156 154

Fig.157 - Edifício FAM - cozinha. Fonte: Laboratório de História e Teoria do UniRitter. Fig.158 - Edifício FAM - sala de jantar. Fonte: Laboratório de História e Teoria do UniRitter. Fig.159 - Edifício FAM - sala de estar. Fonte: Laboratório de História e Teoria do UniRitter.

Fig.160 - Edifício FAM - integração da área social. Fonte: Laboratório de História e Teoria do UniRitter.

157 158

159 160 No interior dos apartamentos modernos de Porto Alegre essas normas eram seguidas com o máximo de precisão. O exemplo da cozinha dos apartamentos do Edifício FAM mostra a disposição perfeitamente alinhada com a funcionalidade exigida na época.

Na Rua 24 de Outubro, o exemplo é da cozinha do Dr. Osvaldo Ludwig, revestida com chapas de ferro esmaltado, nas paredes e no teto. O mobiliário, feito sob medida por marceneiro de Novo Hamburgo, é todo em madeira de lei, com as

portas pintadas em esmalte branco (Fig. 157, 158, 159 e 160).

Não se pode esquecer que o público alvo destes anúncios é do gênero feminino. É a dona de casa, que aos poucos se adapta as novas condições da vida moderna, precisando muitas vezes sair de casa em horários que normalmente cuidava dos afazeres domésticos para trabalhar e aumentar a renda da família. Além disso, um novo status e significado aparecia com esta independência da mulher moderna. As famílias a quem se dirigem os anúncios em questão são aquelas das elites da cidade que habitam nos bairros em desenvolvimento e buscam

adequar-se ao novo modo de morar que os apartamentos oferecem. Veremos que a própria cozinha altera sua dimensão para menor, em função das áreas disponíveis nos edifícios e pelo valor dos imóveis em zonas altamente valorizadas.

O tom de apresentação do autor pretende apresentar os temas pedagogicamente, ou seja, tentando ensinar a dona de casa como é o novo modo de morar, moderno, mais prático, mais econômico e mais eficiente. As ilustrações e imagens apresentadas como exemplo são de fundamental importância para reforçar o aprendizado das mulheres. A propósito, este tipo de enciclopédia era oferecido como presente dos noivos para as futuras esposas que, depois de casadas, apresentavam o conteúdo ricamente ilustrado para suas filhas, que desde crianças se acostumavam com as novas maneiras e formas de morar.

Embora em nenhum momento os anúncios de eletrodomésticos apareçam relacionados diretamente com os apartamentos modernos, fica clara a relação entre o tipo de moradia e a categoria de seus moradores. O edifício de apartamentos tornou-se símbolo do luxo, do bom gosto e do morar moderno. Morar em apartamento tornou-se um passaporte reconhecido para a ascensão social.

O APARTAMENTO: ARQUITETURA E O MODO DE MORAR NA RADIAL INDEPENDÊNCIA E 24 DE OUTUBRO

O presente capítulo apresenta os edifícios de apartamentos da radial Independência/24 de outubro e faz uma análise das partes – cada unidade habitacional - e do todo - o edifício no seu entorno imediato. O ponto de partida para esta análise é o projeto arquitetônico: são os elementos mínimos para o entendimento da concepção espacial de tais edifícios, tais como plantas baixas, cortes, fachadas e perspectivas. O objetivo principal é identificar como moravam as elites porto-alegrenses em Porto Alegre na década de cinqüenta. As tradições e novidades tiveram de conviver e de adaptar-se conforme as novas situações sociais. Condições estas que também dependiam de sua localização na radial. Depois de estudar a paisagem urbana com seus componentes e suas sociabilidades através dos bairros Independência e Moinhos de Vento, os edifícios serão apresentados de duas formas: primeiro conforme sua localização na radial, sempre que formarem “conjuntos urbanos” importantes os edifícios serão agrupados para análise, como em praças ou esquinas; segundo, conforme suas características funcionais e/ou formais, indicando grupos de edifícios com

semelhanças. Estes foram denominados “edifícios símbolo”1 para as elites dos

anos cinqüenta em Porto Alegre.

A situação urbana de um objeto arquitetônico é fundamental para sua caracterização. Morar em uma zona úmida da cidade é diferente de morar em uma colina arejada e ensolarada. Ou então ter seu dormitório de frente para uma grande avenida, movimentada de automóveis, é diferente de tê-lo voltado para uma praça arborizada. A análise do universo dos edifícios de apartamentos deve levar em consideração sua localização na cidade, no bairro e em cada lote. A orientação solar, a incidência de ventos, as visuais, as relações com os demais edifícios do entorno físico interferem na proposta de cada prédio e de cada apartamento.

As fontes para o presente estudo não se limitaram aos projetos arquitetônicos dos edifícios de apartamentos. Mas estes foram o ponto de partida para indicar as adequações dos espaços aos seus moradores. Neste sentido, os órgãos municipais têm seu papel no registro e na memória da arquitetura. Os projetos encaminhados à Prefeitura Municipal para aprovação são referência para estudos dos ideais dos arquitetos e engenheiros de um tempo e dos modos de morar das elites, no caso em estudo. Os jornais de grande circulação da época foram outra fonte preciosa, apresentando os grandes empreendimentos, alardeando as novidades e os custos de tais modernidades. Estes talvez sejam os documentos que mais contam a história dos modos de morar de grupos sociais. Há, ainda, a história contada, pelos próprios moradores, que fornecem ricos subsídios, identificando mudanças e alterações do cotidiano. É a história oral que, através de entrevistas com alguns dos moradores dos apartamentos, relatam os modos de morar.

Ao analisar os elementos da forma arquitetônica, devemos nos ater, primeiramente, ao termo “forma arquitetônica”. Forma é um termo bastante amplo e com diversas conotações, sendo enfocada neste estudo sob o ponto de vista da estrutura plástica da obra arquitetônica.

1 A expressão “edifícios símbolo” foi utilizada no capítulo IV da tese de doutorado de Nara Machado,

com a intenção de destacar as várias edificações no cenário da cidade, tanto por sua altura como por apresentarem características formais diferenciadas em relação ao historicismo dominante em Porto Alegre até o início da década de 40. (MACHADO, 1998, p. 318 – 334). Na presente tese, os edifícios símbolo possuem a mesma intenção de destaque, porém, por estarem situados na radial em estudo e por constituírem-se em edifícios de apartamentos projetados no período em estudo.

Assim, a forma arquitetônica é constituída por três elementos básicos: o volume, a superfície e o espaço. A combinação e inter-relação dos referidos elementos resultam na unidade da obra arquitetônica. Teoricamente, é possível analisar cada um dos elementos isoladamente, lembrando que a concepção plástica do projeto é resultado da análise da forma global. Os atributos da forma arquitetônica são a linha, a luz, a cor, a textura; e sob o ponto de vista da organização os princípios são de unidade, multiplicidade, equilíbrio, proporção, ritmo, harmonia, simetria, verticalidade, horizontalidade, etc.

O volume é a própria configuração da matéria construída, que expressa a tridimensionalidade física da arquitetura e pode, inclusive, predominar a sensação plástica, assumindo uma ênfase especial como forma geométrica pura. A disposição dos volumes expressa a intenção primeira da obra, racionalmente ordenada ou organicamente desenvolvida. A observação dos volumes é feita, normalmente, no exterior da obra; porém, também pode-se considerar volumes de espaços internos. Para expressar a importância do volume na configuração da forma arquitetônica Le Corbusier usou o seguinte enunciado no conceito de arquitetura: “A arquitetura

é o jogo sábio, correto e magnífico dos volumes reunidos sob a luz”2.

A superfície é definida como parte exterior e visível dos corpos, os limites externos. Assim, os volumes arquitetônicos são compostos de planos que são as suas superfícies internas e externas: as paredes, as coberturas e os pisos. É no tratamento das superfícies que reside normalmente a decoração da obra arquitetônica, ou seja, se integram a pintura e a escultura. Também no tratamento da superfície aparece a textura, qualidade própria, que está ligada à natureza das materiais empregados. A superfície pode assumir valor superior ao volume, mas normalmente tenderá a realçar suas formas. Parafraseando Le Corbusier, o mestre diz que “um volume é envolvido por uma superfície, uma superfície que é dividida conforme as diretrizes e as geratrizes do volume, marcando a individualidade deste

volume.”3

Espaço é o oposto da matéria, é o que deixou de ser construído, o vazio que circunda a obra arquitetônica (espaço exterior) e os vazios interiores da obra, que lhe dão a razão de ser arquitetônica (espaço interior). O espaço arquitetônico

2 LE CORBUSIER, 1981 , p. 21. 3 LE CORBUSIER, 1981 , p. 19.

pressupõe a presença humana, o penetrar, o mover-se, o habitar. É o espaço interior que dá a especificidade da obra arquitetônica, é a expressão maior, diferencia-o da escultura tradicional. Neste estudo do espaço deve-se considerar a planta, símbolo gráfico do espaço arquitetônico, através da qual podemos identificar a intenção que moveu a obra. O espaço pode ser considerado o gerador da obra arquitetônica, na medida em que de sua disposição depende a configuração da obra, a qual se gera de dentro para fora ou pela disposição geral dos volumes que gera uma obra de fora para dentro. Ainda, o espaço exterior participa da obra como parte integrante ou como mera moldura, mas deve ser sempre pensado como entorno na qual a obra se insere, e com o qual se relaciona.

No movimento moderno, a forma é tomada como resultado da funcionalidade do edifício. A teoria do funcionalismo enfatiza um processo de determinação formal, baseado em considerações programáticas e técnico-construtivas, e uma rejeição total à idéia de que precedentes históricos e métodos tradicionais podem úteis ao processo de criação de objetos arquitetônicos. Então, a partir dos aspectos expostos, apresentar-se-á uma análise formal de dois edifícios construídos na década de 50, em Porto Alegre.