• Nenhum resultado encontrado

1.2 Arquitetura Moderna em Porto Alegre: ideais e construções

1.2.3 Herança do Movimento Moderno

Há cidades que param, deixam de se transformar pela ausência de diálogo entre espaço e tempo. Deveriam, por isso, não mais ser chamadas de cidades,

mas de museus ou cenários de turismo, ou talvez como observa Santos141 de

cemitérios. Não é o caso da radial das elites, que se transformou e muito. Talvez seja esta radial um bom exemplo para um início de reflexão a respeito destas transformações e das convivências proporcionadas pelas mudanças.

Quarenta ou cinqüenta anos depois de sua construção, os bairros desenvolvidos pelo Movimento Moderno, sob o signo do higienismo e do progressismo, entraram num ciclo de degradação física que levou os poderes públicos a empreender importantes operações de reabilitação ou remodelação

desses lugares142. O que hoje aparece na Avenida Independência, especialmente,

é uma colagem, um panorama que expressa os diferentes tempos vividos na história

141SANTOS, Projeto nº 86, p. 59. 142PANERAI, 2004, p. 225.

da via. Convivem diferentes tipologias: casa, sobrado, edifício de 4 pavimentos, edifícios de mais de 10 pavimentos, encostado nos limites, torres soltas no lote, casarões com torres nos fundos.

Os fatores que possibilitaram esse panorama? Muitos e muito complexos. Entretanto dois destes fatores devem ser apontados aqui como uma resposta, mesmo que temporária, aos dados apresentados anteriormente. O primeiro está no âmbito da cidade. As diferentes etapas de planejamento de Porto Alegre certamente têm sua parcela de responsabilidade sobre a constituição desse panorama. O Plano Diretor de 1959 imprimiu diretrizes que, se tivessem sido aplicadas, teriam marcado profundamente a forma urbana. A intenção de criar um novo parcelamento do solo, por exemplo, teria sido desastrosa se tivesse sido colocado em prática. Mas os limites de áreas construídas, alturas e ocupação do solo causaram, sim, cicatrizes que jamais serão apagadas. A intenção era coerente e buscava a solução de um problema que era contemporâneo: o crescimento da população, da modernidade e, por sua vez, a necessidade cada vez maior de aproveitar mais os melhores e mais nobre locais da cidade. Sem entrar na questão da especulação imobiliária, a idéia de cidade funcional seria a solução, se partíssemos do princípio de que partes da cidade seriam completamente demolidas e reconstruídas nos moldes previstos.

Utopia, talvez. O que se verificou foi a implantação, em muitos terrenos da radial das elites, dos índices e previsões do Plano Diretor, justamente porque estas elites tinham condições econômicas de financiar tais alterações. Em muitos, mas não em todos, como era a intenção, quem sabe, dos idealizadores da cidade. E isto é facilmente explicável, inclusive com um argumento já acima referido: cidades que param. Assim, por motivos que não nos cabe analisar neste trabalho, pois fogem ao período escolhido, a cidade não parou, a radial se estendeu ainda mais, as novas elites foram se estabelecendo em diferentes locais, entre os quais, o bairro Boa Vista seria o próximo. E a radial Independência/24 de Outubro ficou com o projeto interrompido.

Retomando a questão sobre “que partes da cidade seriam completamente demolidas”, pode-se dizer que este tipo de pensamento estava em acordo com os ideais urbanos da época, a maioria destes regidos pela Carta de Atenas. Parece que a renovação completa das cidades, ou de partes delas, era cobiçada, mesmo que estas não tivessem passado pelas destruições de uma guerra. Era a vontade de implementar o Movimento Moderno em Porto Alegre, além dos limites centrais.

143PIÑON, Hélio. “Recuperação, salvaguarda e valorização do patrimônio arquitetônico”. In: Congresso

sobre Patrimônio Arquitetônico. Porto: Portugal, mar. 1999.

144PIÑON, 1999, s/p.

145A polêmica entre Edgar Graeff e Demétrio Ribeiro foi apresenta nas páginas 68-37, desse capítulo.. 146SANTOS, Projeto nº 86, p. 60.

E o patrimônio arquitetônico? A população em geral e os profissionais em particular não se interessavam por manter sua cultura? Não queriam registrar os espaços que foram palco de acontecimentos marcantes das elites nas décadas de 10 e 20, na Independência, por exemplo?

Mas enfim, o que é patrimônio? Quem cuida deste? O que pensavam os profissionais na época? Tais questões são complexas e de extensa resposta, que se delineia fora dos limites deste estudo. Entretanto, não se podem deixar de assinalar as principais questões que ampliarão os horizontes desta reflexão. Hélio

Piñon143, ao apresentar suas idéias sobre projeto e patrimônio, salienta o conceito

de patrimônio, sobre que, para a avaliação constante dos espaços urbanos, é importante manter clareza.

(...) o patrimônio, em termos gerais, significa o conjunto de bens que alguém recebeu em herança ou transmissão. No nosso caso, patrimônio arquitetônico seria o legado, cuja preservação garantiria a consciência histórica que um conjunto social tem do âmbito espacial de onde se encontra; não é exagerado aventurar que dessa consciência depende a capacidade do homem para ordenar o espaço construído no futuro. 144 O segundo fator a ser analisado está no campo das idéias. Foi apresentada

anteriormente a polêmica entre Demétrio Ribeiro e Edgar Graeff145 que tratava da

estética da arquitetura moderna. Mas será que a construção da cidade, especialmente da radial, teve tempo para assimilar o conteúdo importantíssimo da polêmica? Ou será que foi atropelado pelo “boom” imobiliário, que buscava a todo custo oferecer habitação, para as elites, no lugar desta na cidade, isto é, na Independência/24 de Outubro?

De acordo com Santos146, “nas cidades o espaço fala.” Os lugares, por serem

como são, dizem uma porção de coisas para bastante gente. Falam de uma organização econômica que, por sua vez, se refere a uma estrutura social, que se realiza através de modos de vida característicos, configurando, assim, sua cultura. E, participar de uma cultura é estar em casa, dentro dela, dominando uma certa quantidade de códigos classificatórios.

TEMPO E ESPAÇO NA RADIAL INDEPENDÊNCIA / 24 DE OUTUBRO: A HISTÓRIA DE DOIS BAIRROS ATRAVÉS DE SUAS PRINCIPAIS VIAS

Visto o contexto amplo em que a cidade surgiu e se desenvolveu, e sua relação com o problema da habitação, passamos a analisar a história da radial Independência/24 de Outubro através dos respectivos bairros, Independência e Moinhos de Vento. A qualidade da infra-estrutura, do lazer, dos serviços, enfim, dos modos de vida das pessoas que usufruíam desses bairros, é elogiável desde o século XIX. Especialmente em torno da década de 50 do século XX, a radial acentua feições modernas no que diz respeito às suas sociabilidades, seus serviços, seu lazer, comércio e, principalmente, na verticalização das suas edificações. O presente capítulo visa apresentar a história dos bairros através da sua principal artéria, enfocando suas convivências ao longo do tempo: convivências de usos, público e privado; convivências de grupos sociais, elites e populares; convivências de etnias, portugueses, alemães e descendentes; convivências de tempos, antigo e moderno.

Na evolução urbana, as primeiras áreas caracterizadas e delimitadas são as correspondentes às paróquias que, atendendo inicialmente à distribuição do serviço de registros de nascimentos, casamentos e óbitos, serviram, também, como divisão territorial para os trabalhos administrativos da Câmara de Vereadores, no Império, inclusive repartição de distritos eleitorais. Mais tarde, nova divisão territorial foi admitida para os distritos policiais.

Até o final do século XIX, o conceito de bairro permanecia com a antiga conotação sentimental, algumas vezes ligado à paróquia, quando a igreja se constituía como principal centro de interesse, capaz de estabelecer o sentido de vizinhança; outras vezes, ligado à produção, como é o caso da Azenha (moinho d’água) ou a logradouros de especial importância, como Bom Fim (campos do) e Partenon (templo da razão, pretendido pela Sociedade Partenon Literário).

Fato é que, em meados do século XIX, já se esboçavam pequenos núcleos populacionais próximos à cidade, os chamados arraiais, que futuramente seriam incorporados à malha urbana e que hoje formam bairros de Porto Alegre. Eram eles: o arraial do Menino Deus, junto à Praça do Menino Deus; o arraial dos Navegantes, junto à atual Igreja Nossa Senhora dos Navegantes; o arraial de São Manoel, em torno da atual Praça Maurício Cardoso; o arraial de São Miguel, no Bairro Santana. Todos eles tinham uma característica semelhante, que era o

agrupamento de casas nas proximidades de uma capela1.

A artéria de cota topográfica mais alta de Porto Alegre sempre manteve uma atividade ao longo de sua história: a habitação. A Avenida Independência/24 de Outubro, desde a sua abertura, possuía como característica principal a presença de moradias, especialmente para a elite, desde o início do século XX. A Avenida Independência afirmou-se como um dos locais prediletos da moradia burguesa. Os palacetes construídos entre 1900 e 1930 expressam um momento histórico de prosperidade do comércio e da indústria porto-alegrense. Casas de saúde, hospitais, escolas, comércio, teatros, cinemas, enfim, todo o tipo de prestação de serviços era oferecido na radial em estudo, mesmo que em diferentes momentos. Mas as habitações para as elites permaneceram. É sobre essas habitações, que a partir da década de 40 mudaram a feição da radial, que serão investigadas as relações com seu entorno imediato.

16 16

17

Fig.16 -Foto satélite de Porto Alegre, identificando a Avenida Independência e a Rua 24 de Outubro. Fonte: Fotos Aéreas de Porto Alegre.

Fig.17 - Vista Aérea de Porto Alegre na década de 50. Fonte:Laboratório de História e Teoria do UniRitter.

16

17 A respeito de sua morfologia, dois aspectos são importantes: sua origem e a configuração dos espaços abertos. O início da Avenida Independência se dá na Praça Dom Feliciano, um espaço aberto de características marcantes desde a fundação da cidade. Porém, cabe analisar se essa avenida seria uma continuação

A Rua dos Andradas, a mais antiga das ruas de Porto Alegre, aquela que defrontava o “porto de Viamão”, foi onde se estabeleceu a primeira capela da povoação. Rua da Graça, rua da Praia, rua dos Andradas: sua história é repleta de acontecimentos desde 1781 e palco das cenas urbanas mais vividas e contadas da cidade. Era lugar de moradia, de serviços, de lazer, de circulação, de se ver e de ser visto; lugar de badalação, de compras, de circulação pedonal e de veículos. Trata-se de uma rua com uma vocação de vida urbana, de trocas, de convivências, de sociabilidades características do centro de uma cidade. Apresenta feições antigas, que foram permanecendo ao longo do tempo, e feições modernas, que foram se incorporando ao organismo sempre em movimento desse espaço.

A Rua Duque de Caxias, que fez conjunto com a dos Andradas e a Riachuelo como os principais eixos de ocupação da cidade, possui um status diferente. Antiga e tradicional da zona central, tortuosa por se desenvolver no topo da colina onde a cidade nasceu, teve uma ocupação de atividades privilegiadas: rua Formosa, rua da Igreja, rua do Hospital, rua Duque de Caxias. À rua pertenciam três espaços abertos que desde o século XIX foram ajardinados para o seu embelezamento: a praça da Matriz, a praça Conde de Porto Alegre e a praça General Osório. Uma das praças mais importantes de Porto Alegre, rodeada dos diferentes poderes urbanos, a Praça da Matriz tem sido o ponto alto desta rua. Poder, religião, política, cultura, economia são os setores que envolvem a praça, através da Igreja da Matriz, do Palácio do Governo, do Palácio da Justiça, do Teatro São Pedro e da moradia das figuras ilustres de Porto Alegre, como o Visconde de São Leopoldo. Desde o início, a rua ostentou alto padrão de vida e com grande número de moradores.

Lá no alto da colina, na Rua Duque de Caxias, antiga Rua da Igreja, morava a burguesia apatacoada dos tempos coloniais; lá estão ainda algumas de nossas mansões mais tradicionais, com seus portões pesados e imponentes, seus azulejos, seus jardins com estátuas, seus móveis vetustos e seus fantasmas. Naquela rua fica o Palácio do Governo, a Casa da Assembléia dos representantes, a Catedral (...).2

A Avenida Independência herdou da Rua dos Andradas a característica de ser um lugar de moradia, de serviços, de lazer, de circulação, de se ver e de ser visto, lugar de badalação, de compras, de circulação pedonal e de veículos. Assim como a Andradas, a Independência configurou-se como uma rua de vocação de

vida urbana, de trocas, de convivências e de sociabilidades. Herdou, também, da Rua Duque de Caxias o status do alto padrão de vida de seus moradores, a cultura através de teatros e cinemas, e uma estruturação urbana ancorada em espaços abertos em que as praças que ao longo do eixo são excepcionalidades ritmadas pelo fôlego de que a radial necessita para o seu crescimento. Muitas cidades possuem o tecido urbano ordenado segundo uma sucessão de praças, como Roma

e Montpelier, por exemplo3. A radial em estudo parece se desenvolver da mesma

forma.

São esses espaços abertos, praças, segmentos de ruas e algumas esquinas que irão nos contar a história da radial. Analisando os elementos do espaço aberto, como vegetações, equipamentos, pavimentações, usos, limites e as cenas urbanas, que revelam os modos de viver dos bairros, veremos a sua história até a década de 50.