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3. A CONVENCIONALIZAÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO ESTATAL

3.2 A ORIGEM DO CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE

O dever de convencionalização do ordenamento jurídico doméstico, representa o reconhecimento de que atualmente há uma grande interpenetração das normas internacionais de direitos humanos e as normas de direito interno, o que acaba por influenciar de maneira significativa a ordem jurídica interna274, confluindo para adoção

de mecanismos de controle dessa adequação do ordenamento.

O mecanismo do Controle de Convencionalidade atualmente aplicado na América Latina tem sua origem terminológica associada à decisão nº 74-54 do Conseil

Constitutionnel, na França275.

Instado a se manifestar acerca da constitucionalidade da Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez, então adotada naquele país, dito Conselho reconheceu que, nos termos do Art. 61 da Constituição Francesa, competia ao Conseil Constitutionnel analisar apenas a constitucionalidade das leis aprovadas pelo parlamento, bem como reconheceu que, nos termos do Art. 55 da mesma Constituição, os tratados e acordos internacionais ratificados e em vigor naquele país teriam hierarquia normativa superior

274 GUERRA, Sidney. A Proteção Internacional dos Direitos Humanos no Âmbito da Corte

Interamericana e o Controle de Convencionalidade. Nomos: Revista do Programa de Pós-Graduação

em Direito da UFC. V. 32.2, jul./dez. 2012. p. 356.

275 SCHAFER, Gilberto; RIOS, Roger Raupp; LEIVAS, Paulo Gilberto Cogo; GOMES, Jesus Tupã

Silveira. Os controles de convencionalidade tradicional e interamericano: institutos distintos ou

duas faces da mesma moeda? Revista de Direito Internacional UNICEUB. Vol. 14, nº 3. Brasília: 2017.

às leis ordinárias, declinando, assim, da análise de conformidade da lei à luz do tratado internacional vigente.276

No referido julgamento, o Conseil Constitutionnel reconheceu que se exigiam dois modelos distintos de controle normativo, um deles seria a análise da conformidade da lei com a própria Constituição, ou seja, o Controle de Constitucionalidade, e o outro seria a análise de conformidade da lei com os tratados e acordos internacionais (no caso em discussão, com a Convenção Europeia de Direitos do Homem), ou seja, o Controle de Convencionalidade.277

Percebe-se que, além da utilização analógica à expressão Controle de Constitucionalidade, que resultou na utilização da expressão Controle de Convencionalidade, o Conselho Francês reconheceu a impossibilidade de análise acerca da aplicação qualificada das normas provenientes do direito internacional a partir da utilização dos mecanismos de controle normativo tradicionalmente utilizados.

Segundo a decisão do Conseil Constitutionnel, a análise de conformidade de uma lei à luz de um tratado internacional difere do Controle de Constitucionalidade pelas características peculiares ao próprio instrumento de acordo internacional, o que exigiria um mecanismo diferente para correta aferição.278

276 Décision n° 74-54 DC du 15 janvier 1975: ‘‘Loi relative à l'interruption volontaire de la grossesse.

Ouï le rapporteur en son rapport; 1. Considérant que l'article 61 de la Constitution ne confère pas au Conseil constitutionnel un pouvoir général d'appréciation et de décision identique à celui du Parlement, mais lui donne seulement compétence pour se prononcer sur la conformité à la Constitution des lois déférées à son examen ; 2. Considérant, en premier lieu, qu'aux termes de l'article 55 de la Constitution : "Les traités ou accords régulièrement ratifiés ou approuvés ont, dès leur publication, une autorité supérieure à celle des lois, sous réserve, pour chaque accord ou traité, de son application par l'autre partie." ; 3. Considérant que, si ces dispositions confèrent aux traités, dans les conditions qu'elles définissent, une autorité supérieure à celle des lois, elles ne prescrivent ni n'impliquent que le respect de ce principe doive être assuré dans le cadre du contrôle de la conformité des lois à la Constitution prévu à l'article 61 de celle-ci ; 4. Considérant, en effet, que les décisions prises en application de l'article 61 de la Constitution revêtent un caractère absolu et définitif, ainsi qu'il résulte de l'article 62 qui fait obstacle à la promulgation et à la mise en application de toute disposition déclarée inconstitutionnelle ; qu'au contraire, la supériorité des traités sur les lois, dont le principe est posé à l'article 55 précité, présente un caractère à la fois relatif et contingent, tenant, d'une part, à ce qu'elle est limitée au champ d'application du traité et, d'autre part, à ce qu'elle est subordonnée à une condition de réciprocité dont la réalisation peut varier selon le comportement du ou des Etats signataires du traité et le moment où doit s'apprécier le respect de cette condition;’’

277 Ibidem. 5. Considérant qu'une loi contraire à un traité ne serait pas, pour autant, contraire à la

Constitution ; 6. Considérant qu'ainsi le contrôle du respect du principe énoncé à l'article 55 de la Constitution ne saurait s'exercer dans le cadre de l'examen prévu à l'article 61, en raison de la différence de nature de ces deux contrôles ; 7. Considérant que, dans ces conditions, il n'appartient pas au Conseil constitutionnel, lorsqu'il est saisi en application de l'article 61 de la Constitution, d'examiner la conformité d'une loi aux stipulations d'un traité ou d'un accord international ;

278 Ibidem. 4. Considérant, en effet, que les décisions prises en application de l'article 61 de la

Constitution revêtent un caractère absolu et définitif, ainsi qu'il résulte de l'article 62 qui fait obstacle à la promulgation et à la mise en application de toute disposition déclarée inconstitutionnelle ; qu'au contraire, la supériorité des traités sur les lois, dont le principe est posé à l'article 55 précité, présente un caractère à la fois relatif et contingent, tenant, d'une part, à ce qu'elle est limitée au champ d'application du traité et,

Contudo, importa destacar que, mesmo que implicitamente, o Controle de Convencionalidade já havia sido experimentado antes da decisão nº 74-54 do Conseil

Constitutionnel da França279.

Quando do julgamento do Case Concerning Certain German Interests in Polish

Upper Silesia, em 1926, que envolvia a Alemanha vs. Polônia, a Corte Permanente de

Justiça Internacional (CPJI) decidiu que as ações do Governo Polonês não estavam em conformidade com uma Convenção internacional.280

É certo que, apesar de não fazer uso da expressão debatida, e em contexto diferente do utilizado atualmente, a Corte Permanente de Justiça Internacional exerceu um claro Controle de Convencionalidade ao decidir, em um caso concreto, envolvendo normativos jurídicos internos dos Estados litigantes, à luz da Convenção de Genebra, então vigente para ambos.

No caso, a CPJI claramente efetuou uma sindicância de compatibilidade de uma norma jurídica interna com uma convenção internacional, o que caracteriza, senão, o exercício do Controle de Convencionalidade.

Embora surgido na Europa, foi no cenário do SIDH que o Controle de Convencionalidade encontrou guarida para seu desenvolvimento.

A expressão em estudo passou a ser utilizada expressamente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) somente em 2006, quando do julgamento do Caso Almonacid Arellano e otros vs. Chile, em voto separado, o Juiz García Ramírez faz uso da expressão Controle de Convencionalidade.281

É a partir deste caso que a Corte Interamericana passa a fazer uso permanente da expressão, definindo seus contornos e conceito, para dizer que todos os Estados tem o

d'autre part, à ce qu'elle est subordonnée à une condition de réciprocité dont la réalisation peut varier selon le comportement du ou des Etats signataires du traité et le moment où doit s'apprécier le respect de cette condition ;

279 GOMES, Jesus Tupã Silveira. Controle de Convencionalidade no Poder Judiciário: Da Hierarquia

Normativa ao Diálogo com a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Curitiba: Juruár Editora,

2018. p. 17.

280 “[...] (1) That the application both of Article 2 and of Article 5 of the law of July 14th, 1920, in Polish

Upper Silesia, decreed by the law of June 16th, 1922, constitutes, in so far as it affects German nationals or companies controlled by German nationals covered by Part I, Head III, of the Geneva Convention, a measure contrary to Article 6 and the following articles of that Convention; (2) (a) That the attitude of the Polish Government in regard to the Oberschlesische Stickstoffwerke and Bayerische Stick-stoffwerke Companies was not in conformity with Article 6 and the following articles of the Geneva Convention” CPJI. Case Concerning Certain Geman Interests In Polish Upper Salesia: The merits. Haia, 25.05.1926. Haia: Leyden A. W. Sijthoffs’s Publishing Company.

281 GUERRA, Sidney; MOREIRA, Thiago Oliveira. Contornos Atuais do Controle de

Convencionalidade Doméstico. In.: Los Desafios Jurídicos a La Gobernança Global: uma perspectiva

dever de adequar seu ordenamento jurídico interno aos tratados e convenções de Direitos Humanos aos quais sejam signatários.

Contudo, o exercício da sindicância de compatibilidade do ordenamento jurídico doméstico à luz das proteções internacionais dos Direitos Humanos já aparecia em julgamentos da dita corte282. Exemplo disso é o julgamento do Caso Neira Alegría e

outros vs. Perú, datado de 1995, quando a Corte IDH condenou o Perú pela

inobservância aos Direitos Humanos assegurados pela Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).283

Neste caso, utilizando-se implicitamente do Controle de Convencionalidade, a Corte IDH efetivou uma sindicância de compatibilidade entre os atos do Governo do Perú e os compromissos assumidos internacionalmente, declarando que o país em questão havia violado os direitos previstos na CADH.

Também merece destaque ao surgimento e desenvolvimento do dito controle o voto do Juiz Sergio García Ramírez no caso Myrna Mack Chang vs. Guatemala (2003), que condenou a Guatemala pela inobservância de garantias judiciais previstas na CADH; o julgamento do caso Barrios Altos vs. Peru (2001), que declara a incompatibilidade de uma Lei de Anistia do Peru com a CADH; e o julgamento do caso

Tibi vs. Ecuador (2004), que condenou o Equador por violação a direitos de liberdade,

integridade pessoal, garantias judiciais e ausência de proteção judicial, à luz da CADH.