• Nenhum resultado encontrado

3. A CONVENCIONALIZAÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO ESTATAL

3.5 O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE DOMÉSTICO

3.5.3 Competência

Ainda no âmbito doméstico, há que se falar no exercício que deve ser feito por todos os poderes constituídos do Estado, o que se aplica a todos os seus agentes.

Neste sentido, o Controle de Convencionalidade doméstico não se limita a um dever atribuído ao Poder Judiciário. Aliás, se dito controle é feito pelo judiciário, significa dizer que os demais poderes que são responsáveis pelo processo de legislação e promulgação das leis, não fizeram a devida adequação da norma interna aos instrumentos internacionais.

Esta inteligência decorre da própria jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Pode-se ter como exemplo o julgamento do Caso Fernández Ortega

y outo vs. México, quando a Corte IDH, em 2010, decide que em um Estado sendo parte

de um tratado internacional, todos os seus órgãos, agentes e poderes também estão submetidos aos ditames daquele. Na visão da Corte todos os agentes estatais também devem zelar para que as disposições do instrumento internacional sejam efetivamente incorporadas a vida das pessoas.328

Ora, se o Controle de Convencionalidade é uma consequência direta do dever que os Estados têm para adotarem todas as medidas necessárias para correta aplicação dos tratados e demais instrumentos internacionais, tal consequência se aplica diretamente aos seus agentes públicos, independentemente de sua atuação.

328 Corte Interamericana de Derechos Humanos, caso Fernándes Ortega y otros vs. México (2010). “[...]

235. Para este Tribunal, no solo la supresión o expedición de las normas en el derecho interno garantiza los derechos contenidos en la Convención Americana. De conformidad con la obligación compreendida en el artículo de dicho instrumento, también se require el desarollo de prácticas estatales conducentes a la observancia efectiva de los derechos y libertades consagrados en la misma. [...]”

Neste sentido, é certo que o Poder Executivo, aquele que representa o Estado nas suas relações internacionais, promove as primeiras fases de pactuação dos instrumentos internacionais, não pode fugir à regra da obrigatoriedade de cumprimento dos compromissos assumidos no âmbito internacional.

O Poder Executivo, igualmente, tem o dever, dentro de suas competências de promover a correta e efetiva aplicação de todos os estándares provenientes do SIPDH e demais instrumentos internacionais que o Estado seja parte.

Quanto ao Poder Judiciário, este tem sido convocado pela Corte IDH a participar do Controle de Convencionalidade desde a efetiva utilização da terminologia. É que na configuração inicial do Controle de Convencionalidade a Corte IDH previa que caberia ao Poder Judiciário a garantia de efetivação da CADH, assim como da não aplicação de qualquer norma que porventura fosse contrária a dita Convenção.329

Este entendimento, como já falado, foi ampliado fazendo com que todos os poderes do Estado sejam parte responsável pela Convencionalização das práticas estatais e do ordenamento jurídico como um todo.

Em situação bastante peculiar, tal dever de conformidade das normas internas aos compromissos internacionais, deveria repercutir de modo ainda mais incidente sobre a atuação do Poder Legislativo.

É que se o Controle de Convencionalidade surge como instrumento de controle normativo para garantir a conformidade do ordenamento jurídico intento a luz dos instrumentos internacionais de Direitos Humanos, significa dizer que houve uma falha original do Poder Legislativo, que deveria ter promovido a adequação legislativa do ordenamento interno ao internacional.

Mesmo que de modo “implícito”, é assim que pensa a Corte Interamericana. Quando do julgamento do Caso Almonacid Arellano vs. Chile (2006), ao atribuir responsabilidade ao Poder Judiciário para permanecer vinculado ao dever de garantia prevista na Convenção Americana, dita Corte revela que tal obrigação surge da “falha do legislativo em sua tarefa de suprimir e/ou não adotar leis contrárias a Convenção Americana”.330

329 Corte Interamericana de Derechos Humanos. Caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile (2006). 330 Ibidem. “123. [...] Sin embargo, cuando el Legislativo falla em su terea de suprimir y/o no adoptar

leyes contrarias a la Convención Americana, el Judicial permanece vinculado al deber de garantia estabelecido em el artículo I.I de la misma [...]”

Isto significa que, embora seja o Judiciário o poder mais demandado quando do Controle de Convencionalidade, tal tarefa surge da omissão ou falha do Poder Judiciário em promover a adequação legislativa do Estado.

Embora esta seja a lógica mais adequada, a Corte IDH, quando da configuração inicial do Controle de Convencionalidade o reconheceu como tarefa exclusiva do Poder Judiciário. Contudo, em sua evolução jurisprudencial da matéria, fixou precedentes que remetem tal dever a todas as autoridades públicas do Estado331, configurando um amplo

espectro de deveres funcionais em relação ao Controle em referência.332

Neste sentido, percebe-se que há uma clara falha do Poder Legislativo em promover tal conformação legislativa, o que certamente evitaria litígios internacionais envolvendo o Estado, assim como sua possível responsabilização internacional.

O que se sabe é que, enquanto o Poder Judiciário caminha a curtos passos para a efetivação do Controle de Convencionalidade doméstico, no Poder Legislativo e Executivo a letargia é ainda maior.

Pegando como exemplo o Brasil, cabe uma indagação reflexiva: existe no âmbito legislativo algum órgão interno que promova a análise da conformidade convencional de um projeto de lei, considerando aos inúmeros compromissos a que o Brasil é signatário?

Não custa lembrar, o Poder Legislativo também faz parte do processo de ratificação e incorporação dos tratados e convenções internacionais. É somente após a aprovação do Poder Legislativo que o tratado se incorpora ao ordenamento interno, o que afastaria a possibilidade de desconhecimento da norma internacional.

Assim, considerando a ausência de uma “Comissão de Convencionalização”, seria responsabilidade da Comissão de Constituição e Justiça e da Cidadania ou da Comissão de Relações Exteriores analisar a convencionalidade de um projeto de lei?

331 “A partir de 2006, ao menos uma certeza pode ser extraída das sentenças e opiniões consultivas

investigada, a Corte IDH sempre reafirmou que o controle de convencionalidade deveria ser realizado,

inicialmente, no âmbito interno dos Estados.

A mesma solidez não é vista no que concerne à competência para o exercício do controle doméstico de convencionalidade. Em suma, a Corte já adotou quatro posicionamentos distintos. Primeiro, tal função caberia ao [...] (Poder Judiciário); segundo, aos órgãos dotados de jurisdição; terceiro, aos juízes e órgãos vinculados à administração da justiça; e, por fim, quatro, todos os poderes e órgãos do Estado. MOREIRA, Thiago Oliveira. O Exercício do Controle de Convencionalidade pela Corte IDH: uma

década de decisões assimétricas. In: MENEZES, Wagner (org.). Direito Internacional em Expansão.

Anais do XV CBDI. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017, p. 269-270.

332 SANTOFIMIO GAMBOA, Jaime Orlando. El Concepto de Convencionalidad: vicissitudes para su

constucción sustancial en el sistema interamericano de derechos humanos: ideas fuerza receptoras. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2017. p. 471.

Precipuamente, pode-se observar que esta falha legislativa pode ocasionar diversos prejuízos ao Estado, de ordem interna e internacional.

Internamente, a principal consequência é o aumento de demandas judiciais em virtude da ausência de observância legislativa quanto aos instrumentos internacionais que derivem em garantias e direitos humanos, de outro modo não se pode esquecer dos prejuízos financeiros ao qual o Estado pode ser submetido caso seja responsabilizado internacionalmente pela inobservância dos instrumentos internacionais.

Internacionalmente, há que se falar, além da possibilidade de responsabilização do Estado perante os órgão e cortes internacionais, do abalo à imagem do Estado quanto aos pactos firmados externamente.

Ora, se conforme discutido acima, o princípio da boa-fé é pilar central do direito dos tratados, um Estado que passa a descumprir os compromissos assumidos perante outros evidentemente deixa de gozar da confiança necessária para outras transações.

Em que pese toda discussão acerca do Controle de Convencionalidade, percebe- se, então, que o exercício do dito controle no Poder Legislativo é preponderante para fazer com o que o Estado se adeque eficazmente aos compromissos que estão assegurados através de instrumentos internacionais.

Nesta perspectiva, o dever inerente ao Poder Legislativo exige que dito controle seja feito de forma prévia, o que poderia acontecer através da instituição de uma Comissão de Controle de Convencionalidade ou Comissão de Convencionalização.

Dita comissão teria papel semelhante à Comissão de Constituição e Justiça, sendo que aplicado as normas de origem internacional: fazer controle prévio de convencionalidade das leis.

Além de instituir uma comissão neste sentido, deveria surgir de uma coalização de esforços entre os poderes executivo, legislativo e judiciário, sugestões legislativas para se promover uma verdadeira conformação legal do ordenamento jurídico interno ao internacional.

Esta, aliás, deveria ser a primeira providência que um Estado deveria adotar após a internalização de um instrumento internacional, com vistas a efetivação (ou convencionalização) do ordenamento jurídico doméstico ao compromisso então assumido.

No Brasil, em que pesem as críticas acima tecidas, há um notável exemplo legislativo de Convencionalização do ordenamento interno. Trata-se da regulação da legislação migratória, através da Lei Federal nº 13.445 de 2017.

Em 2017, o Congresso Nacional aprovou e o então Presidente da República sancionou dita Lei que, além de modernizar, promoveu uma adequação do ordenamento jurídico brasileiro com as proteções destinadas aos migrantes reconhecidas internacionalmente.

Tal modernização se deu com a revogação da Lei Federal nº 6.815, de 1980, que instituiu o Estatuto do Estrangeiro, uma lei que claramente privilegiava a “segurança nacional” em detrimento de direitos e garantias que deveriam ser asseguradas às pessoas em migração, sobretudo quando em situação de vulnerabilidade.

A nova Lei de Migração, ao atentar para as proteções dos refugiados e da proibição da prisão em virtude da situação migratória, por exemplo, trouxe uma eloquente adequação do direito interno aos instrumentos internacionais que tratam de direitos humanos e em matéria de migração.

Em outro exemplo, como em seu artigo 3º, a Lei de Migração adotou os mais caros princípios para defesa dos direitos dos migrantes, em especial a acolhida humanitária, não criminalização da migração, não discriminação e universalização dos direitos humanos.

Importa destacar que, embora efetivado de maneira implícita, vez que não se colocou expressamente esta motivação, a inovação legislativa em comento é um claro exemplo de convencionalização da matéria. Ou seja, o Estado adequou seu ordenamento interno com os direitos assegurados internacionalmente.333