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1. PROGRAMAÇÃO, AUDIÊNCIA, CRÍTICA: PICOS DE AMOR E ÓDIO NA

1.4. A ORQUESTRA BARROCA DE LUIZ FERNANDO CARVALHO

A imagem inicial, em tela inteira, é de um dorso masculino, nu, negro, suado, e de braços que se movimentam, ressaltando os músculos volumosos. Para quem vem acompanhando os capítulos da narrativa da qual o fragmento faz parte, ambientada em fazendas de cacau da Bahia, em que diariamente se veem peões em atividades braçais, parece não haver dúvida de que se trata de mais uma cena de trabalho árduo. Há uma novidade, entretanto, a trilha sonora, geralmente composta de canções brasileiras de temática regional, é aqui substituída por uma valsa de Strauss.

Lentamente, a câmara se abre para desconstruir a primeira impressão: nem peão, nem trabalho rural, trata-se de um homem exercitando-se em um aparelho de musculação. O cenário é, pois, uma academia de ginástica, por onde entra o personagem Damião, o jagunço vivido pelo ator Jackson Antunes, em tudo destoando do ambiente: bigodes fartos, cabeleira parcialmente escondida sob um chapéu de caubói, camisa cuidadosamente abotoada e arrumada dentro de calças jeans desbotadas. O cinto e as botas de couro dão o acabamento. Sempre em câmara lenta e ao som de Strauss, Damião anda pelo ambiente, causando o evidente contraste entre sua figura e a dos usuários da academia. A trilha sonora, por sua vez, destoa tanto do personagem, quanto do cenário, e reforça o estranhamento que a cena provoca. Não por ser exótica, mas por ser poética, porque em todo o seu estranhamento, a valsa de Strauss e o ritmo lento do movimento da cena conferem poesia ao quadro.

Dando sequência à ação, Damião para em frente a Eliana, a moça fina interpretada por Patrícia Pillar, por quem ele deixou a esposa e o emprego de peão para ir para São Paulo, onde está agora. A câmara vai do rosto rústico, queimado de sol, e o olhar sério, descontente e decidido de Damião para os olhos azuis no rosto branco de Eliana, iluminado por um sorriso largo e apaixonado, mas que vai murchando aos poucos, à medida que ela lê o semblante do amante. Abruptamente, a música é suspensa. Sem dizer nada, Damião dá as costas a Eliana e vai saindo da academia. Agora são seus passos que ressoam pesados no ambiente. Eliana levanta-se e vai atrás dele.

Trata-se de uma cena da novela Renascer, (Globo, 1993), escrita por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Luiz Fernando Carvalho. Apenas mais uma entre centenas de outras cenas que compõem essa trama de 213 capítulos, e que chama a atenção do telespectador mais

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atento pelo trabalho minucioso com que foi construída, arquitetada em seus mínimos detalhes, porque cada detalhe tem uma função na construção do sentido. Não me aprofundarei na análise da cena, porque este não é o objetivo. O exemplo serve apenas para introduzir algumas palavras sobre um diretor que mesmo em se tratando de novelas, tradicionalmente o programa mais popular da TV, nunca se contentou em apenas contar uma história, mas que sempre procurou recheá-la de – pelo menos algumas – cenas elaboradas com o máximo de requinte estético possível, considerando as limitações que o ritmo intenso de produção impõe ao processo de criação dentro desse formato.

Foi com cenas como essa que a novela Renascer, assim como os capítulos iniciais de O rei do Gado (1996) e Esperança (2002), folhetins posteriores em que se repete a dupla formada por Ruy Barbosa e Carvalho, chegou a resultados ao mesmo tempo acessíveis e sofisticados, cumprindo com êxito o objetivo de ser atraente às grandes massas – os índices de audiência superaram a média esperada para o horário – porém indo além, a ponto de agradar também a crítica especializada.

Retomando a observação de Fiorin (2008b), segundo a qual a identificação do sujeito com o objeto artístico pode se dar pelo conteúdo ou pela expressão; considerando ainda a observação de Duarte de que em meio às atividades do cotidiano o telespectador não costuma estar disposto a programas que “exigem sua total atenção, o que é incompatível com o ambiente familiar” (DUARTE, 2004, p. 58); e por fim, levando em conta o interesse que as narrativas de temática rural escritas por Ruy Barbosa sempre despertaram no público desde Pantanal, parece-nos pertinente supor que o conteúdo de Renascer tenha sido, em princípio, o responsável maior pela empatia com o grande público.

O efeito sensorial causado pelo plano da expressão, no entanto, certamente acrescenta um algo a mais a todos quantos assistirem às cenas, pois ainda que parte dos telespectadores não consiga identificar ou explicar o que seja esse algo a mais, a beleza natural ressaltada pelo modo de olhar da câmara fala por si mesma. Já o leitor criticamente consciente, que sabe que há um arquiteto por trás de cada quadro, de cada janela aberta, geralmente identifica-se, primeiro, com as escolhas expressivas, com a linguagem utilizada pelo diretor. Pelo menos é o que se depreende dessa fala da pesquisadora Ivana Bentes, durante entrevista com Carvalho, por ocasião do lançamento do filme Lavoura Arcaica (2001): “... Renascer dá até uma legitimidade mesma, digamos, artística para uma linguagem de televisão na hora em que apareceu, que foi muito importante...” (BENTES, 2002, p. 30). Em outro momento da

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conversa, ela afirma se lembrar de todos os primeiros capítulos13 da novela, tão forte lhe ficou a impressão causada especialmente pela fotografia de Walter Carvalho: “tem alguns elementos ali que eu acho que já estavam marcados e que vão reaparecer no [filme] Lavoura...” (Idem, p. 29)

Tanto a novela quanto o filme mencionados são, na verdade, respostas aos longos anos de estudos e experiências com a linguagem cinematográfica, empreendidos pelo diretor: Com apenas um curta e um longa-metragem em sua bagagem cinematográfica, pode-se dizer que Carvalho se formou em cinema para atuar em televisão, já que em seu currículo, até o momento, predominam as produções para TV: um documentário, quatro novelas, um especial musical, quatro casos especiais, cinco minisséries, duas séries e quadros para o Fantástico, citando apenas as atuações como diretor geral14. Daí, talvez, o fato de muitas vezes a linguagem que ele utiliza em seus trabalhos televisivos ter sido comparada (ou confundida) com a linguagem cinematográfica, o que, aliás, ele contesta:

No intuito de elogiar, as pessoas falam que meu trabalho na televisão é cinema, mas eu discordo. Agradeço o elogio, mas discordo. Cinema para mim é uma coisa e televisão é outra, e a diferença é uma questão de linguagem. Em nenhum de meus trabalhos para TV, tive o desejo de assistir aos episódios emendados uns aos outros, partes com partes, como se formassem um filme, porque sabia, de antemão, que não constituiriam um filme. Pelo menos um “filme” que me interessaria realizar. (CARVALHO, 2009, s/p)

O que Carvalho sempre defende – e a seu modo, pratica – é um respeito maior com o telespectador, uma nova “missão” para a TV, que esteja “diretamente ligada à educação, a uma reeducação a partir das imagens e dos conteúdos.” (CARVALHO, 2002, p. 31). Esse compromisso maior com o aspecto criativo da obra, que lhe confere o status de diretor autoral, é, sem dúvida, herança do Cinema Novo, - pelo qual ele confessa ter sido fortemente influenciado, especialmente por Glauber Rocha, representante maior do movimento que revolucionou o cinema brasileiro nas décadas de 1950 e 1960. “O Cinema Novo foi a versão

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Nota-se que os primeiros capítulos da novela, que retratam a “primeira fase” da história, ou seja, uma espécie de flash-back do protagonista enquanto jovem, apresentam uma composição estética irrepreensível cena a cena. Na medida em que a narrativa segue, naturalmente, nem todas as cenas são tão rigorosamente bem cuidadas. Ainda assim, ao longo da novela, vez por outra é possível se deparar com sequências de inestimável qualidade estética.

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As obras assinadas pelo diretor são: o documentário Que teus olhos sejam atendidos (1998/GNT); as novelas:

Renascer, Irmãos coragem, O rei do gado e Esperança (1993, 1995, 1996, 2002/Globo); o especial Chitãozinho e Xororó (1990/Globo); os casos especiais: Os homens querem paz, Uma mulher vestida de sol, A farsa da boa preguiça e Alexandre e outros heróis (1991, 1994, 1995, 2013/ Globo); as minisséries Os maias ( 2001/Globo), Hoje é dia de Maria, A Pedra do Reino e Capitu (2005, 2007,2008/Globo); e as séries Afinal, o que querem as mulheres? (2010/Globo) e Suburbia (2012). Uma quinta novela assinada pelo diretor, Meu pedacinho de chão,

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brasileira de uma política de autor que procurou destruir o mito da técnica e da burocracia da produção, em nome da vida, da atualidade e da criação.” (XAVIER, 2001, p.57)

Essa política de autor, ainda segundo Ismail Xavier, é resultado do diálogo empreendido pelo Cinema Novo, e depois pelo Cinema Marginal, com um movimento empreendido por realizadores de diferentes partes do mundo - Welles, Antonioni, Pasolini, Rossi, Resnais, Cassavetes, entre outros - que optaram por se opor ao cinema clássico e predominantemente industrial, pelo exercício livre da autoria, pela criação de novos estilos, de forma a revitalizar a cultura cinematográfica: “foram cineastas cuja forma de exercer a sua consciência da técnica, da forma e dos modos de produção ensejou um exercício da autoria que Pier Paolo Pasolini sintetizou muito bem em sua noção do moderno como um ‘cinema de poesia’’’ (XAVIER, 2001, p. 14). É, portanto, a experiência e a visão estética desses revolucionários da linguagem do cinema que estão na base da formação de Luiz Fernando Carvalho, tanto pelo contato através do Cinema Novo, quanto pelo contato direto com a filmografia dos grandes mestres. “Sem dúvida nenhuma, eu tinha consciência de que estava me alimentando para um dia conseguir me expressar”, diz ele. (CARVALHO, 2002, p. 22)

A estreia oficial em televisão foi como assistente de direção na minissérie Grande Sertão: Veredas (1985). Antes disso, porém, a amizade com o também diretor de TV Maurício Farias levou-o a fazer alguns estágios em cinema: um pouco de tudo, como ele mesmo conta (2002, p. 15), incluindo aí técnica de som, assistente de montagem e assistente de direção. Ao lado dessas experiências iniciais, ele agregou imersões nas melhores fontes de teoria e prática cinematográfica, com Sergei Eisenstein, Tziga Vertov, André Bazin, Luis Buñuel, Pasolini, Luchino Visconti e muitos outros. A disciplina História da Arte estudada durante o curso inconcluso de Arquitetura foi decisiva em sua formação, e a Faculdade de Letras contribuiu para estreitar relações com a literatura e com a escrita de roteiros. Aliado a tudo isso, a dedicação que o fazia, já em Grande Sertão..., debruçar-se sobre cada cena com o esmero de um artesão:

Existiam trinta cenas no capítulo e, entre elas, duas que me eram dadas. Eu estudava aquilo, virava noites estudando aquelas duas ceninhas. Para mim aquelas duas cenas era a coisa mais importante do mundo, como exercício da gramática narrativa e de tudo, e eu me debruçava sobre as duas ceninhas talvez até com um entusiasmo exagerado. Mas eu era um jovem de 24 anos, sedento, então neste meu ímpeto cabia virar a noite relendo as teorias de Vertov para aplicar na cena do dia seguinte, era o alimento que eu tinha. (CARVALHO, 2002, p. 10)

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Pelo pouco que já foi dito aqui sobre o diretor, não é difícil entender de onde vem a singularidade presente na sua obra, mesmo nas mais populares realizações que são as novelas. Pode-se dizer que Carvalho sempre procurou e conseguiu fugir da “massa indiferenciada” veiculada pela TV, de que fala Machado (1992) e enquadra-se, guardadas as particularidades da linguagem audiovisual, na afirmação de Fiorin sobre os escritores: “Quem escreve um texto literário não quer apenas dizer o mundo, mas recriá-lo nas palavras, de forma que, nele, importa não só o que se diz, mas também o modo como se diz.” (FIORIN, 2008b, p.57) É assim que Carvalho se comporta nos bastidores da televisão: um diretor que não se contenta em apenas contar uma história, mas que procura recriá-la através das imagens, dos sons, do ritmo, e do diálogo com outras formas de expressão artística.

Falar em singularidade remete, inevitavelmente, à questão do estilo, que é “o conjunto global de traços recorrentes do plano do conteúdo (formas discursivas) e do plano da expressão (formas textuais), que produzem um efeito de sentido de identidade” (FIORIN, 2008b, p. 96). Portanto, quando Ivana Bentes diz que alguns elementos presentes em Renascer irão reaparecer em Lavoura Arcaica, ela não está falando de outra coisa senão do estilo que Luiz Fernando Carvalho vem imprimindo à sua obra. Bentes se referia a elementos expressivos da fotografia aplicados a outro ponto que une as duas obras: a temática rural, que pertence ao plano do conteúdo.

A terra, aliás, e todas as questões ligadas a ela; a terra enquanto símbolo de mãe, e enquanto sinônimo de brasilidade, é, assumidamente, “o elemento mais primordial” na obra desse diretor, especialmente a partir de Renascer, a primeira direção geral de uma novela, que foi também seu primeiro trabalho após o período em que esteve no Nordeste em busca de lembranças da mãe de quem ficou órfão aos quatro anos de idade. Desse mergulho na região, Carvalho conheceu e internalizou elementos da realidade e da cultura brasileira que vieram à tona em praticamente todos os trabalhos posteriores, especialmente nos casos especiais – A farsa da boa preguiça, Uma mulher vestida de sol – e mais recentemente nas minisséries a partir de Hoje é dia de Maria. Mesmo na recente série Suburbia, cuja temática é essencialmente urbana, a terra está presente nas cenas iniciais gravadas no sertão das carvoeiras de Minas Gerais, e a cultura popular emerge, em plena favela do Rio de Janeiro, num cortejo religioso carregado de sons e imagens do interior do país.

A terra e tudo o que está ligado a ela, portanto, fornece ao mesmo tempo os elementos dos planos do conteúdo e da expressão, já que este se ajusta àquele pelas cores, pelos sons,

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pela luz, e por tudo, enfim. É pela linguagem, portanto, que o estilo de Luiz Fernando Carvalho se faz notar, o que confirma o pensamento de Norma Discini, que, relendo a Retórica de Aristóteles, diz:

Aristóteles (384 a.C- 322 a.C) pode ser ponto de partida e de chegada para novas reflexões sobre o estilo, que visem não apenas ao que o texto diz. Considerando, por exemplo, as partes componentes do sistema retórico, a inventio (o conteúdo, de onde se extraem provas e argumentos relacionados ao tema); a dispositio (a maneira de organizar ou planejar as diferentes partes do discurso); a elocutio (as escolhas da expressão que se adequarão ao conteúdo) e a actio (a execução ou atualização do discurso, que supõe timbre de voz e entonação, pausa e ritmo) sabemos que é na elocutio que se consideram instaladas as bases do estilo. (DISCINI, 2003, p.16-17)

Não é difícil, portanto, encontrar em Lavoura Arcaica, o inconfundível jogo de luz e sombras da fotografia de Walter Carvalho utilizada em Renascer, que faz com que prevaleçam os tons em amarelo e preto, e que se repete em praticamente todas as obras que vieram depois. A imagem, ora excessivamente focada, ora totalmente desfocada e certos enquadramentos e movimentos de câmara que produzem um desvelamento gradual, como a cena citada no início deste texto, são também opções recorrentes na obra de Carvalho. Há, enfim, uma recorrência do olhar que vê – e mostra – a cena, assim como há um cuidadoso trabalho com a própria mise em scène, essa palavra de sentido até certo ponto indefinido, como sugere Aumont, mas que ele resume como sendo “a ‘composição dramática’, a maneira de conjugar, de declinar as figuras no espaço para atingir a expressividade máxima” (AUMONT, 2004, p. 162), e onde entram então todos os elementos constitutivos da cena: o figurino, o cenário, os objetos de cena, a luz, etc.

Não podemos deixar de mencionar também a trilha sonora, que é sempre marcante nas obras do diretor, seja pela originalidade e, portanto, pela adequação dos sons ao universo da obra (Lavoura Arcaica,A Pedra do Reino, Hoje é dia de Maria), seja pelo bucolismo causado pelo som característico do vinil em canções antigas de Roberto Carlos (Afinal, o que querem as mulheres e Suburbia), ou pelas inserções de sons e ritmos da cultura popular (Renascer, Hoje é dia de Maria, A Pedra do Reino, Suburbia, entre outras). E, evidentemente, não podemos deixar de mencionar, ainda, todo o hibridismo de culturas, linguagens e épocas que já rendeu ao seu estilo a pertinente definição de barroco, como nessa análise de Ilana Feldman sobre A Pedra do Reino:

Na opera mundi de Luiz Fernando Carvalho, tanto em Hoje é dia deMaria como, mais radicalmente, em A Pedra do Reino, a encenação contempla, incorpora e devora, almejando totalizar todas as formas de manifestação

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artística, que, ao gosto do barroco, cujo sentido literal é “acumulação”, une e mistura cinema, teatro, poesia, pintura, circo, ópera, literatura, romance, odisséia, sátira, tragédia, picardias, cordel, maracatu, papangus e novelas de cavalaria. Do popular ao erudito, da artesania à tecnologia, da ancestralidade à busca da nacionalidade, a mão barroca e o “estilo régio” de Luiz Fernando Carvalho orquestram excessos, intensidades, contrastes, júbilos sem limite, jorros declamatórios e diversos registros e linguagens. (FELDMAN, 2007, s/p)

Feldman está certa ao dizer que a incorporação de diferentes linguagens estéticas é mais evidente em Hoje é dia de Maria e, principalmente, A Pedra do Reinoà qual Capitu se junta no ano seguinte. Entretanto, muito antes da realização dessas duas obras, já nos primeiros trabalhos que levam a assinatura de Luiz Fernando Carvalho, é possível perceber um flerte recorrente com outras artes, em especial o teatro, a pintura, a literatura (em prosa, em poesia e em cordel) e, sobretudo, o cinema. A origem da intimidade com o cinema, conforme já foi dito, está na raiz da formação profissional. O mesmo se pode dizer da pintura, tema central da História da Arte, disciplina preferida e uma das poucas que ele concluiu no curso de Arquitetura. Quanto à dramaturgia, ele confessa “uma grande paixão pelo teatro como elemento mítico [...] como negação do naturalismo...” (CARVALHO, 2002, p. 52) E a literatura é a arte que está sempre na raiz de seus trabalhos, conforme ele mesmo diz.

Já foi dito aqui mesmo neste capítulo que a linguagem televisual, em sua origem, é um híbrido de outras linguagens, especialmente as do rádio, do cinema, do teatro e da literatura. Jacques Aumont (2004) acrescenta ainda a pintura, de quem o cinema (e, por extensão, a televisão) teria herdado não só luz e cores, como a própria noção de quadro, enquadramento, limitação do que vai ser apresentado. Portanto, apenas dizer que Luiz Fernando Carvalho dialoga com outras artes pareceria lugar comum. Acontece que o diálogo que ele empreende com tais linguagens supera o que seria uma simples questão de forma embutida no conceito de hibridismo enquanto origem da linguagem televisual. O que se vê em suas obras é um diálogo através do qual se busca a expressividade mesma de cada linguagem, expressividade esta que atinge o seu máximo a partir de Hoje é dia de Maria, chegando aos “excessos e intensidades” de A Pedra do Reino – mencionados por Feldman – e Capitu, a ponto de causar algum estranhamento em parte do público.

A aproximação com outros gêneros, entretanto, já se faz presente em obras do início da carreira do diretor. É possível encontrar traços fortemente teatrais nos casos especiais Os homens querem paz (1991), Uma mulher vestida de sol (1994) e A farsa da boa preguiça (1995). A literatura, não obstante ser a fonte para boa parte de sua obra –as exceções talvez

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sejam as novelas, Os homens querem paz e Suburbia, cujos roteiros são originais – é também elemento intrínseco a muitas delas, especialmente no gênero cordel, como em Os homens querem paz, A farsa da boa preguiça, Hoje é dia de Maria e A pedra do reino, apenas para citar algumas.

A obra de Cândido Portinari foi inspiração para a concepção visual de Hoje é dia de Maria, onde a presença da pintura, conforme abordamos no artigo As cores de um sertão em preto e branco, “especialmente no céu do cenário da narrativa é tão forte que, misturada a outros objetos de cena, ao figurino e à própria atuação dos personagens, deixa a nítida impressão de que cada cena foi construída com o esmero de quem pinta um quadro à mão.” (PEREIRA, 2009, p.39-40) Também em Lavoura Arcaica, a presença de elementos pictóricos foi bastante ressaltada pela crítica, e o próprio diretor admite influência de “toda a pintura tenebrista espanhola [...] com uma predominância dos fundos negros e a presença dos dourados, que também dialoga com Rembrandt. As figuras alongadas de El Greco entram por Caravaggio, Tziano, Van Gogh, Degas, Munch, Millet, Cézanne...” (CARVALHO, 2002,p.101)

Ao falar das obras assinadas por Carvalho – ou por qualquer outro diretor de cinema e